A ideia clássica do roubo no qual
um dos bandidos engana seus comparsas para safar-se sozinho com o dinheiro é
utilizada na abertura de Femme Fatale
(2002), filme de Brian De Palma. À tensão evidente da operação é acrescida boa
dose de sensualidade, por conta da bela cena de sexo entre a mulher que logo
depois passará a perna em seus parceiros e a atriz que ostenta milhões na joia
que adorna seu corpo numa premier do
Festival de Cannes. Laure (Rebecca Romijn) é essa ladra que se vale da
combinação de perspicácia e sensualidade para conseguir o desejado. Na fuga,
perseguida tanto pela polícia quanto pelos remanescentes do bando, ela se
depara com uma incrível coincidência que lhe dará a chave para a salvação
momentânea.
Brian De Palma é, antes de tudo,
um cinéfilo. Assim, normal que em seus filmes transbordem referências e
reverências. Não por acaso, em Femme Fatale
a protagonista assiste Pacto de
Sangue (1944), de Billy Wilder, clássico do gênero noir no qual a mulher fatal interpretada por Barbara Stanwyck
utiliza da mesma maneira seus encantos para alcançar objetivos escusos.
Voltando ao filme de Da Palma, nele o fotógrafo interpretado por Antonio
Banderas logo se vê enredado pela combinação de perigo e volúpia. Ele é a
típica vítima da femme fatale, pois
no lugar errado, na hora errada e suscetível aos encantos da mulher, esta
primeiro vulnerável a fim de suscitar seu senso de proteção e depois forte a
ponto de subjugá-lo, física e intelectualmente.
Femme Fatale é um exercício de estilo. Não fosse a assinatura de
alguém prestigiado e certamente passaria quase despercebido entre tantos filmes
lançados do mercado, pois calcado em coincidências improváveis, cujas
justificativas não encontram base nem mesmo em qualquer viés paródico, e num
movimento de reviravolta tão canhestro quanto estranho. A protagonista se vê
diante de um “duplo” bem quando na encruzilhada. Desse encontro inusitado saem a
sequência da trama e, posteriormente, o truque bem mequetrefe que permitirá uma
segunda chance. Déjà Vu? Sonho? Vidência? Como podemos classificar esse
movimento de conseqüências um tanto moralistas, que mostra ao espectador algo
para depois lhe puxar o tapete debaixo dos pés? O problema não é o artifício em
si, utilizado com mais competência em outras ocasiões, mas o que deriva dele.
A própria conduta da protagonista
após a famigerada guinada contradiz os preceitos da femme fatale. Não que a distorção do cânone seja em si um problema,
mas isso desde que integrada a uma proposta toda ela de subversão, o que não é
o caso. Acaba que o tema da “segunda chance” se sobrepõe a tudo: à trama
criminal, à personalidade da protagonista e ao envolvimento dela com os demais
personagens. Femme Fatale é um dos
típicos tropeções de De Palma, daqueles que, ao menos, resultam de sua
constante busca pelo risco. Em meio a uma carreira repleta de grandes
realizações, nada que comprometa.
Publicado originalmente no Papo de Cinema
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