Expresso do Amanhã (2013), primeiro filme em inglês do diretor
sul-coreano Bong Joon-ho, baseado na HQ francesa Le Transperceneige, parte da ficcional e malograda tentativa de
conter o aquecimento global através de uma substância que acaba por congelar
nossa atmosfera, excluindo dessa maneira a possibilidade de sobrevivência fora
do trem que cruza ininterruptamente o planeta agora submerso em neve e morte.
Essa arca moderna contém o que sobrou do mundo, o miniaturizando no que ele tem
de melhor e de pior. Castas desempenham papeis bastante específicos ao
equilíbrio “necessário” do todo. Ricos vivem na parte da frente, com suas mesas
repletas de iguarias, enquanto os miseráveis definham nos compartimentos de trás,
alimentando-se de barras de proteínas feitas sabe-se lá de quê.
A insurgência é questão de tempo
e ela explode sob a liderança de Curtis (Chris Evans), alguém que já
testemunhou toda espécie de barbárie. Ele e seus amigos estão cansados de
sobreviver, de comer a mesma porcaria de sempre, de sujeitar-se às ordens dos
guardas que promovem contagens diárias, enfim, estão fartos de sub-existir. Então,
arquitetam um plano que visa tomar vagão por vagão com destino à extremidade
dianteira, onde se encontra aquele que tudo controla, o empresário que anteviu
a desgraça e fez de seu veículo ferroviário um microcosmo cruel e revelador da
sociedade de antes. O trem, sempre em movimento, talvez para que a
inevitabilidade da morte por inércia seja amenizada, guarda os anseios da
maioria de alteração do status quo.
A luta de classes, assim, é
transferida das ruas para o espaço diminuto do veículo que trafega nos trilhos
congelados. De ambiente em ambiente conquistado, os maltrapilhos que brigam por
um pouco de dignidade tomam contato com realidades bastante distantes das suas.
Bong Joon-ho ressalta a cada segmento de seu filme a violência dos abismos
sociais, a categorização das pessoas, seja por posses ou local de nascimento. Não
o faz sem tornar também gráfica essa violência, com sangue colorindo as janelas
esbranquiçadas da locomotiva, ao passo que miseráveis, empregados e ricos
tombam numa luta movida pela aspiração a direitos básicos, estes negados em
virtude da manutenção do conforto de uns poucos. Expresso do Amanhã é um filme político, não no sentido das
contendas partidárias, mas por comentar alegórica e criticamente realidades
próximas a nós, tão próximas que, às vezes, fica difícil dimensiona-las.
Poderia falar do elenco,
sobretudo do desempenho surpreendente de Chris Evans enquanto protagonista e da
caricatura bastante certeira que Tilda Swinton faz dos políticos/burocratas
puxa-sacos; poderia destacar a construção cênica engenhosa e verossímil; poderia,
ainda, exaltar o excelente trabalho de câmera de Bong Joon-ho, responsável por
criar imagens fortes e claustrofóbicas que acentuam o clima de opressão. Mas, a
rigor, o que me parece realmente certeiro em Expresso do Amanhã (e, claro, isto é moldado pelos elementos
citados) é a maturidade de sua visão de mundo, entre o pessimismo e a
esperança, entre a constatação da realidade desfavorável e o otimismo teimoso
de que dias melhores virão.
O final aponta à nova era, em
contraponto à nossa atual sociedade etnocêntrica, prioritariamente branca e
cristã. A despeito das já divulgadas disputas criativas/comerciais entre o
diretor e os produtores que impuseram cortes significativos e inserções
arbitrárias para o lançamento internacional, Expresso do Amanhã é o que toda ficção científica deveria ser: uma parábola
contundente sobre nosso próprio tempo.
Publicado originalmente no Papo de Cinema
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