Convém
não mais brindar a chegada de cada novo trabalho do diretor canadense David
Cronenberg com análises perplexas sobre mudanças de itinerário. Virou
lugar-comum opor sua fase pretérita, caracterizada por signos grotescos,
bizarrices e visuais perturbadores, ao presente de inquietações manifestadas mais,
digamos, limpidamente. No frigir dos ovos, é besteira deter-se em demasia nesta
metamorfose que simplesmente aponta para o esgotamento do artista ante alguns registros
utilizados à exaustão (pelos quais ficou estigmatizado). E, convenha-se que,
por exemplo, ficcionalizar o choque entre Sigmund Freud e Carl Gustav Jung (os
pais da psicanálise moderna), como visto em seu mais recente filme, é expediente
altamente transgressor na contemporaneidade bestial, só que de maneira menos
óbvia.
Um Método Perigoso funda-se primeiro na relação entre o impetuoso
Jung e sua paciente russa Sabina Spielrein. A conexão, que começa profissional,
descamba para o pessoal quando o doutor cede aos encantos da moça acometida por
sérios distúrbios ligados à excitação sexual, com quem então passa a ter um
caso de tórridas proporções. Jung sofre pela culpa que o invade, da mesma maneira que acusa o golpe pelo embate travado com
seu mestre Freud, este avesso às contribuições duvidosas que venham contaminar suas
teses fundamentadas na ideia do sexo como nascedouro das neuroses. Arguto como
sempre, Cronenberg utiliza a infidelidade como tempero do verdadeiro motriz dramático,
ou seja, a colisão entre os egos de Jung e Freud: o pupilo que busca abertura aos
seus pontos de vista (quem sabe como maneira de alargar ainda mais sua fama), enquanto
o mestre tenta preservar sua inconteste autoridade no campo científico.
Jung
projeta em Freud uma espécie de figura paternalista. O atrito ocasionado pelo
“filho” que tenta subjugar o “pai”, cuja autoridade passa a ser questionada, é nuclear
em Um Método Perigoso , e
encontra ecos na própria psicanálise. Aliás, Cronenberg enriquece o tecido
fabular da trama com características pertencentes às mais diversas moléstias
psíquicas, não por acaso cujos tratamentos são até hoje bastante influenciados
tanto pelas ideias de Jung como de Freud. Falando neles, são interpretados com
muita competência, respectivamente, por Michael Fassbender e Viggo Mortensen.
Já Keira Knightley entrega mais do que sua limitação contumaz permite, embora
exista dificuldade em quantificar o exagero residente (ou não) na sua leitura desta
mulher mentalmente abalada.
Elegante,
Um Método Perigoso utiliza a
repressão inicial das pulsões e desejos de Carl Jung, e seu posterior
sentimento de culpa, como balizas para a maioria dos conflitos por ele
internalizados. Também investe com particular interesse na figura hipnótica e
persuasiva de um Sigmund Freud defensivo, certamente temeroso frente ao
possível estremecimento da idolatria suscitada em seus seguidores. Ganha
contornos de obra maior quando se concentra justamente nos encontros (nem
sempre amigáveis) entre os dois gênios da ciência, que a despeito de todo
legado que deixaram para a compreensão das enfermidades da mente, eram, como
todos, reféns de sua própria falibilidade.
Publicado originalmente no Papo de Cinema
Publicado originalmente no Papo de Cinema
Olá, Celito!
ResponderExcluirO tema por si só já é bastante interessante. Com um diretor competente, trabalhando com menos dois excelente atores, fica difícil não termos, mesmo que uma pontinha, de vontade de conferir.
Abraçosssss
Belo texto Marcelo!"Método perigoso"é mesmo um filme elegante!Vindo de Cronenberg então, essa elegância torna-se especial.
ResponderExcluirBelo texto. Vontade gigante de assistir a esse filme.
ResponderExcluirOlá, Celo!
ResponderExcluirJá havia lido este texto no Papo de Cinema faz algum tempo, porém tenho uma relação menos entusiasmada com o filme.
Acho que seria uma ótima peça teatral ou um ensaio psicanalítico interessante, mas nem mesmo Cronenberg fez com que a trama se tornasse mais que enfadonha para mim. Os atores, no entanto, são/estão excepcionais.
Um abraço!