sábado, 25 de julho de 2015

Os Pássaros


Talvez seja tentadora demais, pois evidente, a leitura psicológica de Os Pássaros (1963), um dos filmes emblemáticos de Alfred Hitchcock, ainda modelo no que diz respeito à construção da atmosfera de suspense e, muitas vezes, de terror. A verdadeira guerra empreendida pelos pássaros que tomam de assalto a pequena Bodega Bay, cidade próxima à São Francisco, pode ser facilmente lida como uma espécie de projeção material do ciúme de Lydia Brenner (Jessica Tandy), mãe que vê a linda e afamada Melanie Daniels (Tippi Hedren) como ameaça, já que ela anda às voltas com seu filho Mitch Brenner (Rod Taylor). Aliás, esse ângulo de percepção é oferecido quase de bandeja pelo próprio Hitchcock, numa determinada conversa entre Melanie e a antiga pretendente de Micth.

Contudo, são vários os elementos que, encadeados com precisão, conferem complexidade ao filme. Exemplo é o contraste marcado entre metrópole e interior, artifício longe de ser banal, já que expõe no idílio costeiro uma dinâmica de relacionamentos regida por códigos morais um tanto retrógrados. Há, ainda, a criação da tensão sexual entre os protagonistas, de início numa loja de pássaros (em cena de igual teor de sutileza e eficiência) e gradual ao longo da narrativa, a posterior chegada de Melanie a Bodega Bay, o primeiro e aparentemente aleatório ataque de uma gaivota, a constatação de que fisicamente mãe e pretendente se parecem (mais psicologia na veia), entre outros. Tudo converge ao caos que logo se instalará.

Claro que a decorrência de mais de 50 anos faz com que os efeitos especiais soem datados. Entretanto, ater-se em demasia às “rugas” do longa pode provocar um desvio capital entre o espectador e o suspense. Para relativizar a importância de tais marcas do tempo, basta perceber que a força do filme se dá no engenho narrativo. Cada revoar de um pássaro ganha em significância para além da imagem “presente”, isso por que somos levados desde o início, e aos poucos, a perceber todo movimento aéreo como suspeito e até mesmo mortal. A cena na qual os corvos vão se reunindo, um a um, pousados no brinquedo no pátio da escola local, é prova disso. Em princípio nada demais, ainda que com aquele exagerado ajuntamento, mas de fato sentimos o temor latente, silencioso, uma vez que entendemos de antemão o perigo da espreita.

Outro fator a se ressaltar em Os Pássaros é a criação sonora, sobretudo no que diz respeito aos trinados das aves em ataque – mescla de arranjos orgânicos e experimentações eletrônicas –, componente responsável por amplificar ainda mais o que está sendo transmitido no plano das imagens. Aliás, em Os Pássaros sons e imagens não duelam por atenção, se complementam, cada qual em sua função de provocar as reações que o manipulador (no bom sentido da palavra) Hitchcock quer que tenhamos enquanto espectadores de sua criação. Uma refilmagem – como há algum tempo se anuncia – só atualizaria o que o filme tem de ordinário, ou seja, os pássaros em si, certamente muito mais verossímeis com os recursos tecnológicos de hoje, mas possivelmente nem por isso aterrorizantes em semelhante medida. Afinal, técnica sem recheio é só técnica.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

domingo, 19 de julho de 2015

Doses Homeopáticas #47



GREMLINS é um conto de Natal macabro e muito bem-humorado. O garoto ganha uma criatura estranha que todos tomam por exótica. Ao molhá-la, ela se multiplica. Alimentando os outros depois da meia-noite, cria uma espécie assassina e zombeteira. O diretor Joe Dante arruma tempo, em meio à correria provocada pelos pequenos monstros que tocam o terror na cidade, para que determinada personagem conte uma história triste, envolvendo um pai de pescoço quebrado e entalado na chaminé pela qual deveria descer com os presentes natalinos. Há muitas homenagens ao próprio cinema, sendo a mais marcante delas a cena em que os gremlins assistem ao clássico Branca de Neve e os Sete Anões, com direito a coro ressoando a música e tudo. Não faltam criaturas sendo moídas em trituradores, atacadas a facadas pela mãe do protagonista, queimadas vivas, assim como os próprios humanos vitimados por flechadas, mordidas, emboscadas e outros tipos mais ou menos explícitos de violência. É um blockbuster daqueles que hoje certamente passariam por uma espécie de esterilização para chegar às telas, sobretudo com a chancela de um grande estúdio. Filme divertido e sinistro na medida certa para entreter e marcar uma época.


Em ENQUANTO SOMOS JOVENS, o casal interpretado por Ben Stiller e Naomi Watts é arrebatado pela jovialidade e o frescor do relacionamento dos personagens vividos por Adam Driver e Amanda Seyfried. O documentarista quarentão começa a usar chapéu, a andar de bicicleta, a se abrir para um mundo menos rígido. Sua esposa segue o ritmo, aprendendo dança, indo a cerimônias de purificação espiritual, etc. Há um paradoxo instaurado na comunicação entre o velho e o novo, já que os jovens ouvem LPs, enquanto os de meia-idade estão completamente viciados em celulares e outras tecnologias digitais, por exemplo. No instante em que o garoto envolve o mais experiente na produção de um documentário, o filme de Noah Baumbach exibe sua segunda camada de importância, instaurada na discussão do próprio cinema enquanto linguagem. Emblemática a cena do diretor controlando remotamente o zoom para captar uma emoção fabricada. O processo de produção do filme coloca em rota de colisão dois criadores, trazendo à tona, além de diferenças geracionais e de formação, uma disparidade no que diz respeito à maneira como ambos encaram o ofício de transformar ações e reações em cinema. Os comportamentos e decisões são relativos, passíveis de ataques e defesas, nesse filme que lança bem mais questões que respostas. 



Hoje em dia, a comédia romântica é um subgênero desgastado, talvez boa parte porque os realizadores não conseguem se desvencilhar de seus lugares-comuns. HARRY E SALLY, a despeito de não ser de “hoje em dia” e de não apresentar necessariamente novidades - a começar por sua vocação de valorizar do amor enquanto sentimento capaz de reduzir qualquer dano-, é um bom exemplo de como trabalhar dentro das convenções sem entregar-se às suas facilidades. Billy Crystal e Meg Ryan formam um casal improvável desde o início. Anos se passam, entre encontros e desencontros, até que eles se tornam grande amigos. Da amizade ao desejo/amor é um pulo. Mesmo que eles não queiram ver, estão apaixonados, curtindo cada momento passado na companhia do outro. Os relacionamentos amorosos são vistos no que eles têm de mais corriqueiro, mas há (e esse é o diferencial do filme) uma fina camada abaixo da superfície que evidencia as dificuldades de manter as ligações afetivas. O diretor Rob Reiner, assim, faz um filme divertido, bem-humorado, no qual inevitavelmente torcemos para que os protagonistas se percebam de verdade e entendam que a amizade já virou amor há muito tempo. O grande trunfo aqui é evitar a canonização do sentimento como algo alheio às dificuldades e, mesmo assim, celebrá-lo como força vital imprescindível. 

terça-feira, 14 de julho de 2015

Refém da Paixão


O início de Refém da Paixão (2013) nos propõe a convivência complexa entre uma mãe e seu filho. Devastada pelo que parece crise depressiva grave, ela dificilmente sai de casa, é pouco mais do que um fantasma que transita pela propriedade interiorana cujo aspecto semiabandonado (gramado por cortar e outros sinais de desleixo) deixa notar a apatia de quem ali mora. O garoto faz o que pode, doando tempo à mãe, fazendo dela sua missão particular. Ele acha que pode cobrir certas lacunas que o pai deixou ao partir, mas já tem idade suficiente para entender que em determinadas searas nada pode fazer para recuperar o ânimo da mãe. A situação ganha tempero novo quando um foragido da justiça se abanca na casa deles.

Na verdade, pode-se dizer que a chegada do forasteiro, que de ameaça, gradativamente, passará a conforto e esperança de uma reconstituição familiar, traz ao mesmo tempo o amor de volta ao itinerário de Adele (Kate Winslet) e um modelo paterno a Henry (Gattlin Griffith). O passado doloroso desse procurado, Frank (Josh Brolin), é desvendado aos poucos, em flashbacks, ao passo que acompanhamos o amadurecimento do garoto que começa a olhar com mais desejo as curvas das colegas. É como se a partir do instante em que vê sua mãe novamente amando, protegida por um homem, ele se sentisse pronto para de fato crescer e ser ele mesmo um homem diante do amor e de suas instâncias. 

Pena o diretor Jason Reitman tratar tudo de maneira dispersiva, fracionada, como se o renascimento sentimental de Adele, a descoberta inusitada de um porto seguro para Frank e o crescimento de Henry não pudessem imbricar-se, assim amplificando-se. Há uma incômoda pendência ao dramalhão, à saturação em detrimento dos matizes intermediários. Se o filme não descamba para algo excessivamente açucarado, isso se deve muito ao trabalho dos atores, que freiam o caráter um tanto piegas conferido à trama pela maneira como ela se desenrola. O filme lembra As Pontes de Madison (1995), pela paisagem semelhante e o desenho de um amor fadado a percalços, mas, claro, não chega perto do brilhantismo alcançado por Clint Eastwood.

Não à toa Refém da Paixão chegou aos cinemas de mansinho, sem qualquer alarde, ainda que dirigido pelo responsável por Juno (2007) e Amor Sem Escalas (2009), além de ser protagonizado por dois conhecidos atores. O caráter anêmico do todo, ocasionado em grande parte pelo desperdício dos possíveis cruzamentos temáticos que poderiam resultar em algo verdadeiramente profundo, fazem dele um filme multifocado e, ao mesmo tempo, negligente.  Longe de ser cansativo, porém, é daqueles longas que vemos numa boa, ainda que persista uma sensação esquisita de falta, ou de tempo para desenvolver melhor a trama dentro da proposta de Reitman, ou mesmo de sensibilidade para tornar complexo o que se apresenta na tela de maneira simplória.  


Publicado originalmente no Papo de Cinema

sábado, 11 de julho de 2015

Doses Homeopáticas #46


MAMMA ROMA é a risada de Anna Magnani, atriz que corporifica a bravura materna levada às telas por Pier Paolo Pasolini. Ex-prostituta, ela busca o filho criado no interior para morar na cidade grande. Acossada pelo cafetão do passado, Mamma Roma precisa cuidar de Ettore para que ele não sucumba às más influências dos jovens vizinhos que vivem de delitos. O subúrbio é o local das ruinas, habitat daquela geração vagante sem eira nem beira, sem perspectivas. A descoberta do amor, a desilusão, o mundo fracionado ao redor, fazem de Ettore um símbolo, assim como Mamma Roma, matrona que sustenta (no sentido emocional e financeiro) o filho para que ele não tenha as mesmas dificuldades. Seja gritando a plenos pulmões na feira livre ou perambulando em conversas reflexivas com outros seres nutridos pelas oportunidades noturnas, Mamma Roma reafirma sua sobrevivência contra todas as probabilidades, personificando como poucos personagens a força do povo italiano que resistiu à guerra e enfrentou de cabeça erguida a miséria e a dor latente do período.


Um privilégio assistir a MORANGOS SILVESTRES em tela grande, numa cópia nova em folha. O homem que sonha com um relógio sem ponteiros e consigo próprio dentro de um caixão, já numa idade em que a morte se aproxima, cruza estradas em busca de uma láurea, refletindo sobre a existência. Em meio às lembranças da infância, ele também rememora relacionamentos conturbados que lhe deixaram marcas indeléveis. Seja dando carona aos jovens ávidos para viver da maneira pulsante, ou mesmo nas conversas com a cunhada que lhe confessa pouca simpatia, o protagonista passa a limpo a própria vida. Assim, exorciza fantasmas que lhe acompanham insistentemente. Ingmar Bergman torna seu ídolo, o também cineasta Victor Sjöström, um personagem emblema que carrega nos ombros a ânsia de quem busca no passado a possibilidade de contemplar, com menos pesar, o presente e o futuro.


DE GRAVATA E UNHA VERMELHA é um filme estruturalmente meio quadrado. Pouco do que se vê é potencializado pela maneira como a diretora Miriam Chnaiderman articula os depoimentos. O entrevistador Dudu Bertholini é apenas um ouvinte privilegiado. Contudo, o documentário possui dizeres fortes, alguns até emocionantes, que dão conta de apresentar a multiplicidade antagônica do binarismo de gênero, verdadeiros desabafos de gente que viveu muito tempo lutando contra o próprio corpo biológico, ou não necessariamente. Ney Matogrosso, Laerte, Rogéria, entre outros menos conhecidos, contam histórias que nos ajudam a entender com um pouco mais de clareza, e menos folclore, por exemplo, a transexualidade. Nos tempos nefastos de Felicianos e Bolsonaros, importante termos filmes como este, que lançam luz sobre questões imprescindíveis, tais como a complexa construção de gênero, suas implicações físicas, psicológicas e sociais. Diante da relevância do documentário, cai bem uma vista grossa às suas fragilidades.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Chuva Negra


Se o detetive Nick Conklin (Michael Douglas) se imaginava encrencado por conta da investigação que vinha sofrendo junto à corregedoria da polícia de Nova Iorque, pois suspeito de roubar dinheiro de evidências, é por que não dimensionava o que estava por vir. Ele e o parceiro Charlie Vincent (Andy Garcia) logo se veem no epicentro de uma disputa sangrenta entre membros da Yakuza, a famigerada máfia japonesa, isso em próprio território nipônico, onde, aliás, não sabem se deslocar e ignoram a língua. A dupla conta apenas com o bom e velho faro investigativo tão ostentado nos filmes estadunidenses, além do intérprete/policial Mashahiro Matsumoto (Ken Takakura), a fim de recapturar aquele que deveriam ter entregado às autoridades locais.

Essa é a trama básica de Chuva Negra (1989), filme dirigido por Ridley Scott, cineasta cujo currículo àquela altura já incluía obras do calibre de Alien: O Oitavo Passageiro (1979) e Blade Runner – O Caçador de Andróides. Se há algo sobre o que possamos nos debruçar, e que confere um pouco de profundidade para além da evidente trama de vingança pura e simples que vai se desenhando aos poucos, é o choque cultural visto nas interações, sobretudo de Conklin e Matsumoto. Enquanto o americano é completamente impulsivo e guiado por seus sentimentos, o japonês é totalmente fiel ao sistema social e profissional ao qual pertence. Porém, como era de se prever pelo caráter ordinário da progressão dramática, aos poucos eles apreenderão o melhor do outro, tornando-se, assim, ambos mais flexíveis.

A reconhecida habilidade de Ridley Scott fica evidente já no início, quando em poucas tomadas somos apresentados à personalidade irascível do protagonista, isso sem a necessidade de demoradas explanações ou coisa assim. Aliás, a imagem dá conta de muita coisa em Chuva Negra. Seu caráter predominantemente sombrio, ressaltado em contraste com as contraluzes que trazem alguma visibilidade em meio a escuridão, cria o clima necessário para, de alguma maneira, segurar nossa atenção, mesmo quando o roteiro toma desvãos que o empobrecem. Em suma, a direção faz o que pode para, no campo visual, salvar uma história que vai por caminhos já bastante conhecidos, com desfechos também não muito difíceis de antever. As sequências de ação são muito bem feitas, outro dos méritos que podemos imputar à direção de Scott, sem dúvida um artesão de valor.

Entre mortos e feridos, Chuva Negra vale, como já dito, por toda construção diretiva que sobrepuja as fraquezas estruturais da trama e suas consequências. Fosse menos uma plataforma para Michael Douglas supostamente brilhar (não por acaso ele também é produtor do longa), mais atento aos coadjuvantes (Andy Garcia, por exemplo, é completamente subaproveitado) e tivesse atenuada sua inclinação por certas convenções do gênero,  e talvez tivéssemos um filme cuja importância pudesse ser vista em si mesmo, e não principalmente nos nomes de sua ficha técnica.  Contudo, se nos concentrarmos apenas na ação – o que é pouco dentro da obra de Scott – não há muito do que reclamar.


Publicado originalmente no Papo de Cinema