Ainda que esteja pronto desde
2010, Meninos de Kichute só chega
agora, em 2014, às salas de cinema, depois de exibido em alguns festivais. Particularidades
da nossa cadeia produtiva que quando não “enforca” o filme nacional na gestação,
o faz na distribuição. Na trama ambientada na década de setenta, o menino Beto
(Lucas Alexandre) sonha em ser goleiro. Ele mora em Londrina, interior
paranaense, com o pai extremamente religioso e contrário ao espírito
competitivo do esporte, com a mãe que se submete aos desmandos do marido cuja
autoridade parece legitimada tanto pelo machismo histórico quanto pela natureza
patriarcal da religião, com a irmã mais velha e o irmão mais novo. A vida que
lhe interessa está no campo, lá onde ele saiu da linha e foi para o gol, na
posição entendida por muitos como a mais ingrata do futebol.
As rotinas escolares evidenciam um
civismo imposto goela abaixo, em grande parte nas aulas de Moral e Cívica. Não
esqueçamos, na época retratada o país ainda vivia no cabresto da ditadura
militar. A rigidez de professores e funcionários é contraposta pela molecagem
dos meninos que estão loucos para jogar futebol e transgredir as regras,
inclusive vendo postais e revistas de mulher pelada, o que era considerado
pouca vergonha. Há uma boa dose de memória afetiva na tela. Muito legal
identificar nesse comportamento “ultrapassado” os costumes de uma realidade
completamente analógica. Que menino de então nunca quis ter um Kichute, o
famoso tênis da Alpargatas que imitava a chuteira? A tônica era ir para a rua,
machucar o joelho nas partidas disputadas em campinhos de terra, fazer
traquinagem, tudo menos ficar em casa. A vida estava lá fora.
Uma pena o diretor Luca Amberg
desperdiçar esse potencial nostálgico, diluindo-o num simplismo que, aliás,
permeia todo filme. O principal entrave ao sonho de Beto é o próprio pai.
Interpretado por Werner Schünemann, esse homem evoca os dogmas de sua crença
para castrar a aspiração do filho em nome de Deus. O que poderia ser um diálogo
interessante, adquire contornos caricaturais, já que a figura paterna é
unidimensional e está ali apenas como barreira, sem nuances mais claras. Até
mesmo o destino desse pai dentro do filme é uma simplificação quase grosseira,
pois choca sem sutilezas o discurso religioso com os atos posteriores que
denotam hipocrisia, resvalando assim num evidente senso-comum. A narrativa
infelizmente se apoia demais nessa estrutura frágil e monocórdica.
Meninos de Kichute possui encenação meio desleixada e diálogos que
batem pouco naturais na tela. O elenco, por sua vez, parece ora no piloto
automático ora à deriva. Contudo, dificilmente o filme aborrecerá o espectador,
desde que ele entenda limitações e abrace possibilidades. É um cinema
intermediário, nem tão popularesco e muito menos voltado aos guetos da
intelectualidade. Mas nem só de boas intenções vive o cinema, já que dele se
espera um pouco de risco, que fuja vez ou outra da área confortável lá de onde
as ressonâncias vêm enfraquecidas. Meninos
de Kichute tem bons momentos, sobretudo as divertidas partidas de futebol,
mas no geral fica a impressão de que a mistura de esporte, infância, anos de
chumbo e família poderia render bem mais do que um filme simpático do qual, imagino,
pouco lembraremos mais adiante.
Publicado originalmente no Papo de Cinema
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