Há quem ame e quem odeie na mesma
proporção o cinema de Michael Haneke. Personagens pétreos, hipocrisia social, o
fóbico homem contemporâneo e a rigidez nos enquadramentos, são algumas das
constantes que sintetizam uma visão genuinamente autoral. De toda forma, é
importante constatar: seus filmes não permitem apatia, pois ocasionam
movimentos que convidam o expectador ao deslocamento de ideias. Por isso já
valem, mesmo que deles não se goste. O mais recente desses exemplares é Amor, sua segunda Palma de Ouro no
prestigiado Festival de Cannes (a primeira foi A Fita Branca).
Tudo começa com a invasão
policial a um apartamento, onde os homens da lei encontram uma mulher em estado
de decomposição. O tempo volta, e então somos convidados a partilhar a situação
extremamente dolorosa vivida pelo casal Georges e Annes, quando ela adoece e
tem a saúde complicada ainda mais após cirurgia malsucedida e dois acidentes
vasculares cerebrais. Das pequenas adaptações iniciais à crescente presença
velada da morte, os octogenários ser viram como podem. Imbuído do que parece
sentimento incondicional, Georges refaz a vida em função da amada cujos dias resumem-se
a cuidados.
Há de se esperar lágrimas e mais
lágrimas no desenrolar da trama, afinal não é apenas a falência do corpo (a
ela) e a iminente perda do amor (a ele) que se anunciam, e sim a própria finitude,
lenta e sorrateira. Todavia, Haneke conduz tudo com muita sobriedade, longe de
rompantes chorosos e contendo níveis emocionais. Mesmo na interação com a filha
(Isabelle Huppert em especial participação), Georges transmite serenidade.
Homem de artes – gosta de música e livros, ele entende seu papel de amortizar ligeiramente
a frustração constante da esposa e para isso se precisa forte. Aliás, em Amor, os intérpretes principais, Jean-Louis
Trintignant e Emmanuelle Riva, surgem co-autores de um trabalho muito dependente
deles.
Pela primeira vez, Haneke volta
lentes a algo mais privado que público. Explico. Seus filmes anteriores partiam
de situações pontuais para sublinhar criticamente conjunturas maiores,
complicações morais e éticas impostas ao homem pela coletividade. O toque
hanekeniano confere agudeza idiossincrática a essas narrativas contestadoras, mas
não parece moldar-se sem pequenos solavancos a trajetórias, como a de Amor, que clamam por pulsação íntima e
pessoal. O cartesianismo usual do
diretor acaba quase comprimindo aspectos humanos que, por paradoxo, são
relevados nas brilhantes atuações de Trintignant e Riva. Sendo assim, Amor é bonito à sua medida e duro de modo
bastante particular, ainda que paire sobre ele certa fleuma.
Publicado originalmente no Papo de Cinema
Haneke tem crédito, e mesmo apenas uma espiadinha em seus filme já nos revela muito.
ResponderExcluirAbraços