domingo, 27 de setembro de 2015

Um Amor em Paris


Brigitte (Isabelle Huppert) é uma mulher do interior. Com o marido, ela cria gado de corte e também para vencer concursos pecuários, sentindo cada vez mais o peso do tempo transcorrido que acentua o lado nefasto de sua rotina. Vê-se estagnada, mesmo longe das dificuldades físicas impostas pela vindoura terceira idade, ou seja, ainda plena de forças para perseguir desejos que, por certo, conflitam com a personalidade mais pacata do marido, este feliz em meio à lida campestre. Numa festa de adolescentes, ocorrida na propriedade vizinha, ela se vê enredada menos propriamente pelo jovem com quem flerta e mais pela possibilidade de acessar novamente sua juventude de espírito.

Um Amor em Paris (2013) é uma comédia. Como é bom ver Isabelle Huppert, atriz de inegável talento, entretanto bastante presa ultimamente ao que chamo de “efeito A Professora de Piano” (por mimetizar em outros papeis o tipo esvaziado de emoções criado por Michael Haneke), interpretar alguém de concepção mais leve, dotada de anseios, dúvidas, zonas sombrias, claro, contudo de atitude mais calorosa frente aos contratempos. Enquanto vaga por Paris com o álibi de buscar a cura para um problema de pele, sua personagem entra de cabeça num processo de autoconhecimento, orgânico, sem espetacularização ou dramatização para além da conta.

O diretor e roteirista Marc Fitoussi evita qualquer artifício que desvie o foco da pequena jornada existencial da protagonista. Brigitte não é movida pela certeza, ao contrário, tateia novidades por estar imersa em dúvida. Essa natureza é responsável por tornar suas escolhas simpáticas ao nosso olhar, mesmo aquelas passíveis da reprovação de alguns. Brigitte interage com o mundo estranho ao seu habitual como se dele extraísse forças não para uma fuga, mas para redescobrir motivações bastante particulares. E, também é importante pontuar, mesmo que a trama transcorra entre o campo e a cidade grande, as diferenças geográficas e, por consequência, culturais, são beneficamente insuficientes para definir o descompasso na relação do casal.

A parte derradeira, bem como o encerramento em si, se dá menos centrado em Brigitte, pois generoso também ao protagonismo de Xavier, o marido vivido por Jean-Pierre Darroussin. Se até então servia como principal coadjuvante, ele passa a ganhar importância equivalente à da esposa, deflagrando seu próprio processo de reconciliações ocorrido em paralelo às desventuras dela pela Cidade Luz. Um Amor em Paris é daqueles filmes que provocam sorrisos, sem para isso comprometer a seriedade de observações maduras e pertinentes a respeito da difícil conciliação entre realização pessoal e as necessidades dos relacionamentos.  


Publicado originalmente no Papo de Cinema 

sábado, 26 de setembro de 2015

Doses Homeopáticas #50


HOMEM-FORMIGA é outro tijolo na construção da Marvel. Seguindo o padrão de qualidade dos filmes mais recentes do estúdio, cumpre o papel de oferecer entretenimento. Aqui, porém, há o resgate de uma característica das primeiras produções da Marvel: o humor. Paul Rudd se sai muito bem como protagonista, dando um quê de deboche à maioria das ações desse ladrão recrutado para ser herói, sem com isso enfraquecer os momentos dramáticos. O subtexto da paternidade, com os pais fazendo de tudo para que os filhos tenham um futuro melhor, a despeito das próprias dificuldades com a representação da figura paterna, é raso, mas, mesmo assim, confere à trama uma base humana interessante. É um filme que se vê com prazer, pois não fere nossa inteligência e ainda oferece momentos de ação e emoção engenhosamente construídos. Em meio a isso, a linha que costura o individual ao plano maior, neste caso a provável entrada futura do Homem-Formiga no time dos Vingadores. Saído diretamente de uma eficiente linha de produção, contudo, não é uma realização descartável.


O que mais impressiona em OS VISITANTES é a capacidade de Elia Kazan para sustentar o clima de tensão durante boa parte da história. Os dois soldados que visitam o ex-colega que os denunciou por um crime de guerra são presenças fortes, taciturnas. Um é espalhafatoso, o outro possui um timbre de voz baixo, porém ainda mais ameaçador. Os movimentos de ambos são bruscos. Toda essa fisicalidade dá conta de instaurar o medo crescente. Contudo, na medida em que as coisas evoluem, um forte viés psicológico se impõe. O protagonista se sente incomodado, mas não consegue ser firme com os intrusos, chegando a deixar sua mulher sozinha com o estuprador confesso. Ela, por sua vez, amedrontada no início, passa a flertar com o homem que toca o terror na propriedade. A violência e a morte podem vir a qualquer hora, por isso ficamos em suspense. O subtexto que dá conta das cicatrizes de guerra, da moral elástica do soldado em combate, é menor diante da forma, do jogo proposto por Kazan, no fim das contas, mais intrigante que o desfecho relativamente previsível.


Os personagens de Aki Kaurismäki são gente de ação, cujos atos atropelam a ponderação. Além disso, são pessoas do povo, geralmente vivendo à margem. Em SOMBRAS NO PARAÍSO, um catador de lixo se interessa por uma caixa de supermercado. A frieza do semblante deles reflete o clima, a neve, o tempo nublado de Helsinki. A paixão está ali, porém camuflada sob a aparente anestesia das expressões, dos movimentos quase automáticos. Não há enrolação no cinema de Kaurismäki, alegrias e tristezas se sucedem sem que a qualquer uma delas seja dada mais importância. Uma fina ironia percorre as cenas, assim como um humor incomum, às vezes autodepreciativo, mas, ainda assim, terno. A luta de classes está lá, evidenciada na dificuldade desses marginais para inserir-se em determinados lugares virtualmente proibidos à sua condição social. A tragédia é a do homem comum, das batalhas cotidianas, seja por sobrevivência ou para obter um pouco de dignidade e amor em meio a tanta sordidez. Os personagens fumam o tempo todo, habitam lugares pouco iluminados, agem impulsivamente, tornando-se símbolos de um cinema singular e excepcional.

sábado, 12 de setembro de 2015

O Homem que Sabia Demais


Em O Homem que Sabia Demais (1956), remake do homônimo inglês de 1934 e dirigido pelo mesmo Alfred Hitchcock, o Dr. Ben McKenna (James Stewart) passeia com a mulher e o filho pelo exótico Marrocos após um congresso profissional na França. A esposa, Jo McKenna (Doris Day), desconfia desde o início do francês enigmático que os ajuda – por saber falar “algumas” palavras de árabe – a sair de um incidente ocasionado por diferenças culturais/religiosas. Após o ocorrido, ela mantém um pé atrás, no que não sabemos de antemão ser fruto do sexto sentido feminino ou da paranoia. Enquanto explora a localidade, a família mal sabe que é enredada num complicado caso de disputas internacionais.

Alfred Hitchcock não ganhou a alcunha de “mestre do suspense” por acaso. Em O Homem que Sabia Demais, por exemplo, ele injeta pequenos conflitos em sequências aparentemente feitas para servir de interlúdio entre uma e outra de relevância mais evidente. Tal artifício narrativo confere ao filme um permanente clima de tensão. Mesmo quando o casal se diverte com a própria ignorância quanto à culinária local e os modos de comer muito diferentes dos quais estão habituados, há intervenções que transpassam as amenidades, isso para reforçar a sensação de perigo latente. Essa arquitetura vista, sobretudo na primeira parte, prepara o terreno para quando, de fato, a trama entrar mais explicitamente no campo das intrigas.

O Dr. McKenna e sua esposa logo se veem num dilema: resgatar o filho ou impedir um assassinato. A busca é dificultada pela falta de experiência de ambos no campo investigativo, a impossibilidade de recorrer à polícia e pelo tempo que se esvai aos poucos, assim diminuindo as chances de sucesso em qualquer dos caminhos que decidirem tomar. Como dar conta da dupla demanda, cujo entrecruzamento respinga nas esferas pessoais e políticas, sendo completamente leigo nos jogos escusos de espionagem?   Alguns dos mais célebres filmes de Hitchcock são, da mesma maneira, protagonizados por pessoas “comuns”, envolvidas – geralmente por estarem no lugar e na hora errados – em imbróglios espinhosos e, não raro, repletos de agentes e manobras. É, por assim dizer, uma situação cara ao cineasta inglês.

Outro artifício de destaque em O Homem que Sabia Demais é a trilha sonora. Criada por Bernard Herrmann, colaborador frequente de Hitchcock, ela ajuda a conduzir de maneira muito eficiente o espectador pelos rumos da história. Além disso, a música diegética é protagonista de pelo menos duas cenas capitais: numa delas, a familiaridade de uma canção que ajuda a aproximar mãe e filho, e na outra, transcorrida no Royal Albert Hall, em que a combinação exemplar de ritmo, som e imagem cria uma alta voltagem de suspense. O Homem que Sabia Demais é, assim como muitas outras realizações de Hitchcock, grande na medida em que percebemos os meios complexos utilizados pelo cineasta para fazer um filme (aparentemente) simples ao espectador.


Publicado originalmente no Papo de Cinema 

sábado, 5 de setembro de 2015

Doses Homeopáticas #49


Em CÃO SEM DONO, os diálogos e os movimentos são trabalhados ao ponto de parecerem naturais, não encenados. O protagonista é um jovem adulto meio à deriva, sem porto seguro profissional nem mesmo afetivo. A bela mulher que entra em sua vida, infiltrando-se aos poucos por entre as brechas da resistência, sacode seu dia a dia. O filme é feito das deambulações dele, de sua cada vez mais evidente inquietude existencial. As andanças pelas ruas de Porto Alegre, as conversas aparentemente banais, os interlúdios de felicidade, são acontecimentos que preenchem apenas alguns espaços superficiais. Nada do que ocorre parece realmente significativo, a não ser o amor por Marcela. A trama caminha pautada pelas elipses, pelos buracos propositalmente criados para dar dinamismo ao filme, evitando, assim, que se desenrole de maneira convencional. É uma história de formação tardia, que sinaliza a tendência atual do amadurecimento emocional moroso, efeito colateral da forma como nos relacionamos, entre nós mesmos e com o mundo, nos dias de hoje. 


Muito se fala sobre Anthony Hopkins e Jodie Foster em O SILÊNCIO DOS INOCENTES, e com razão. Que grandes interpretações, a dele como o assassino frio, calculista e inteligente, e a dela na pele da obstinada jovem com diversas áreas cinzentas prontas a serem exploradas. Mas, o que me impressionou particularmente na revisão foi o trabalho de câmera do diretor Jonathan Demme, a decupagem incomum para um filme com fortes elementos policiais. Há predominância dos planos fechados, o que torna tudo mais íntimo nas interações sociais e claustrofóbico nas sequências de ação e suspense. O jogo psicológico é hipnótico, boa parte por conta dessa predileção diretiva em demorar-se nos rostos. Sempre que possível, enquadra-se um personagem de cada vez, bem de perto. Embora estejam juntos em cena, cada qual trava suas batalhas particulares, e isso é ressaltado com muita eficiência pela imagem. Demme cria um forte drama psicológico, muito mais focado na dinâmica entre Hannibal e Clarice que em qualquer esforço para encontrar Buffalo Bill. A relação professoral/paterna se fortalece cada vez mais como verdadeiro pilar do filme.


O protagonista de O ANJO AZUL é um bastião da moral e dos bons costumes. Professor, ele descobre que seus alunos estão enredados por uma atriz de cabaré. Ao tomar contato com as pernas e a voz da personagem de Marlene Dietrich ele se apaixona, chegando a largar sua respeitada profissão para segui-la na vida itinerante. O filme de Josef von Sternberg deve ao expressionismo, algo visto nos cenários ligeiramente retorcidos e na fotografia que mostra um contraste forte entre a luz e a sombra. Emil Jannings transmite a deterioração pela qual o professor Immanuel passa, a gradativa descida ao inferno de um homem que perdeu o chão, atirando-se ao amor desajeitadamente, sem qualquer prudência. Literalmente transformado num palhaço tristonho, ele encena sua miséria no palco da cidade natal, retorno que atrai a massiva atenção dos que o conheceram nos tempos do magistério. Marlene Dietrich, por sua vez, exala sensualidade e perigo. O final ressalta a vocação trágica do filme, algo que se pode antever pela trajetória cada vez mais tortuosa de todos.