quinta-feira, 25 de junho de 2015

Ninfomaníaca: Volume II


Há uma clara mudança de tom entre as partes I e II de Ninfomaníaca (2013). A sequência praticamente abole as gracinhas visuais e outras distrações que tornavam certas passagens burlescas além do devido.  A própria Joe (Charlotte Gainsbourg) se incumbe de recriminar as inúmeras associações, entre equações matemáticas e técnicas de pescaria, que Seligman (Stellan Skarsgard) fez até então para enquadrar seu vício em determinados padrões. Outro elemento que dá novo sentido ao diálogo central é a revelação da natureza do homem que, em princípio contraposto à protagonista, talvez seja o melhor ouvinte que ela poderia desejar. A partir daí, ele se afasta naturalmente da figura de confessor e/ou analista e passa a ouvi-la como um amigo.

A passagem de Joe para a vida adulta também torna as coisas mais, digamos, sombrias. É como se na adolescência fossem menos destrutivos os impulsos da protagonista, pois ainda sem a carga das responsabilidades que naturalmente vêm com o tempo. Assim, fica ainda mais difícil para ela conviver com a brutal dissociação entre sexo e amor. Amando, ela pouco ou quase nada sente fisicamente; gozando, ela parece impossibilitada de desfrutar das benesses do amor.  Por outro lado, seu marido Jerome (Shia LaBeouf) sente cada vez mais o peso de não satisfazê-la, o que num primeiro momento será resolvido por meio da abnegação, mas que não tardará a entrar num terreno labiríntico de solução aparentemente inviável.

Lars von Trier aborda esses dilemas em Ninfomaníaca: Volume II com muita agudeza, apresentando o sofrimento dos personagens como conseqüência de suas particularidades elementares. Os paralelos entre as situações, sobretudo os intercursos sexuais, e a religião, sendo o melhor deles aquele que toma como exemplo as diferenças cabais entre cristianismo ocidental e oriental, estão ali para chocar os velhos dogmas das crenças com as pulsões humanas. Uma discussão sobre gêneros, mais para o final,  tem essa mesma função, a de fazer de Joe uma extremidade pela qual chegaríamos a contendas tão enraizadas como incontornáveis em nossa sociedade. 

O grande pecado do projeto Ninfomaníaca foi sua divisão em duas partes, uma vez que elas se complementam, formando um todo coeso e bastante pungente. O que não se deixa ver na primeira parte absolutamente prejudicada por um excesso de artifícios, aparece na crueza da segunda parte, tanto que ela ilumina de maneira insuspeita os expedientes engraçadinhos demais de sua antecessora. É como se von Trier nos levasse à queda livre após breve e um tanto entediante vôo de paraquedas. No cenário de degradação que caracteriza Ninfomaníaca: Volume II, o autoconhecimento pode ser o caminho, não para a redenção, mas rumo à compreensão para viver relativamente em paz com as próprias questões. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

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