David Lynch pinta História Real, filme baseado em fatos,
com tintas absolutamente minimalistas e traços naturalistas muito menos
delirantes que os característicos ao surrealismo, inerente à maioria de seus
filmes. Então próximo do cotidiano, o diretor opera num registro menos onírico,
ainda que tenda a impregnar situações e objetos com sua inconfundível
atmosfera. Na trama, Alvin Straight é idoso, campesino e tipificado, levado em
meio ao descuido pelos vícios da vida. Sua obstinação aparece justo ao ser
confrontado por situação-limite e, mesmo soando frio, sem tanto entusiasmo, ele
percorrerá a estrada tão cara a Lynch para fazer valer princípios afetivos. As vicissitudes
humanas são exploradas de maneira bastante reflexiva e existencial, sobretudo no
que tange o envelhecer.
O ator Richard Farnsworth,
protagonista de História Real, interpreta
lindamente esse senhor de 73 anos, abalado ante a notícia do infarto sofrido
pelo irmão com o qual não se comunica há 10 anos. Straight decide fazer viagem inusitada, percorrendo
centenas de quilômetros num cortador de grama. A força motriz surge dos
encontros, das pessoas sensibilizadas em contato com a história, tão estranha
como bonita, de alguém que não poupa esforços para se reconciliar com o
passado. Lynch filma planos de duração
estendida, minutos sem trégua na monotonia da vastidão desbravada lentamente,
nos proporcionando embarcar nas lembranças detalhadas do velho homem rural,
assim como nos saudosismos e nas relutâncias cotidianas, alimentos de sua
amargura. Buscando o afeto perdido, o protagonista renova parte da vitalidade,
até então em vias de esgotamento.
Os games são, além de indústria
poderosa e lucrativa, a possibilidade de ser quem não somos ou quem gostaríamos
de ser. Em eXistenZ, David Cronenberg parte dos jogos eletrônicos enquanto
simulacros, cuja exacerbação embaralha existências sólidas e fantasiosas
irrealidades. Elevado à instância sacrossanta, pois assim como os mitos
religiosos ajuda a mitigar a dureza de viver, o jogo é apresentado numa igreja
por Allegra Geller, a maior programadora do planeta, espécie de semideusa aos
viciados na fuga proporcionada pela virtualidade. Vítima de conspiração, ela
foge com o estagiário de marketing, Ted Pikul, para salvaguardar sua mais nova
criação, assim como o console feito de vísceras mutantes.
Nesse mundo onde há anfíbios
geneticamente alterados, matérias-primas tanto de armas alimentadas por dentes
humanos quanto de iguarias exóticas, pessoas se conectam ao virtual por meio de
bio-portas instaladas na medula espinhal. Dentro do jogo, Geller e Pikul se
verão cada vez mais enredados numa conspiração semelhante a do início, guerra
declarada entre os partidários e os não-partidários da deformação sensorial ocasionada
pelos games. O sumo de eXistenZ está
na fragilidade do conceito de “verdade”, uma vez que nossa percepção surge de
estímulos nervosos, estes passíveis de manipulação.
Se toda tecnologia é entendida
como extensão do corpo, em eXistenZ
ela amplia os limites mentais, paradoxalmente subvertendo-os. A única
diferença latente entre mundo real e mundo virtual é o livre-arbítrio, conceito
bíblico que designa nossa capacidade de escolha. Mas não estaria Cronenberg,
através das interfaces entre religião e tecnologia, estreitando os dois níveis,
justo ao aproximar o programador egoico de um Deus que nos guia certo por
linhas tortas, ou seja, a seu bel prazer? Assim sendo, dentro do viés
pessimista, fica mais difícil saber se estamos navegando na virtualidade ou à
deriva nas instâncias concretas.
Difícil estabelecer pontes entre Historia Real e eXistenZ. Esforços nesse sentido apontam muito mais ao contrário,
às diferenças. A maior delas talvez guarde relação com os modos de vida e o
entorno onde as narrativas se desenvolvem. Se no filme de Lynch temos ambiente
rural de preceitos tradicionais, no de Cronenberg tudo está diluído numa
geleia-geral de contemporaneidade disforme e imprevisível. Enquanto o americano
parece (aparenta) aquietar-se em terreno menos movediço, optando pelo humanismo
e a linearidade, o canadense se embrenha ainda mais na dicotomia real/irreal,
para isso utilizando a fertilidade dos jogos eletrônicos e os traços da
juventude essencialmente digital e digitalizada.
Lynch se apoia no ator e faz dele
a própria estrada por onde chegaremos ao conhecimento do personagem; já
Cronenberg investe pesado na simulação, no embaralhamento, no meio como
transformador psíquico/biológico do homem.
Por Ana Carolina Grether e Marcelo Müller
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E se a Walt Disney apresentasse
um filme de David Lynch? Em 1999, tal questão aparentemente absurda foi
respondida quando, após ser nomeado a uma Palma de Ouro em Cannes, o drama História Real foi lançado no mercado
norte-americano pelo mesmo estúdio do Mickey Mouse. Também sem precedentes na
carreira de Lynch é a classificação indicativa livre do filme, assim como o
fato do cineasta não ter qualquer envolvimento direto com a produção de seu
roteiro. Ainda que tais apontamentos pareçam depreciativos, História Real é
um dos trabalhos mais tocantes de Lynch, repleto de nuances e emoções
verdadeiras.
David Lynch declarou que História Real é seu filme mais
experimental, uma vez que o realizou independente e cronologicamente enquanto
acompanhava a jornada de seu personagem no mesmo trajeto de 390km que Alvin
Straight percorreu. Richard Farnsworth, indicado merecidamente ao Oscar por sua
interpretação, e Sissy Spacek protagonizam a produção, que não revela traço
característico algum das demais realizações de Lynch, porém sem sua assinatura
dificilmente seria metade do filme que é. Pautado em ações e reações humanas
cada vez mais raras na liquidez da contemporaneidade, Lynch revela em História Real que se o onirismo não fosse tão intrínseco à sua filmografia, sua
obra provavelmente teria a mesma significância e permanência.
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*Turn off your mind,
relax and float down stream …
Em um mundo capitalista, o desejo
existe na realidade construída pelo capital, representado aqui pela produtora
de games Antenna Research, sendo Allegra Geller sua designer-estrela.
Em nossa realidade concreta, os
corpos podem ser manejados de forma pragmática para uma conexão direta através
de cabos e orifícios. Manejo este dessexualizado, pois a realidade que nos dá
acesso ao desejo está do outro lado, no Virtual.
Ted Pikul, virgem (desplugado) e
inibido, precisa do suporte da Fantasia criada por Geller para poder expressar
seu desejo. Fora do jogo, manifestava de forma dessexualizada sua“admiração”
por Allegra. Dentro, rapidamente se vê lambendo orifícios e envolvendo-se
amorosamente com a parceira.
A Fantasia é o suporte do desejo,
é a janela, palco, enquadre em que nosso desejo pode ser encenado. A Fantasia
constrói nossos objetos de desejo, ela permite/ordena o desejo. A ideologia
subjacente ao capitalismo segue a mesma lógica e cria os objetos e as
subjetividades necessárias a sua reprodução. O frentista teve sua vida
“transformada” por um game de Geller. E continua sendo um frentista solitário
em um posto de gasolina no fim do mundo. Mas agora pode rejeitar sua vida
“real” em favor de uma outra, “virtual”. Naquela ele é Deus, criador. Nesta, um
oprimido disposto a matar seu ídolo por dinheiro.
Duas séries perturbam o quadro.
Os revolucionários/terroristas/rebeldes que querem o fim da virtualização da
realidade operada pela “demoníaca” (demiúrgica?) Allegra Geller. É o debate no
nível ideológico, que quer libertar a sociedade das ilusões do Virtual. No
entanto, a liberdade não é uma opção, em nenhum dos níveis:
PIKUL: É óbvio que “livre
arbítrio’ não é um fator importante neste nosso mundinho.
GELLER: É como na vida real. Há apenas o suficiente para torná-la
interessante.
A outra presença disruptiva são
Esses Estranhos Objetos causa do Desejo. Carne, sangue, dentes, ossos.
Corporificam, encarnam um Real para além da realidade. Objetos parciais, partes
de corpos, gosma, apresentam o fracasso de toda busca de unidade, de
unificação. São estranhos, deslocados, estão no lugar errado, aparecem de forma
imprevista.
Cronenberg os apresenta em grande
parte de sua obra. Talvez permitam uma divisão cronológica de sua filmografia,
visto terem desaparecido de seus últimos filmes. Spider seria então o filme-chave/único nesta perspectiva, em que o
Real deixa de ser apresentado de maneira surrealista através destes objetos e
seres e se torna interiorizado em um processo psicótico. E após Spider, Cronenberg parece buscar uma
análise sociológica (notadamente em Cosmopolis),
afastando-se de uma surrealista/psicanalítica. Mas em eXistenZ, ainda são estes Estranhos Objetos que nos atraem e
incomodam...
*So play the game Existence to the
end...
*Tomorrow Never Knows (Lennon/McCartney)