Assistir a CIDADÃO KANE em tela
grande é algo quase solene. Orson Welles trabalha com uma gama impressionante
de procedimentos para construir a vida do magnata Charles Foster Kane. Tudo
transcorre como uma investigação jornalística, o que confere dinamismo singular
à narrativa. Welles, então um garoto dirigindo seu primeiro longa-metragem,
inovou em diversos aspectos, demonstrando a criatividade que o levou a ser
considerado um dos maiores cineastas de todos os tempos, inclusive a despeito
dos problemas que teve durante o restante da carreira com os produtores. A
profundidade de campo, a cenografia, o uso do forte jogo expressionista de
luzes e sombras, são muitos os artifícios que mostram como esse filme está à
frente de seu tempo. Orson Welles consegue apresentar a ambição desmedida do
protagonista, ele que não se importa em transformar seus jornais em veículos
sensacionalistas, desde que a tiragem aumente constantemente, assim como sua
psique fraturada por traumas do passado, moldes de uma personalidade
essencialmente carente. Um dos grandes filmes da história, daqueles que a cada
audiência apresenta algo novo que salta aos olhos.
No início de QUANDO MEUS PAIS NÃO
ESTÃO EM CASA há a impressão de que não vamos aguentar aquele garoto malcriado
por muito tempo. É uma traquinagem atrás da outra, na escola ou com a empregada
filipina recém-contratada pelos pais, a quem ele faz questão de tratar mal.
Contudo, aos poucos, a câmera quase invisível de Anthony Chen vai capturando as
dificuldades de cada um, do pai que perde o emprego e se vê acuado pela
situação econômica complicada de Singapura, da mãe que testemunha a demissão
dos colegas de trabalho e da própria Therry, jovem que migrou em busca de
melhores oportunidades. Nesse mundo de adultos se engalfinhando por ocupação,
sobra para o menino, que reage da maneira como pode, chamando atenção à própria
impossibilidade de entender a turbulência, inclusive emocional, pela qual
passam os adultos ao seu redor. Anthony Chen é carinhoso com os personagens,
mas nem por isso deixa de jogar em seus ombros o peso das consequências, a
realidade nua a crua de uma sociedade em que a falta de perspectivas abate sem
dó nem piedade. A privação não é apenas financeira, mas, sobretudo emocional,
nesse belo drama familiar de ressonâncias tão sutis quanto fortes.
A DOCE VIDA é um daqueles filmes
acima do bem e do mal. Marcello é um jornalista de trânsito livre pelas mais
diversas esferas da sociedade italiana, sobretudo a romana. Cobre eventos
díspares, tais como as peregrinações religiosas e o mundo do próprio cinema.
Como personagem, sua maior função é catalisadora. As andanças deflagram uma
sociedade religiosa (ou, ao menos, ainda bastante influenciada pelos preceitos
católicos), fútil, afeita ao sensacionalismo e cultora de valores fugazes. A
burguesia é vista como um exemplo latente de certa letargia, de um povo
inanimado e tomado pelo fastio existencial. Mastroianni flerta e eventualmente
conquista mulheres, mantém relacionamento sério com uma garota patologicamente
ciumenta, testemunha a fé sendo feita mercadoria midiática, passeia pelos
salões da aristocracia endinheirada, fica à espreita nas calçadas do centro de
Roma, de onde sempre se pode sair com uma boa história, isso enquanto
gradativamente vai enterrando suas aspirações literárias, o desejo de fazer
arte, uma arte simples, destituída de retóricas. Federico Fellini faz uma
obra-prima, do tipo que podemos ver repetidas vezes sem lhe esgotar. Listas
suas cenas antológicas seria estender demais o texto. Coisas de um tempo em que
o cinema italiano era, senão o mais, um dos mais importantes do mundo.
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