J.J Gittes (Jack Nicholson) é
ex-policial, agora um detetive particular que ganha a vida investigando casos
matrimoniais. Uma mulher aparentemente distinta bate à sua porta,
suspeitando-se traída pelo marido, um figurão da administração de Los Angeles.
Trabalho bem pago, trabalho aceito. Não se sabe como, mas os resultados vão
parar nas primeiras páginas dos jornais, detonando assim uma crise política que
parece servir a interesses escusos. Gittes, cuja visão das coisas foi moldada
pelos tempos de patrulha às ruelas de Chinatown, a famigerada região na qual a
lei e a ordem muitas vezes se confundem, decide ir a fundo, primeiro para saber
quem lhe usou como bode-expiatório e depois para entender a cidade que sofre
pela falta de água que é ilegalmente desperdiçada na calada da noite. Assim
inicia Chinatown (1974), neo-noir dirigido por Roman Polanski.
A enigmática Evelyn Cross Mulwray
(Faye Dunaway), verdadeira esposa do chefe do departamento de águas que Gittes
investigou, logo aparece como elemento desestabilizador. Gittes é ligeiramente
distinto dos detetives noir clássicos,
não se deixa levar totalmente pela presença dessa mulher fatal que turva ainda
mais seu caminho. Ao passo que descobre algumas ligações estranhas entre
determinadas figuras, conexões estas que deveriam permanecer desconhecidas para
o bem de uma minoria influente, o personagem de Nicholson se vê seriamente
ameaçado de morte. Numa de suas rondas noturnas, ele se depara com o agressor
que lhe corta o nariz, talho feio, protegido depois pelo curativo que se torna quase
uma característica física a nos lembrar da constância do perigo. O agressor em
questão, denominado na ficha técnica apenas como “o homem da faca” é
interpretado pelo próprio Polanski.
O ritmo de Chinatown é ditado pelas sucessivas descobertas de Gittes, pela
sujeira que pouco a pouco emerge das relações, das maquinações expostas, das
vilanias ora em xeque ora confirmadas pelos comportamentos condenáveis (para
dizer o mínimo) de determinados personagens. Los Angeles, a cidade que na época
retratada já era o berço do cinema americano, é vista como uma localidade que,
a despeito de seu tamanho e importância, segue administrada tal e qual um
pequeno feudo lucrativo para meia dúzia de canalhas. Contudo, a lente de
Polanski parece interessada na corrupção administrativa apenas como efeito da
corrupção moral generalizada. Sendo assim, não haveriam políticos desonestos se
a desonestidade fosse ignorada pelo humano que precede o cargo. Gittes, por sua
vez, não é nenhum santo, mas o movimento de tentar atravessar o lamaçal que se
adensa, faz dele um alvo a ser abatido.
Num elenco que conta com a
participação especial do cineasta John Huston, na pele do pai da personagem de
Dunaway (ela, precisa entre a frieza e a passionalidade), é mesmo Nicholson
quem toma conta. Sobre o filme como um todo, de nada adiantaria a riqueza da
produção, a precisa reconstrução de época, entre outros elementos de cunho mais
técnico, não fosse a sordidez amplificada cinematograficamente por Polanski a
partir do grande roteiro que criou junto com Robert Towne. Chinatown possui rara agudeza e perspicácia, muito por se valer
exemplarmente de um período histórico específico, de personalidades
conflituosas e sintomáticas do estado das coisas, para colocar em relevo
questões de interesse atemporal. A frase “Esqueça,
Jake, isto aqui é Chinatown" não se aplica tão e somente ao local notório
como “terra de ninguém”, mas à sua representação da podridão que nos assola,
independentemente de onde estejamos, seja na superfície ou no submundo.
Publicado originalmente no Papo de Cinema
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