A rotina do paramédico Frank
Pierce (Nicolas Cage) é feita basicamente de estresse. O protagonista de Vivendo no Limite (1999) atende
emergências durante a madrugada, período em que Nova Iorque parece um
purgatório, quando não o próprio inferno. No início dos anos 1990, a cidade figurava
entre as mais violentas do mundo, inclusive diferente do passado marginal que Scorsese
já havia abordado, dos pequenos núcleos de brutalidade, nichos de gângsteres,
sobretudo na periferia. Tudo se generalizou, a Big Apple ardia em chamas,
consumida por sua incapacidade de incluir a todos. Nesse cenário, Frank é,
antes de qualquer coisa, uma testemunha que vaga moribunda e condenada a
sofrer.
Frank vê fantasmas, principalmente
Rose, menina cuja morte ele não conseguiu evitar. Esse “espírito” insistente o
lembra de sua impotência diante de certos casos, algo não muito bem assimilado
por esse salvador que há muito tempo não salva alguém. Há quem diga que Frank é
uma espécie de primo-irmão de Travis, o protagonista de Táxi Driver:Motorista de Táxi (1976), já que ambos são
perturbados pela existência da “escória”, vagam insones à noite, e, lá pelas
tantas, assumem para si o projeto de salvação de uma garota, como se bem
sucedidos estivessem salvando a si próprios. Levando em consideração as
semelhanças citadas e o fato dos mesmos Martin Scorsese (direção) e Paul
Schrader (roteiro) estarem à frente dos dois filmes, veremos que a aproximação
não é de todo forçada e tem lá suas razões de ser. Mas enquanto Travis quer
acabar com a “escória”, Frank parece mais disposto a acalentá-la, orientá-la,
tal e qual um anjo da guarda cheio de marcas de cansaço.
Assim, de chamado em chamado,
Frank e seus parceiros de ocasião resgatam bêbados, suicidas, vagabundos e
traficantes, levando-os a hospitais superlotados e sem equipamento, onde a
ordem de chegada determina quem morre e quem vive. Toda essa pressão é demais
para Frank, que se refugia no álcool, no café, e às vezes na exacerbação do
trabalho, para tentar diminuir a angústia que ameaça paralisá-lo. Vivendo no Limite se equilibra bastante
entre perdição e salvação, algo inerente à doutrina cristã presente na formação
e nos filmes de Scorsese. Nicolas Cage, por sua vez, constrói um dos papeis
fundamentais de sua carreira, o narrador desgraçadamente privilegiado da
urbanidade noturna, das doenças sociais que se proliferam rapidamente num meio
degradado. O inferno não são os outros, somos todos.
Nos balanços a respeito da
carreira de Martin Scorsese poucas vezes Vivendo
no Limite é citado como um dos trabalhos memoráveis. Injustiça pura, pois,
a meu ver, está perfeitamente alinhado e proporcional aos frequentemente celebrados.
Nele, há observação do estado das coisas, do mal-estar congênito da civilização
em vigor. Quanto ao protagonista, razão de ser do filme, Frank entende a duras
penas que não pode impedir tudo de ruim ao seu redor, com isso alcançando
relativa paz. Grosso modo, está ali para socorrer e não literalmente salvar,
função esta pesada demais para meros e limitados mortais.
Belo texto, Celo, para, o que ao menos parece, um belo filme.
ResponderExcluirGrande abraço.