A primeira cena de Instinto Selvagem (1992) condensa bem o
espírito desse neo-noir dirigido por
Paul Verhoeven. O sexo, movimento intenso que precede o gozo, é rondado pela
iminência do crime, este consumado após a mulher, por cima, assassinar a golpes
de picador de gelo o ex-roqueiro de mãos atadas na cabeceira da cama. Morte e
sexo, assim, desde o início, andarão juntos numa narrativa que alude ao cinema
de Alfred Hitchcock ao mesmo tempo em que o subverte por incorporar o sexo (em
Hitch tão velado) de maneira mais intensa. Em breve volto ao paralelo, mas o
que importa, assim, de cara, é saber que estamos longe de intenções prosaicas
ou puramente comerciais. Verhoeven fez carreira falando a respeito de
aparências, revestindo ele mesmo o cinema de um caráter complexo por debaixo de
tramas aparentemente simplistas ou de relativo mau gosto.
O detetive Nick (Michael Douglas)
se vê irremediavelmente atraído pela principal suspeita do crime que inaugura o
filme. Também pudera, Catherine (Sharon Stone) é a personificação da volúpia,
mulher cuja sensualidade é amplificada pela aura de mistério - e perigo - que
ela própria faz questão de fomentar. Verhoeven delineia com muita perspicácia
essa personagem, a investindo de força libidinal, mas também de inteligência
superior, ou seja, não fazendo dela apenas um corpo escultural talhado para o
sexo. Catherine estuda as presas e as ataca nos pontos fracos, por exemplo, com
Nick, aludindo ao vício pregresso em cigarros ou volta e meia trazendo à tona significativa
mancha do passado.
Instinto Selvagem é lembrado até hoje como o filme no qual Sharon
Stone faz a famosa cruzada de pernas, onde deixa entrever seu hábito de não
usar calcinha. Fora a visão em si, a sequência é imprescindível à identificação
da personalidade de Catherine, pois, passada num interrogatório, deixa claro
que a interrogada é quem comanda a ação, subjugando os homens da lei que quase
paralisam diante do movimento de pernas da suspeita. Ao passo em que Nick se
rende aos (óbvios) encantos de Catherine, sua vida é acrescida de perigo e
excitação, ganha brilho para além do martírio e da autopiedade que até então a
corroíam. Os livros de Catherine são uma pista dúbia, denotam ao mesmo tempo
culpa e inocência. Assim, a ficção dentro da ficção mais embaralha do que
esclarece, pois de influência indefinida. Seria a autora dos livros também a
autora dos crimes?
Catherine é uma autêntica femme fatale, apenas com a ressalva de
que poucas vezes se duvida de sua vilania, já que ela própria não a dissimula.
Mas estaria ela alimentando outra fantasia, além da sexual, a de que poderia
ser assassina? Então, mesmo obviamente culpada, nos parece, lá pelas tantas,
inocente ou vítima do nosso julgamento apressado. Nick, por sua vez, agora o
protagonista do próximo livro dessa a quem considera “a transa do século”, fica
entre o dever e o desejo. Instinto Selvagem é ambientado em São
Francisco e mostra a obsessão de um detetive de passado fraturado por uma loira
misteriosa. Em linhas gerais, remete claramente a Um Corpo que Cai (1958), de Alfred Hitchcock.
Não há qualquer arbitrariedade em
Instinto Selvagem, o filme é todo
calculado para aditivar o suspense de uma sexualidade feminina latente, tão
forte que se configura em ameaça real ao dominante universo masculino. Paul
Verhoeven é um grande cineasta, daqueles que produzem arte sem descuidar do
público – assim como Hitchcock - e que, por isso mesmo, às vezes é tão
incompreendido e atacado.
Publicado originalmente no Papo de Cinema
Boa, Celito!
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