quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Expresso do Amanhã



Expresso do Amanhã (2013), primeiro filme em inglês do diretor sul-coreano Bong Joon-ho, baseado na HQ francesa Le Transperceneige, parte da ficcional e malograda tentativa de conter o aquecimento global através de uma substância que acaba por congelar nossa atmosfera, excluindo dessa maneira a possibilidade de sobrevivência fora do trem que cruza ininterruptamente o planeta agora submerso em neve e morte. Essa arca moderna contém o que sobrou do mundo, o miniaturizando no que ele tem de melhor e de pior. Castas desempenham papeis bastante específicos ao equilíbrio “necessário” do todo. Ricos vivem na parte da frente, com suas mesas repletas de iguarias, enquanto os miseráveis definham nos compartimentos de trás, alimentando-se de barras de proteínas feitas sabe-se lá de quê.

A insurgência é questão de tempo e ela explode sob a liderança de Curtis (Chris Evans), alguém que já testemunhou toda espécie de barbárie. Ele e seus amigos estão cansados de sobreviver, de comer a mesma porcaria de sempre, de sujeitar-se às ordens dos guardas que promovem contagens diárias, enfim, estão fartos de sub-existir. Então, arquitetam um plano que visa tomar vagão por vagão com destino à extremidade dianteira, onde se encontra aquele que tudo controla, o empresário que anteviu a desgraça e fez de seu veículo ferroviário um microcosmo cruel e revelador da sociedade de antes. O trem, sempre em movimento, talvez para que a inevitabilidade da morte por inércia seja amenizada, guarda os anseios da maioria de alteração do status quo.

A luta de classes, assim, é transferida das ruas para o espaço diminuto do veículo que trafega nos trilhos congelados. De ambiente em ambiente conquistado, os maltrapilhos que brigam por um pouco de dignidade tomam contato com realidades bastante distantes das suas. Bong Joon-ho ressalta a cada segmento de seu filme a violência dos abismos sociais, a categorização das pessoas, seja por posses ou local de nascimento. Não o faz sem tornar também gráfica essa violência, com sangue colorindo as janelas esbranquiçadas da locomotiva, ao passo que miseráveis, empregados e ricos tombam numa luta movida pela aspiração a direitos básicos, estes negados em virtude da manutenção do conforto de uns poucos. Expresso do Amanhã é um filme político, não no sentido das contendas partidárias, mas por comentar alegórica e criticamente realidades próximas a nós, tão próximas que, às vezes, fica difícil dimensiona-las.

Poderia falar do elenco, sobretudo do desempenho surpreendente de Chris Evans enquanto protagonista e da caricatura bastante certeira que Tilda Swinton faz dos políticos/burocratas puxa-sacos; poderia destacar a construção cênica engenhosa e verossímil; poderia, ainda, exaltar o excelente trabalho de câmera de Bong Joon-ho, responsável por criar imagens fortes e claustrofóbicas que acentuam o clima de opressão. Mas, a rigor, o que me parece realmente certeiro em Expresso do Amanhã (e, claro, isto é moldado pelos elementos citados) é a maturidade de sua visão de mundo, entre o pessimismo e a esperança, entre a constatação da realidade desfavorável e o otimismo teimoso de que dias melhores virão.

O final aponta à nova era, em contraponto à nossa atual sociedade etnocêntrica, prioritariamente branca e cristã. A despeito das já divulgadas disputas criativas/comerciais entre o diretor e os produtores que impuseram cortes significativos e inserções arbitrárias para o lançamento internacional, Expresso do Amanhã é o que toda ficção científica deveria ser: uma parábola contundente sobre nosso próprio tempo. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

domingo, 25 de outubro de 2015

O Homem Duplicado


Em O Homem Duplicado (2013), adaptação do livro homônimo de José Saramago, os personagens são quase secundários diante do mistério essencial que os abraça, do imponderável que surge, em princípio, no cotidiano maçante do professor de história Adam Bell (Jake Gyllenhaal), e que depois atinge os demais. Assistindo a um filme numa noite arrastada, Adam encontra entre os coadjuvantes alguém igual a si, não parecido, mas exatamente igual. Tal descoberta o tira da inércia, e confrontar seu “duplo” passa a ser prioridade obsessiva. E como não ficar obcecado em virtude de uma casualidade assim? Seria esse ator de pequenos papeis em longas desconhecidos um irmão gêmeo? E não o sendo, qual seria, então, a real natureza da espantosa semelhança?

O diretor Denis Villeneuve se esforça para dotar O Homem Duplicado de uma atmosfera contínua de tensão, temperando a mesma com pitadas de fantástico. Como dito antes, esse clima é o verdadeiro núcleo do longa, justo porque a sensação de estarmos num terreno movediço e completamente instaurado no desconhecido se sobressai, e muito. A câmera escrutina Adam ora como se quisesse extrair dele alguma coisa (a verdade?) ora como se o espreitasse enquanto predador de uma vítima ignorante. Essa construção habilidosa do ponto de vista cinematográfico não encontra ecos, porém, na trama que se desenrola de maneira um tanto frouxa, deixando a sensação incômoda de vazio (assim como no livro, é bom dizer).

A transposição é bastante fiel ao espírito do original literário, tanto no que ele tem de melhor quanto nas suas fragilidades. O confronto entre Adam e seu duplo, Anthony, só ganha importância ao envolver as parceiras de ambos, elas que podem ser lidas como etapas da mesma mulher ou, em outra direção interpretativa, apenas como títeres de uma força maior. Essa força também parece responsável por dividir o protagonista e colocar posteriormente suas metades em choque. Todas as figuras estão mais para frações e, assim sendo, são reféns da própria incompletude. As passagens rápidas, porém imprescindíveis, em que o passado ou o presente de alguém é imputado a outra pessoa, denota uma espécie de rearranjo universal, como se a ordem ressurgisse gradativamente do caos até então instaurado.

Jake Gyllenhaal, por sua vez, interpreta os dois papeis que lhe cabem com bastante distinção, o que evita um embaralhamento excessivo e potencialmente dispersivo do tipo “quem é quem?”, ainda que quando necessário suscitar certa dúvida ou insinuar uma proximidade essencial e insuspeita em prol da história, ele o faça com habilidade. As ressonâncias pálidas pós-encontro dos “duplos”, as crises existenciais rasas, a própria anemia dos personagens frente o desconhecido, tudo é abrandado pela excelência da atmosfera que garante nossa atenção e curiosidade. O final, mais ambíguo do que revelador, mostra o quão O Homem Duplicado é refém do inesperado, pois carente de um desenvolvimento mais acurado dessas pessoas atingidas em cheio pelo absurdo tão bem arquitetado na tela por Denis Villeneuve. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema 

Doses Homeopáticas #51


Em LA VIE DE BOHÈME há um forte contraste entre o discurso erudito dos três artistas (um músico, um pintor e um escritor) e a condição de pobreza em que eles vivem. Aki Kaurismäki filma na França, em preto e branco, com Jean Pierre Leaud, Samuel Fuller e Loius Malle fazendo pontas. De alguma maneira, é uma homenagem ao próprio cinema, à arte que resiste (mas nem sempre) ao estado das coisas, aos ditames do mercado, aqui simbolizados pela dificuldade desses três homens inteligentes para encontrar seus lugares no mundo. Um chumaço de poesias antigas é sacrificado para aquecer a mulher amada que treme de frio ao lado do fogão apagado pela falta de condições. Kaurismäki, que geralmente faz seus personagens experimentarem a tragédia e/ou a tristeza antes da redenção final, antes que a centelha de esperança apareça para iluminar o horizonte, aqui direciona a trama para um final não tão feliz, melancólico, que desvia de possíveis alegrias. Como de costume, seus personagens são pessoas generosas, meio alheias ao cinismo e à desconfiança, gente que procura, embora nem sempre consiga, fazer o bem. Há bastante humor, o contumaz viés satírico, e um tom carregado de tristeza que vai se insinuando até não deixar muito espaço para outras sensações. No fim, o companheirismo é a única a saída para aplacar as dores de viver, seja o dos amigos ou mesmo do fiel escudeiro canino.


O SÉTIMO SELO é sempre lembrado pela imagem do cavaleiro jogando xadrez com a morte, certamente uma das mais emblemáticas do cinema. Contudo, o filme não se resume a isso. Ao voltar das cruzadas, o protagonista encontra uma terra assolada pela peste, em plena decadência. Apela para Deus, questionando seu silêncio. Ele encontra uma trupe circense, artistas que levam entretenimento e ludicidade àquelas pessoas que estão frente a morte. A cena da apresentação sendo interrompida pela caravana dos flagelados é de uma força tremenda. Os cânticos alegres são substituídos pelas lamúrias e gemidos do povo que mutila o corpo para pretensamente purificar a alma. Os desígnios de Deus são igualmente postos em xeque pelo cavaleiro, um homem atormentado, regresso de uma missão santa com requintes de crueldade. É um filme de forte apelo visual, ambientado num passado remoto em que a religiosidade e a fé eram ainda mais importantes para a formação do povo e o andamento da sociedade. Em meio aos artistas, que driblam os caprichos da morte valendo-se da arte, o personagem de Max Von Sydow encontra um pouco de paz, antes que a inevitável ceife sua existência, dançando com ele e seus amigos no horizonte o bailado da eternidade.



VAMPIROS, de John Carpenter, é protagonizado por um badass, como dizem os norte-americanos. James Woods interpreta esse cara que não se intimida diante do Vaticano e nem mesmo frente ao mestre supremo dos vampiros que está na sua cola. Pode-se tentar extrair de tudo que acontece até algum subtexto, mas o filme vale exatamente pelo que mostra, pela maneira envolvente com a qual nos inteira da rotina dos caçadores que fuçam em covis de chupadores de sangue para exterminar essa raça de predadores da face da Terra. Há muitos buracos no roteiro, algumas simplificações no que diz respeito à trama propriamente dita, mas elas são completamente supridas pela maneira irresponsável (no bom sentido) com que os fatos vão se sobrepondo, se atropelando. A supremacia da forma fica evidente. Pouco importa se o vampiro mestre podia ou não aproveitar-se da ligação com a prostituta recém-mordida, assim como ela se aproveita, ou se, no fim das contas, esse vilão cai rápido e fácil demais. Relevante ali é ver esse mundo sendo delineado na tela, numa trama protagonizada por um cara que remonta aos cowboys durões do western de antigamente. Não é uma crítica à igreja, embora o apontamento esteja ali. É uma diversão inteligente, daquelas que fazem uma falta danada hoje em dia no nosso circuito combalido.

domingo, 18 de outubro de 2015

Donnie Darko


Donnie Darko (Jake Gyllenhaal) é um adolescente problemático e, como tal, toma pílulas, remédios para aliviar sua estranheza diante do mundo. O sonambulismo o faz escapar de um acidente bastante improvável, aliás, escapar da morte certa quando uma turbina de avião, vinda sabe-se lá de onde, destrói seu quarto no meio da noite. Donnie começa a ter visões, no que pensamos, em princípio, ser agravamento de seu estado patológico. Frank, o amigo imaginário, homem evidentemente fantasiado de coelho bizarro, logo anuncia o fim do mundo para dali 28 dias 06 horas 42 minutos e 12 segundos. Donnie é o único que sabe a respeito da data prevista para o fim, mas isso não parece alarmá-lo mais do que as questões cotidianas, do que as pequenas e grandes farsas que constroem o dia a dia.

Donnie Darko (2001) adquiriu status com o passar do anos. Suas conjunturas envolvendo viagens no tempo foram, desde a estreia, o viés principal da maioria das análises, muitas delas realmente empenhadas em achar saídas para determinados labirintos, em solucionar alguns enigmas que soam nebulosos mesmo quando acaba a sessão. Isso tudo criou um verdadeiro culto em torno da primeira realização de Richard Kelly, o que, por conseguinte, fez do cineasta alvo da atenção dos agora seus fãs. Entretanto, não me parece que o filme deva ser celebrado necessariamente por suas áreas cinzentas, mas sim, e sobretudo, pelas relações que estabelece claramente com o intuito de fazer emergir um painel crítico das enfermidades que minam a saúde da sociedade norte-americana.

O filme também possui diversas observações de cunho político, como visto, por exemplo, na conversa à mesa de jantar dos Darko, logo no início, na qual a irmã de Donnie abre seu voto ao candidato menos conservador à presidência, ocasião em que é repreendida pelo pai, um eleitor convicto do então postulante ao cargo máximo da nação, George Bush (pai). Mesmo assim, Kelly não pinta os pais do protagonista como reacionários empedernidos, ou algo parecido, da mesma maneira que evita saturar demais os outros personagens alinhados a uma política (partidária e de vida) menos progressista, fugindo, assim, de reduzi-los a arquétipos. Ao invés disso, elementos mais sutis conectam essas mesmas figuras a outras convicções retrógradas, como, por exemplo, o porte de armas e a campanha contra uma linha educativa mais abrangente, esta considerada perigosa.

A escola é o principal pilar dessa sociedade que o filme critica. O ambiente onde se deveria fomentar educação e formação da cidadania é, em Donnie Darko, um ninho viciado de professores cuja pedagogia antiquada reduz o potencial individual dos alunos, além de berço para charlatães e suas teses de autoajuda que “lobotomizam” o senso crítico dos ouvintes com soluções fáceis para os dilemas da vida. Não à toa, incitado por Frank, Donnie passa a vandalizar a escola constantemente, atingindo aqueles que professam a hipocrisia institucionalizada, ou seja, destruindo como forma de criação. O protagonista passa, dessa maneira e por meio da relação com o coelho gigante, ele que pode ser tanto uma projeção do subconsciente quanto um literal viajante do tempo, a castigar as forças responsáveis por tornar a coletividade uma massa amorfa de gente sem pensamento próprio, vítimas circunstanciais da apatia.

Donnie é uma espécie de profeta, vislumbra o futuro ao passo que estuda os meandros do destino, cortejando a ciência como explicação de fenômenos antirreligiosos. Por outro lado, volta e meia se fala no filme a respeito da “obra de Deus”, certa predeterminação dos caminhos que Donnie chega a ver materializada por espectros saídos do peito das pessoas, manifestação que gera um questionamento interessante: se vemos os trajetos a nós determinados (por uma divindade?), teríamos de segui-los inexoravelmente, ou seria justo essa a chave para subvertê-los? Ainda na seara religiosa, Donnie pode ser entendido como alusão a Jesus Cristo, pois ao tomar conhecimento de seu destino ele aceita o sacrifício para “purificar” o pecado dos demais, como vemos no fim.

Misturando, então, conceitos científicos e parábolas religiosas, Donnie Darko é um grande filme, também por sua atmosfera intangível de mistério. A utilização de uma trilha sonora repleta de músicas conhecidas de outrora ajuda a ambientar a trama no passado, contudo sem com isso datar suas ressonâncias. O subúrbio americano do longa se aproxima conceitualmente dos utilizados por David Lynch, no sentido de também guardar em sua aparente rotina pacata uma obscuridade pronta para emergir violentamente, algo quase despercebido numa metrópole já caótica por natureza. Ali, onde o coelho gigante é uma espécie de antevisão da morte, em princípio combatida farmacológica e terapeuticamente, Donnie é o único realmente lúcido, a despeito de suas esquisitices. Por enxergar além, ele é “escolhido” (por quem?) para evitar a dor dos outros, mesmo à custa da sua.


Publicado originalmente no Papo de Cinema