domingo, 24 de março de 2013

Amor


Há quem ame e quem odeie na mesma proporção o cinema de Michael Haneke. Personagens pétreos, hipocrisia social, o fóbico homem contemporâneo e a rigidez nos enquadramentos, são algumas das constantes que sintetizam uma visão genuinamente autoral. De toda forma, é importante constatar: seus filmes não permitem apatia, pois ocasionam movimentos que convidam o expectador ao deslocamento de ideias. Por isso já valem, mesmo que deles não se goste. O mais recente desses exemplares é Amor, sua segunda Palma de Ouro no prestigiado Festival de Cannes (a primeira foi A Fita Branca).

Tudo começa com a invasão policial a um apartamento, onde os homens da lei encontram uma mulher em estado de decomposição. O tempo volta, e então somos convidados a partilhar a situação extremamente dolorosa vivida pelo casal Georges e Annes, quando ela adoece e tem a saúde complicada ainda mais após cirurgia malsucedida e dois acidentes vasculares cerebrais. Das pequenas adaptações iniciais à crescente presença velada da morte, os octogenários ser viram como podem. Imbuído do que parece sentimento incondicional, Georges refaz a vida em função da amada cujos dias resumem-se a cuidados.

Há de se esperar lágrimas e mais lágrimas no desenrolar da trama, afinal não é apenas a falência do corpo (a ela) e a iminente perda do amor (a ele) que se anunciam, e sim a própria finitude, lenta e sorrateira. Todavia, Haneke conduz tudo com muita sobriedade, longe de rompantes chorosos e contendo níveis emocionais. Mesmo na interação com a filha (Isabelle Huppert em especial participação), Georges transmite serenidade. Homem de artes – gosta de música e livros, ele entende seu papel de amortizar ligeiramente a frustração constante da esposa e para isso se precisa forte. Aliás, em Amor, os intérpretes principais, Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva, surgem co-autores de um trabalho muito dependente deles.

Pela primeira vez, Haneke volta lentes a algo mais privado que público. Explico. Seus filmes anteriores partiam de situações pontuais para sublinhar criticamente conjunturas maiores, complicações morais e éticas impostas ao homem pela coletividade. O toque hanekeniano confere agudeza idiossincrática a essas narrativas contestadoras, mas não parece moldar-se sem pequenos solavancos a trajetórias, como a de Amor, que clamam por pulsação íntima e pessoal.  O cartesianismo usual do diretor acaba quase comprimindo aspectos humanos que, por paradoxo, são relevados nas brilhantes atuações de Trintignant e Riva. Sendo assim, Amor é bonito à sua medida e duro de modo bastante particular, ainda que paire sobre ele certa fleuma.  


Publicado originalmente no Papo de Cinema

terça-feira, 19 de março de 2013

A fêmea e O Poder da Sedução


Muito influenciado por romances policiais baratos, o noir respira pelos poros da femme fatale, aquela que subverte a fragilidade tão atribuída à mulher, transformando aparências e convenções em álibis. Determinados filmes mais atuais acabam denominados neo-noirs justamente por se apropriarem de elementos característicos desse gênero destacado no passado. O Poder da Sedução, de 1994, se insere entre tais herdeiros, sobretudo, porque é centrado na figura maquiavélica de Bridget Gregory, interpretada por Linda Fiorentino.

Ela é mulher de natureza fria e calculista, sem métrica em consequências ou preocupações com o alheio. Primeiro rouba o marido traficante em plena Nova Iorque e depois engendra um interiorano numa espiral de sexo, mentiras e sordidez. Está, assim, nela o material de valia para interpretações, e quem bem atentou para sua riqueza, até para a diferença por ela explicitada entre a femme fatale clássica e a contemporânea, foi o filósofo Slavoj Žižek (ver aqui).

Pena esse tipo tão representativo estar inserido num contexto cinematograficamente pobre, cujos maiores problemas são mesmo o roteiro frouxo (previsibilidades e trajetórias erráticas) e uma direção nada além de burocrática. Dessa maneira, o filme desenrola-se com algum interesse muito mais pela trama abertamente novelesca que por eventuais méritos formais. Tanto é verdade que mesmo a personagem forte de Linda Fiorentino pode até soar maniqueísta, pois emblema solitário de um dos mais influentes gêneros do cinema. 

quinta-feira, 14 de março de 2013

Tempos Modernos


Que tempos modernos são os esquadrinhados por Chaplin num de seus filmes icônicos? A hora e a vez das máquinas, da automatização que joga humanos na sarjeta, da desolação como efeito colateral do inevitável progresso? Lançado em 1936, Tempos Modernos é uma das muitas realizações inesgotáveis desse inglês criador do vagabundo mais famoso. Chaplin é celebrado, sobretudo, como gênio da pantomima, mas seu proporcional talento diretivo manifesta-se logo na abertura, quando há justaposição de ovelhas marchando e homens em multidão, ou seja, numa produção de sentidos pela via da montagem ideológica. Como veremos, será a primeira das muitas sequências antológicas contidas no filme. Artista completo, Charles Spencer Chaplin foi, quem sabe, o mais importante do cinema.

Em Tempos Modernos ele começa funcionário siderúrgico, apertando parafusos num ritmo alucinado. Seus músculos e nervos acostumam-se ao movimento laboral, repetindo-o involuntariamente durante períodos de folga. Escolhido cobaia do invento que busca alimentar operários enquanto eles trabalham, é acossado pela máquina defeituosa a lhe empurrar arruelas garganta abaixo e, sob estresse, vê-se internado após causar tumulto na empresa do patrão que esbraveja no aparelho de vídeo. Então saído do hospital, Chaplin é confundido com líder comunista e acaba por encontrar uma órfã, vítima do mesmo entorno social que faz dele pária (desempregado e sem condições de aplacar sua fome). Surge entre os dois a cumplicidade quase infantil, como se alienados do mundo degradado eles vivessem o sonho possível.

Tempos Modernos é obra questionadora, coloca em xeque a revolução industrial e os rumos sociais da América prostrada ante uma crise financeira sem precedentes. Mostra enquanto típica comédia chapliniana, ou seja, repleta de risos e melancolia, o paradoxo brutal da sociedade que avança sobre um manancial de desempregados miseráveis, profetizando a iminência do mundo bastante polarizado entre o homem e a máquina. Tecnicamente virtuoso, possui alguns enunciados verbais (geralmente palavras de ordem) e também a exploração precisa de ruídos. Aliás, o uso do som é muito engenhoso como provocador de significâncias ao longo de sua duração. Chaplin era refratário às sonoridades, mas soube utilizá-las com sabedoria diante da necessidade.

São inúmeras as cenas inesquecíveis de Tempos Modernos. Além das já citadas, não se pode negligenciar Carlitos passando através das engrenagens, ingerindo cocaína acidentalmente na cadeia e o famoso número musical que protagoniza. Resistente com o cinema falado, Chaplin disfere golpe de mestre ao promover a fala de Carlitos na incompreensível mistura de francês, italiano e espanhol, pois assim curva-se à tendência de produção ao passo que mantém fidelidade às suas convicções. O personagem despede-se do cinema na estrada, visto de costas sem mais falar ou mesmo expressar-se por outros caminhos. Dessa forma, Tempos Modernos marca o derradeiro momento do terno vagabundo, sem espaço num mundo essencialmente desumano.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

terça-feira, 5 de março de 2013

A Sombra do Inimigo


O psicólogo e detetive Alex Cross é a criação mais emblemática de James Patterson, ex-executivo que conciliou publicidade e literatura durante muito tempo. O autor e seu rebento receberam considerável notoriedade quando vertidos ao cinema, primeiro em Beijos que Matam e depois em Na Teia da Aranha, filmes estrelados por Morgan Freeman com relativo sucesso de público.  Mirando justamente algo de continuado potencial mercantil, chega às telas A Sombra do Inimigo, recomeço da franquia a cargo de Rob Cohen, homem por trás de Velozes e Furiosos e Triplo X, entre outros.

Nessa nova empreitada, o Dr. Alex Cross caça um sádico de músculos retesados que seda vítimas com a droga do momento para depois torturá-las. A trilha de corpos leva a um alto executivo, possível alvo final que precisa, então, ser protegido pela força da lei. A seguir, o primeiro de diversos clichês. O inquérito passa ao foro pessoal quando o facínora decide aterrorizar os policiais ocupados em capturá-lo. Esposas e namoradas são acuadas e os próprios investigadores serão encurralados.  Tal inversão, matéria-prima de bons momentos em longas similares, aqui só faz emergir uma das muitas fragilidades do enredo.

Nem o luto e a vendeta (elementos de considerável potencial) temperam A Sombra do Inimigo. A figura central é rasa, tanto pela atuação equivocada de Tyler Perry quanto por culpa do evidente desleixo diretivo na construção dramatúrgica. Aliás, o quesito interpretação é salvo - vejam só - por Matthew Fox (o Jack do seriado Lost) único a não operar totalmente no automático. Em que pese à base fraca, sobressai-se o trabalho preguiçoso do diretor Rob Cohen, incapaz justamente de transformar o amontoado de lugares-comuns do roteiro (incluindo aí um grande vilão que desvela detalhadamente seus planos no ato final) em algo minimamente instigante.

Entre mortos e feridos, se salva pouca coisa em A Sombra do Inimigo. Se para capitalizar sobre Alex Cross os produtores continuarem esse caminho, ou seja, reduzindo as faculdades dedutivas do protagonista em tramas ordinárias guiadas por profissionais de talento questionável, é bom mesmo contar com a condescendência do público. Nada muito difícil, vide os recentes êxitos (grandes e médios) que do mesmo modo apostaram na passividade da plateia e saíram vitoriosos. Num mundo justo, A Sombra do Inimigo serviria apenas para preencher madrugadas televisivas, e olhe lá. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema