Vitorioso na categoria “Melhor
Filme Dramático” no Globo de Ouro deste ano, 12 Anos de Escravidão, do britânico Steve Mcqueen, é um filme
importante. A saga do negro alforriado Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor), sequestrado
e vendido a fazendeiros sulistas, mostra muito bem os desmandos de uma raça, a
branca, que, autorizada pela lei então vigente, reduzia seus semelhantes negros
ao equivalente animal nas fazendas. Mais do que estudo acerca do racismo
institucionalizado, o filme é uma importante peça de exposição da crueldade
humana. A despeito dos que acham tudo meio maniqueísta e fácil, vou tentar
neste artigo expor o porquê acredito na complexidade do trabalho de Mcqueen,
tanto no que tange a abordagem social quanto no desenvolvimento dos
personagens, como grande responsável pelo êxito do filme.
Comecemos pela questão do escravo
em seu contexto de exploração. O longa mostra a brutalidade absurda que mediava
a relação do branco, seja ele “mestre” ou agregado, com os escravos negros. As
cenas de tortura física, mais precisamente as de açoites, são realmente pesadas,
mas não se sobressaem em impacto à gradual desmoralização dos escravos no dia a
dia, sobretudo no que diz respeito à diminuição de sua individualidade e o
aniquilamento de qualquer traço não pertinente ao trabalho braçal. As pessoas
valiam conforme a colheita diária do algodão e tudo que fosse além era
considerado perigoso. Não é apenas a chibata que enfraquece os negros.
Violentar a integridade de alguém passa também por torná-lo comum, massa de
manobra uniforme, e essa consciência demonstrada por Mcqueen é um dos pilares
de 12 Anos de Escravidão, potencializa
o impacto das agressões físicas, pois as alimenta de ódio e outros venenos.
A matéria-prima dos personagens,
ou seja, do que eles são feitos, é outro elemento destacável. Discordo
totalmente de alguns que veem as figuras como estereotipadas e/ou vítimas do
maniqueísmo. Os capatazes e os senhores da fazenda não me parecem arquetípicos
- ao menos não todos - pois dotados de nuances particulares. O fazendeiro Edwin
Epps, por exemplo, não é pura e simplesmente um retrato extremo da maldade,
ainda que tenha essa “função” em determinadas passagens. A relação conturbada
com a mulher tão ou mais autoritária que ele, me parece conferir densidade a esse
tipo que alguns teimam em enxergar apenas numa dimensão. Quando castiga a negra
por quem se afeiçoa, para citar uma sequência capital, ele está punindo a si
próprio por não conseguir fazer valer sua vontade diante da esposa. Ali está o
retrato de um homem derrotado, frustrado, poderoso apenas diante da classe
considerada inferior.
Já Solomon trilha um caminho de
pequenas tragédias desencadeadas a partir do momento em que perde a liberdade e
se vê apartado da família na mais desesperadora insegurança dos dias. Se no
início ele refuta a “sobrevivência”, alegando estar mais inclinado a “viver”,
com o passar do tempo, e mediante a falta de qualquer perspectiva de salvação
imediata, ele engole a própria convicção, aceita o novo batismo, sujeita sua
arte às festas na Casa Grande, esconde a faceta letrada e culta, para,
justamente, sobreviver. Nos anos em que volta à escravidão, Solomon dança
conforme a música para, quem sabe, um dia reencontrar sua família, sem que para
isso haja lamúria excessiva ou rendição à melancolia. Esse discernimento o faz resistir
enquanto muitos sucumbem. Sua relação com Epps é como uma inversão de
superioridade, pois, enquanto o fazendeiro é um homem moralmente derrotado, porém
poderoso em virtude da posição social ocupada, Solomon é rebaixado pela
escravatura, contudo elevado na comparação, pois perspicaz e mais estruturado
psicologicamente, quem sabe por estar ancorado num propósito vital.
O cineasta Steve McQueen combina,
assim, em 12 Anos de Escravidão a
crítica social contida em seu primeiro filme, Hunger (2008), com o estudo minucioso de personagem visto no
segundo, Shame (2011). 12 Anos de Escravidão é uma realização
necessária, pois, para além de promover uma leitura admirável no que diz
respeito à escravatura, mostra a complexidade que alimenta o lado mais sórdido
do único animal que, enquanto amparado pela lei, maltrata seus semelhantes sem
dó nem piedade.
Publicado originalmente no Papo de Cinema
Muito bom, Celito!
ResponderExcluirAdoro esse filme, e como bem destacou, também acredito na força dos personagens enquanto motor à narrativa, cujo combustível está justamente nas relações hierárquicas estabelecidas no decorrer do longa.
Forte abraço.