Donnie Darko (Jake Gyllenhaal) é
um adolescente problemático e, como tal, toma pílulas, remédios para aliviar
sua estranheza diante do mundo. O sonambulismo o faz escapar de um acidente
bastante improvável, aliás, escapar da morte certa quando uma turbina de avião,
vinda sabe-se lá de onde, destrói seu quarto no meio da noite. Donnie começa a
ter visões, no que pensamos, em princípio, ser agravamento de seu estado
patológico. Frank, o amigo imaginário, homem evidentemente fantasiado de coelho
bizarro, logo anuncia o fim do mundo para dali 28 dias 06 horas 42 minutos e 12
segundos. Donnie é o único que sabe a respeito da data prevista para o fim, mas
isso não parece alarmá-lo mais do que as questões cotidianas, do que as
pequenas e grandes farsas que constroem o dia a dia.
Donnie Darko (2001) adquiriu status com o passar do anos. Suas conjunturas
envolvendo viagens no tempo foram, desde a estreia, o viés principal da maioria
das análises, muitas delas realmente empenhadas em achar saídas para
determinados labirintos, em solucionar alguns enigmas que soam nebulosos mesmo
quando acaba a sessão. Isso tudo criou um verdadeiro culto em torno da primeira
realização de Richard Kelly, o que, por conseguinte, fez do cineasta alvo da
atenção dos agora seus fãs. Entretanto, não me parece que o filme deva ser
celebrado necessariamente por suas áreas cinzentas, mas sim, e sobretudo, pelas
relações que estabelece claramente com o intuito de fazer emergir um painel crítico
das enfermidades que minam a saúde da sociedade norte-americana.
O filme também possui diversas
observações de cunho político, como visto, por exemplo, na conversa à mesa de
jantar dos Darko, logo no início, na qual a irmã de Donnie abre seu voto ao
candidato menos conservador à presidência, ocasião em que é repreendida pelo
pai, um eleitor convicto do então postulante ao cargo máximo da nação, George
Bush (pai). Mesmo assim, Kelly não pinta os pais do protagonista como
reacionários empedernidos, ou algo parecido, da mesma maneira que evita saturar
demais os outros personagens alinhados a uma política (partidária e de vida)
menos progressista, fugindo, assim, de reduzi-los a arquétipos. Ao invés disso,
elementos mais sutis conectam essas mesmas figuras a outras convicções
retrógradas, como, por exemplo, o porte de armas e a campanha contra uma linha
educativa mais abrangente, esta considerada perigosa.
A escola é o principal pilar
dessa sociedade que o filme critica. O ambiente onde se deveria fomentar
educação e formação da cidadania é, em Donnie
Darko, um ninho viciado de professores cuja pedagogia antiquada reduz o
potencial individual dos alunos, além de berço para charlatães e suas teses de
autoajuda que “lobotomizam” o senso crítico dos ouvintes com soluções fáceis
para os dilemas da vida. Não à toa, incitado por Frank, Donnie passa a
vandalizar a escola constantemente, atingindo aqueles que professam a
hipocrisia institucionalizada, ou seja, destruindo como forma de criação. O
protagonista passa, dessa maneira e por meio da relação com o coelho gigante,
ele que pode ser tanto uma projeção do subconsciente quanto um literal viajante
do tempo, a castigar as forças responsáveis por tornar a coletividade uma massa
amorfa de gente sem pensamento próprio, vítimas circunstanciais da apatia.
Donnie é uma espécie de profeta,
vislumbra o futuro ao passo que estuda os meandros do destino, cortejando a
ciência como explicação de fenômenos antirreligiosos. Por outro lado, volta e
meia se fala no filme a respeito da “obra de Deus”, certa predeterminação dos
caminhos que Donnie chega a ver materializada por espectros saídos do peito das
pessoas, manifestação que gera um questionamento interessante: se vemos os
trajetos a nós determinados (por uma divindade?), teríamos de segui-los inexoravelmente,
ou seria justo essa a chave para subvertê-los? Ainda na seara religiosa, Donnie
pode ser entendido como alusão a Jesus Cristo, pois ao tomar conhecimento de
seu destino ele aceita o sacrifício para “purificar” o pecado dos demais, como
vemos no fim.
Misturando, então, conceitos
científicos e parábolas religiosas, Donnie
Darko é um grande filme, também por sua atmosfera intangível de mistério. A
utilização de uma trilha sonora repleta de músicas conhecidas de outrora ajuda
a ambientar a trama no passado, contudo sem com isso datar suas ressonâncias. O
subúrbio americano do longa se aproxima conceitualmente dos utilizados por
David Lynch, no sentido de também guardar em sua aparente rotina pacata uma
obscuridade pronta para emergir violentamente, algo quase despercebido numa
metrópole já caótica por natureza. Ali, onde o coelho gigante é uma espécie de
antevisão da morte, em princípio combatida farmacológica e terapeuticamente,
Donnie é o único realmente lúcido, a despeito de suas esquisitices. Por
enxergar além, ele é “escolhido” (por quem?) para evitar a dor dos outros,
mesmo à custa da sua.
Publicado originalmente no Papo de Cinema
0 comentários:
Postar um comentário