A estrutura formal de A Pele de Vênus (2013), mais recente
realização de Roman Polanski, dialoga evidentemente com a linguagem teatral,
ainda que a expressão pejorativa “teatro filmado” não lhe seja justa - assim
como, a meu ver, não se ajustava, mesmo que por motivos distintos, a Deus da Carnificina (2011), filme
anterior do cineasta. O fato de quase toda ação se passar num palco italiano e
seus arredores, não basta para que o cinema se submeta ao teatro. Aliás, o
imperativo dos signos estritamente cinematográficos, tais como a montagem, por
exemplo, em consonância com a encenação algo teatral, promove uma simbiose com
ares de reverência mútua entre teatro, arte milenar, e cinema, arte
secular.
Thomas (Mathieu Amalric) é o
adaptador do livro A Vênus das Peles,
de Leopold von Sacher-Masoch, que tentará sua primeira incursão enquanto
diretor. Desgastado por um dia de testes inúteis com atrizes incapazes de
entender os personagens (sinal dos tempos, se repete ao longo do filme) ele
está para partir quando interrompido pela atrasada Vanda (Emmanuelle Seigner),
aspirante ao papel principal que chega reclamando de má sorte, desfilando
vulgaridades e certo desdém pelo texto, ao passo que tenta convencer seu
interlocutor a ficar e estender uma noite que parecia até então fadada ao
encerramento num encontro protocolar com a noiva. Para Thomas a conversa
inicial não é promissora, contudo ele acaba cedendo, mais à insistência
destrambelhada de Vanda do que a qualquer esperança de encontrar nela sua musa.
A interpretação surpreendente da
estranha e o crescente envolvimento de Thomas com o papel masculino faz emergir
o que parece o eixo temático de A Pele de
Vênus: relações de poder. Da autoridade do diretor logo relativizada à
discussão sobre a histórica sujeição feminina, tudo gira em torno da ideia de
que os relacionamentos, também os amorosos, são entremeados por complexas disputas
por poder. Thomas é enredado pela misteriosa Vanda, de quem nada sabemos além
das poucas informações fornecidas após conversas telefônicas de duvidosa
existência. E esse jogo da mulher que utiliza o corpo e a voluptuosidade, mas,
sobretudo, a inteligência para mostrar a fraqueza do bicho homem, acaba por
embaralhar ficção e realidade.
Não estaria Polanski com A Pele de Vênus expondo um conceito de
viés filosófico, segundo o qual, no final das contas, tudo é encenação?
Conforme postulado na origem do teatro grego, se podemos ser interpretados por
alguém, não seríamos nós mesmos essencialmente personagens? Thomas e Vanda são
tipos que se atraem e se repulsam, quase na mesma medida. Polanski também
promove uma aproximação seguida de distanciamento entre o tempo passado do
romance (escrito em 1870) e a contemporaneidade do filme, apontando certas
características e impulsos humanos imunes ao transcorrer dos relógios enquanto
sinaliza determinantes demandas próprias da era atual. Ali, no palco teatral apropriado
pelo cinema, Roman Polanski discute a complexidade das relações e do desejo,
fazendo assim outro grande filme.
Publicado originalmente no Papo de Cinema
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