sábado, 27 de dezembro de 2014

Doses Homeopáticas #35


MICHAEL KOHLHAAS: JUSTIÇA E HONRA começa promissor. Primeiro, em virtude de seu trabalho quase artesanal de direção de arte, que recria a França pastoril do século XVI. Depois, por conta de seu enredo, protagonizado pelo comerciante interpretado por Mads Mikkelsen, ele que empreende uma verdadeira cruzada em busca de justiça contra o império que o governa mancomunado com seus opressores. Como esperar reparação se a lei é parcial? Uma pena o roteiro ser tão dispersivo e a direção frouxa ao ponto de enfraquecer sequências que poderiam transpirar mais dramaticidade e emoção. Não há, da mesma maneira, a construção de um cenário (imaginário) suficientemente sólido para que os desdobramentos da trama ressoem além do semblante de Mikkelsen. Aliás, o filme se apoia demais no trabalho excepcional do ator, deixando um tanto de lado seu entorno, o que acaba limitando o envolvimento do espectador àquilo que se passa com o protagonista, tão e somente.


Lukas Moodysson gosta de ambientar alguns de seus filmes nos anos 1980. NÓS SOMOS AS MELHORES se passa também nessa época em que muitos sentenciavam a morte do punk. Nele, duas garotas meio deslocadas resolvem botar a indignação para fora em forma de música. Eis que elas convidam para sua banda recém-formada uma menina também excluída, mas que sabe tocar muito bem e é cristã, ou seja, diferente delas que só fazem barulho e são descrentes. Talvez o que funcione menos no filme seja justo esse terceiro elemento, a colega temente a Deus. A diferença por ela representada não oferece um contraponto significativo às ideias punks das duas meninas principais, e nem se instaura como ruptura convincente (embora seja de fato uma ruptura) à própria garota que logo terá um corte de cabelo radical e trocará o violão pela guitarra. No fim das contas, é um filme muito bom, mesmo que tenha pouca profundidade se comparado a outros de Moodysson.      



2014 ainda guardava uma ótima surpresa para sua reta final: OPERAÇÃO BIG HERO, animação da Disney baseada numa HQ da Marvel. A começar pelo visual muito bem feito, da construção de uma São Francisco orientalizada aos próprios personagens e traquitanas tecnológicas que transformam nerds em super-heróis. Mas não só no plano da imagem o filme sai-se muito bem, pois também sua história é cativante. O garoto que começa meio rebelde logo aprende com o irmão mais velho a canalizar seu talento. Então, de desafiante em batalhas ilegais de robô, passa rapidamente a aspirar uma vaga na escola que incentiva gênios precoces. Claro, com as coisas complicadas ele vai usar isso a favor da montagem de uma equipe heterogênea a improvável de heróis, eles que também contam apenas com a inteligência para combater a ameaça próxima. O filme tem um roteiro muito eficiente, personagens carismáticos, direção inteligente e cenas de batalhas que empolgam. Ótimo entretenimento, para ver sem contraindicações.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Férias Frustradas


Clark (Chevy Chase) só queria passar bons momentos numa típica viagem de férias em família. Sempre muito ocupado no trabalho, vê os filhos crescerem ao largo de sua atenção e, então, decide pegar o carro novo e praticamente atravessar os EUA para alguns dias de diversão no The Wally World, uma propositalmente mal disfarçada alusão à Disney. As adversidades surgem já ao buscar o automóvel na revenda, pois a encomenda do modelo esportivo não se concretiza e ele precisa se contentar com um daqueles bizarros exemplares estadunidenses com partes de madeira nas laterais. Mas férias são férias, e Clark é o primeiro a não esmorecer frente aos problemas, afinal de contas, importante é família reunida, sem relógios-ponto nem horários pré-determinados para fazer isto ou aquilo.

Mal sabe ele que as próximas duas semanas guardam diversas armadilhas responsáveis por transformar seu idílio familiar num pesadelo constante. A começar pela visita aos parentes da mulher. Não bastasse o tempo de convivência com aquela gente estranha, bem arquetípica do interior americano, ele ainda “herda” a Tia Edna, senhora tão chata quanto o cachorro de estimação que, certamente, embarca junto na sequência da viagem dos Griswold. Cada parada, não importa onde for, expõe dificuldades, desde as programadas, como o vislumbre das ruínas do velho oeste, até as imprevistas, tal o acidente num local ermo, este mais parecido com os descampados tão bem utilizados por John Ford nos westerns do passado. Mas Clark segue firme o intuito de proporcionar instantes felizes aos seus.

Férias Frustradas é dirigido por Harold Ramis, mais conhecido por ter interpretado o Dr. Egon nos filmes da série Caça-Fantasmas, e roteirizado por John Hughes, por sua vez, diretor de Curtindo a Vida Adoidado, Clube dos Cincos, entre outros clássicos dos anos 1980.  Quem sabe até mais por influência do último, ou seja, neste caso, da escrita, seja tão divertido e espirituoso, repleto de momentos nonsense e inverossímeis apenas pela sucessão absurda em que ocorrem, mas bem críveis, sobretudo aos que já tentaram fazer uma dessas viagens de “descanso”, percorrendo grandes distâncias de automóvel, em meio a energia infindável das crianças, a ranzinzice daquela tia sempre tão mal-humorada e o próprio cansaço diminuindo o ímpeto lá do início.

Na época um astro, Chevy Chase interpreta o protagonista, esse homem classe média, disposto a fazer tudo certo, mas tragado por eventos alheios ao seu controle, e, com isso, gradativamente perdendo ele próprio a direção. A bem da verdade, quase não existem mais comediantes do calibre de Chase, cujo timming cômico parece dom gravado em DNA. Ele é um dos grandes responsáveis por fazer de Férias Frustradas algo muito divertido de ver. Seja flertando com a modelo na direção do esportivo vermelho estrada afora, ou tentando consertar suas próprias “certezas” na jornada, ele é tão simpático que nos flagramos na torcida pela ocorrência do final feliz em The Wally Word. E ele vem, bem à moda dos Griswold, mas vem, para nossa alegria.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Doses Homeopáticas #34


Quentin Tarantino vinha amadurecendo a ideia de fazer um western, gênero pelo qual sempre declarou admiração. Logo depois de incursionar pela Segunda Guerra Mundial, ele então decidiu entrar de cabeça no Velho Oeste, mostrando a saga de um escravo liberto em busca de sua amada ainda prisioneira. DJANGO LIVRE é esse filme que contém boa parte das marcas registradas do cinema de Tarantino. Nele temos violência estilizada, uma baita trilha sonora, que vai de Ennio Morricone ao rap, piscadelas para cinéfilos – a aparição de Franco Nero, o Django italiano é a mais evidente delas – entre outros expedientes comuns às realizações desse americano que provou ir além dos êxitos iniciais, construindo uma carreira sólida, feita de filmes calcados em seu conhecimento cinéfilo. O pastiche adquire outra camada de significado, perdendo a conotação pejorativa. Se em Bastardos Inglórios os judeus foram à forra contra Hitler e seus asseclas, aqui os negros escravizados, por meio de Django, têm também um pouco de vingança. Tarantino não corrige a história, mas sim lhe dá cinematograficamente a oportunidade de redimir-se.  


O HOBBIT: A BATALHA DOS CINCO EXÉRCITOS é o filme mais fraco da trilogia que inventaram para levar às telas o livro de Tolkien que bem poderia ser condensado num longa só, talvez com resultado menos dispersivo. Na trama, temos uma série de fatores em jogo: o poder, a superação, a lealdade, a ganância, e tudo isso é abordado com maior ou menor intensidade. Mas Peter Jackson preferiu mesmo as batalhas, aquelas cenas grandiosas que nos filmes da saga O Senhor dos Anéis funcionavam tão bem, mas que em O Hobbit, mais particularmente nesta terceira parte, soam apenas como interlúdios barulhentos e sem muita carga de emoção entre uma passagem dramática e outra. Pela primeira vez os efeitos especiais aparecem meio falsos (talvez pela onipresença), bem como a grandiloquência, antes orgânica, agora apenas um sinal do tamanho da produção. Às vezes, parece um filme dirigido no piloto automático, com brechas até para humor involuntário. Em suma, uma realização bem aquém das demais que visitaram a Terra Média. 



Com a morte de John Hughes, parece que o cinema norte-americano perdeu boa parte da capacidade de falar de e para a juventude. FÉRIAS FRUSTRADAS DE VERÃO, antes mesmo do sucesso Superbad: É Hoje, evidencia que o cineasta Greg Mottola herdou algo do criador de Curtindo a Vida Adoidado, pela forma aparentemente leve, mas com raízes profundas, com a qual aborda desde anseios banais até alguns questionamentos mais sérios de quem transita entre adolescência e vida adulta. Sem poder contar com a ajuda para ingressar na faculdade, o personagem de Jesse Eisenberg vai descobrir no trabalho de verão num parque de diversões boa parte do que precisa para seguir em frente. Lá ele encontra o amor e seus complicadores, a amizade, a decepção, as dificuldades inerentes de sair da proteção dos pais e encarar a vida em todas as suas possibilidades. Mottola faz um filme simples, brincando com estereótipos e clichês, em busca de uma discussão leve, ainda que não superficial, sobre a necessidade de crescer. E, de quebra, uma excelente trilha sonora. 

sábado, 13 de dezembro de 2014

Crise


O que esperar de um primeiro filme? Certa imaturidade e, quando muito, boas ideias. Claro, há sempre as exceções, gente que consegue realizar algo de beleza reconhecível e admirável em meio a insegurança natural da estreia. Crise é o longa inaugural da carreira de Ingmar Bergman, o abre-alas de uma obra inquestionável. Sua história fica entre as intrigas próprias dos folhetins e a busca por uma densidade não vista com frequência. A chegada de Jenny à cidadezinha perdida no interior da Suécia mostra mais que o contraste evidente de sua face calejada (por força da metrópole) e aquela calmaria toda. A mulher de meia idade vem reclamar a maternidade de Nelly, jovem de 18 anos consciente de sua adoção pela professora de piano Ingeborg.

De tal conflito surge uma série de desdobramentos, como era de se esperar. A mãe adotiva se aflige com a iminente perda da filha, menos para a progenitora biológica do que para os encantos da localidade central, repleta de possibilidades e perigos. De início alheia ao turbilhão vindouro, Nelly é cortejada por Ulf, homem mais velho derretido de amores ante sua beleza jovial e, em breve, será tentada pela ideia da mudança e do mesmo modo por Jack, ator desempregado que mantém caso de recíproco usufruto com Jenny. Sim, a trama é mesmo rocambolesca.

Alguns elementos de Crise servem de refresco sem maiores desdobramentos, como a frequência com que Ingeborg pede dinheiro emprestado (e não paga). Já outros, evidenciam a ourivesaria de Bergman. Bom exemplo disso é a insistência da mesma Ingeborg em lançar Nelly aos braços de Ulf, expediente percebido, primeiro como tentativa egoísta de enraizar sua filha na cidade pequena, mas logo e sutilmente (a mãe é também receptiva ao galanteador Jack) elevado à nobre preocupação com o futuro da menina. Bergman trabalha bem as diferenças entre o cotidiano cosmopolita e o dia a dia campesino, ainda que não se atenha com afinco ao embate. O diretor, aliás, e como de costume, está mais preocupado em fazer aflorar sentimentos, ou seja, se volta completamente aos personagens.

Crise não é dos memoráveis filmes de Bergman, mas tal afirmação se configura em tremenda injustiça deliberada do crítico, que o sabe consanguíneo de longas como Gritos e Sussurros, Persona, Morangos Silvestres, O Sétimo Selo, entre outras tantas pérolas. Verdade seja dita, tirando algumas inconsistências, é muito interessante a dinâmica do crescimento afetivo e emocional de Nelly, partida uma e regressa outra. Nessa figura, dividida entre a mãe e o futuro na capital, podemos, com boa vontade, ver embrião da libertária Monika, protagonista de Monika e o Desejo, pois, de maneira semelhante, ela quer expandir-se para além dos grilhões impostos socialmente (comportamento pouco atribuído às mulheres da época). E como não evocar Charlotte e Eva, de Sonata de Outono¸ quando vemos a mãe ao piano? Ligações (provavelmente forçadas) à parte, Crise vale o quanto pesa sozinho.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Doses Homeopáticas #33


JOGOS VORAZES: A ESPERANÇA PARTE 1 padece de um problema causado por sua concepção mercantil. Não li o original literário no qual a trama se baseia, mas a divisão o último livro da série em dois filmes – claramente uma decisão de mercado, apoiada em experiências anteriores que deram certo financeiramente – faz com que este apenas impulsione o fechamento que virá a seguir, levantando uma série de questões que (espero) serão aprofundadas na sequência direta. Ainda assim, é um entretenimento muito longe da banalidade, que expõe – às vezes de maneira um tanto ingênua, noutras com muita inteligência – tanto os mecanismos que regem os governos totalitários quanto as engrenagens das uniões rebeldes. Não basta ser valente, lutar por um ideal, é necessário parecer, e nisso o personagem de Philip Seymour Hoffman é emblemático, pois à frente do marketing que visa criar um mito encorajador, o Tordo que liderará as massas contra os desmandos da Capital. Mesmo tropeçando, a série continua no bom caminho.


Assim como em O Guia Pervertido do Cinema, o filósofo/teórico/crítico social esloveno Slavoj Žižek dá em O GUIA PERVERTIDO DA IDEOLOGIA uma verdadeira aula de minuciosa decodificação dos processos ideológicos, tendo como referência fundamental o cinema. Ele passeia por cenários de filmes de Martin Scorsese, John Frankenheimer, James Cameron, entre outros, para expor mensagens por trás das ideias superficiais do cinema. Assim, é muito interessante, por exemplo, a análise do que é absorvido geralmente como evidência da luta de classes em Titanic, mas que, segundo ele, não passa da reafirmação da soberania burguesa. Žižek também toma como base de sua explanação, de sua verborragia impressionante, os regimes fascistas, fazendo relações entre os mesmos e os mecanismos capitalistas. A religião também é questionada, assim como a própria ideia de ateísmo. O GUIA PERVERTIDO DA IDEOLOGIA é mais uma amostra do porquê Žižek ser considerado um dos grandes pensadores da atualidade.



SÉTIMO até começa bem. A ideia do sumiço das crianças no percurso escada abaixo do prédio onde moram, enquanto o pai desce pelo elevador, é bem interessante e propõe uma busca fisicamente retida naquele espaço específico. Contudo, ao passo que se desenvolve, o filme do diretor Patxi Amezuca vai perdendo o pouco fôlego que tinha inicialmente, sobretudo por conta do roteiro que aposta demais numa dinâmica que logo se vicia: surge um novo suspeito; descarta-se o novo suspeito. Não há, em princípio, nada de errado com o procedimento, desde que se mantenha um pouco de tensão entre uma desconfiança e outra. Ricardo Darín não consegue salvar o próprio personagem – tampouco o filme em sua totalidade – de um esquematismo incômodo. Há referências visuais que soam como pistas, mas que não dão em nada, como as constantes tomadas que contrapõem escadas espiraladas e elevadores.  SÉTIMO caminha a passos largos para o fim decepcionante que de fato vem. Aliás, decepcionante não, pois o próprio rumar trôpego já dava a ideia de que aquilo não poderia acabar bem.

domingo, 7 de dezembro de 2014

Instinto Materno


Não é de hoje que o cinema romeno se destaca no cenário das produções europeias. Particularmente, uma geração recente de artistas parece empenhada em acertar contas com o passado, expondo heranças que a ditadura Ceausescu legou ao povo. Filmes de tons muito diferentes como 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias e A Leste de Bucareste, por exemplo, apresentam, cada qual à sua maneira, uma vontade latente de entender a Romênia de outrora que, ainda hoje, se vê presa a velhos fantasmas. Instinto Materno é, a princípio, um filme sobre a obsessão de Cornelia (Luminita Gheorghiu) pelo filho de 32 anos, Barbu (Bogdan Dumitrache), a quem ainda trata como criança desamparada e dependente de seus cuidados constantes. Mas essa relação expõe algumas fraturas sociais alusivas ao todo, ou seja, vai do micro ao macro.

A mulher que seduz a empregada para dela tirar informações a respeito de trivialidades, tais como a arrumação da casa do filho e outros insumos de críticas dirigidas à nora (vista inevitavelmente enquanto rival), é também capaz de tudo que estiver ao alcance para minimizar a punição ao mesmo filho que logo vai matar por atropelamento um menino de 14 anos. Na delegacia, confronta autoridades, alheia à dor da família que chora a perda definitiva de um ente querido. Cornelia só quer salvar Barbu, mesmo que para isso precise adulterar depoimentos e comprar a ética do outro. Aliás, a polícia que no calor do momento se mostra arredia à arbitrariedade da senhora de alta classe, em menos de 24 horas aparece “domesticada” por sua teia de contatos nas mais altas esferas, e, mais ainda, dispondo disso para proveito próprio.

O cineasta Calin Peter Netzer mantém esteticamente o itinerário do cinema romeno contemporâneo, ou seja, câmera na mão e situações apresentadas de maneira seca, sem floreios visuais. A pegada social não se dá como que impressa num panfleto, surge nas entrelinhas, menos no puro contraponto da vida burguesa com a massa desamparada, e mais no poder dos abastados que, invariavelmente, serve para alargar ainda mais o abismo existente entre seus direitos/deveres e os equivalentes da camada menos favorecida. Cornelia, então, de alguma maneira representa o Estado obcecado por controlar a vida de seus “filhos”, estes cada vez mais acuados diante de desmandos travestidos de cuidado, de atenção. Mesmo nas cenas de emoção, Netzer ressalta o calculismo dessa protagonista preocupada com seu lado, ou, quando muito, em abrandar o peso da própria consciência.

A jornada da mãe em busca da salvação do filho se confunde com a própria necessidade que ela tem de sentir-se no domínio, onipotente diante de qualquer adversidade. Aliás, o controle lhe é muito caro, parte indissociável tanto de sua classe social, quanto da própria índole por ela moldada. Quando Barbu diz ser necessário a geração da mãe desaparecer, não se refere apenas a rusgas num nível íntimo, mas à mentalidade que subjuga fracos para manter-se hegemônica.  Instinto Materno faz da dinâmica entre mãe e filho um exemplo vivo da necessidade de impor limites aos dominadores, isso se quisermos igualdade e liberdade.


Publicado originalmente no Papo de Cinema