terça-feira, 29 de novembro de 2011

A espera que leva a Matar ou Morrer


No dia do seu casamento, o xerife Wil Kane, prócere de uma pequena cidade no Velho Oeste americano, recebe a notícia de que o bandido Frank Miller teve seus crimes perdoados, e que chegará em poucas horas para levar à cabo a vingança contra quem o expurgou da localidade. O principal alvo de Frank, e dos três comparsas que aguardam sua chegada no trem do meio-dia, é justamente Kane, que se recusa a fugir mesmo sob protestos da mulher e aconselhamentos dos moradores. Começa então uma verdadeira corrida contra o tempo, em que Kane tentará buscar a ajuda dos corajosos locais, a fim de que não padeça.

Em Matar ou Morrer, este célebre western de Fred Zinnemann, a jornada física e psicologicamente desgastante do xerife Kane, bem como a apatia do povo que não parece disposto a se arriscar por quem no passado restaurou a paz local, dão a tônica narrativa, que impressiona ainda pela precisão e poder de síntese. Em menos de 90 minutos, Zinemann cria uma obra marcada pela tensão crescente, assim como pela impossibilidade da inércia ante uma situação que conduz inevitavelmente à tragédia. Para Kane é matar ou morrer, não existem saídas diplomáticas no oeste de homens bravios que defendem suas honras pela lei do olho por olho, dente por dente.

Desencorajado por todos, acuado e dividido entre os sensos de justiça e sobrevivência, o xerife Kane, interpretado brilhantemente por Gary Cooper, experimenta a solidão que só se agrava pela proximidade da morte, também provando o gosto amargo da hipocrisia e covardia dos próximos, verdadeiras antíteses do tipificado cowboy americano. O próprio Kane fraqueja, transpira medo mesmo quando tenta, em vão, convencer homens de fé inabalável a largarem suas posturas individuais na defesa de suas terras e de quem já muito os ajudou. A memória do povo é curta, e a ingratidão está aí para provar isto.

A música desempenha papel fundamental em Matar ou Morrer, pois auxilia sobremaneira no desenho do turbilhão de sentimentos vividos pelo protagonista, pesaroso da ausência da mulher que ama, ao mesmo tempo em que precisa criar uma tática de sobrevivência. O clímax pode parecer apressado, até mesmo simplista se enxergarmos as etapas anteriores do desenvolvimento narrativo apenas como preparação para o derradeiro. Mas justamente pelo contrário - o clímax na verdade serve de amplificação dos temas abordados nas fases passadas, é que Matar ou Morrer se mostra poderoso em suas intenções incomuns. Um filme belissimamente fotografado em preto e branco, que desconstrói o homem do oeste que nada teme, mostrando que mesmo os mais intrépidos daquela época, tremiam internamente ante a possibilidade de terem ceifadas suas vidas. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

The Walking Dead e os comerciais da raposa

Crédito da Imagem: Blog do Jotacê

Gosto da série The Walking Dead, mas não sou fanático. Para ser sincero, me aborrece um pouco a segregação que nela ocorre entre os bons e os maus, entre a virtude e a canalhice, num belo exemplo de maniqueísmo. Fora isso, tudo é um pouco enrolado, cozido em banho-maria, mas mesmo assim assisto, pois se está longe de ser algo digno das expectativas e da euforia de alguns, ao menos é um bom entretenimento com certa dose de tensão.

Todo episódio inédito é lançado nos domingos em terras americanas, e a Fox, emissora de TV fechada que transmite por aqui, presta um verdadeiro serviço ao exibi-la logo na terça-feira seguinte, ou seja, apenas 48 horas após a apresentação estadunidense. Mesmo sendo adepto do download (uma vez era reticente, hoje sou partidário), resolvi, juntamente com meu irmão e parceiro de The Walking Dead, Rafa Müller, prestigiar esta ótima iniciativa do canal de encurtar a janela de exibição entre EUA e Brasil, pois temos TV por satélite em casa, numa operadora que permite assistir ao programa no idioma original e legendado (certamente nem teria cogitado assistir tudo dublado). Tentei, juro, mas não dá. Voltarei ao download.

Irritei-me extremamente com a exibição entrecortada por dois blocos de 10 minutos (sim, eu disse 10) de propaganda. Cada episódio possuiu 40 minutos, e a Fox faz o seguinte: exibe os primeiros 20, vai para o primeiro grupo de propagandas bregas sobre perfumes importados, volta com mais 10 de série, pula para outros 10 intermináveis dos mesmos comerciais, e retorna lépida e fagueira para a exibição dos últimos 10 minutos de The Walking Dead. Pode isso Arnaldo?

Ah, façam-me o favor. É inadmissível que ocorram duas interrupções tão implacáveis e prolongadas que, inevitavelmente, quebram o ritmo da audiência. E depois reclamam dos downloads, de quem baixa e confere de maneira “clandestina”. Tenham um pouco mais de consideração por quem assiste, ganhem dinheiro (afinal isto não é pecado algum), mas não sejam estúpidos, ao menos não o suficiente para acreditarem que com pausas tão ridículas e estendidas, teremos ainda a boa vontade de “fazer o certo”. Afinal de contas, quando ligava (atenção ao tempo verbal) às 22h, terça-feira, na Fox, era para assistir The Walking Dead, não repetidos reclames dum perfume Jean Paul Gaultier.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Asghar Farhadi - Cinema humano de resistência


Estava sentindo falta dos meus pequenos devaneios. Muito por conta da nova função como articulista e crítico do site Papo de Cinema, tenho me dedicado com mais afinco de fato às críticas, negligenciando assim estas pequenas reflexões cotidianas acerca da arte, mais provavelmente do cinema. Pois bem, na última semana tomei contato com os dois mais recentes (e badalados) filmes do iraniano Asghar Farhadi: Procurando Elly e A Separação, portadores de diversas láureas em festivais ao redor do mundo. Ambos, dramas aparentemente detonados por quase banalidades: o desaparecimento de uma semi-desconhecida, e a separação de um casal qualquer. 

Numa produção ordinária, seria natural que estes motivos fossem apenas deflagradores de uma série de rompantes emocionais. Ainda que repletos de arroubos passionais, afinal tratam de gente, estes filmes emergem da mesmice ao catalisar ações e reações essencialmente como maneira (brilhante) de refletir sobre a sociedade donde brotaram. Embate de classes, o arraigado fundamentalismo religioso, a lei que se curva aos preceitos morais e éticos do Corão, a opressão da mulher ainda coberta pelo chador, e por aí vai. O diretor e sua equipe se valem de linguagem naturalista, câmera na mão, e inspirada mise-en-scène que reforça o sentido de cotidiano. Nada fronteiriço entre o fabular ficcional e a emulação engessada do real, é bom que se diga, mas portador de certo frescor, digamos, verdadeiro, que permeia sobremaneira o que se propõe e dispõe como legítima ficção. 

Sem ao menos resvalar no didático, e negando qualquer aproximação com alguns “filmes para gringo ver”, que se excedem ao valorizar aspectos exóticos aos de fora, Procurando Elly e A Separação são, além de testemunhas filiais do talento legítimo de Asghar Farhadi, sinceras lições a respeito do Irã e de sua sociedade convulsionada. Aprende-se mais sobre aquele entorno na audiência de ambos, do que nos noticiários tendenciosos, que só fazem aumentar estereótipos. Cinema pungente, político e social, voltado às pessoas que tanto são afligidas por elementos que deveriam lhes confortar.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Confiar e as vítimas do sexo institucionalizado


David Schwimmer, o eterno Ross da série televisiva Friends, passeia por campo minado em sua nova incursão atrás das câmeras de cinema. Falar de sexo, relações virtuais e frustrações, é um tatear a cada nova cena por emoções e situações que, não raro, contribuem para desenvolvimentos planos e sentimentaloides. Em Confiar, Annie é uma menina como tantas outras, repleta de dúvidas e baixa autoestima, que se apaixona pela internet e estabelece relacionamento virtual paralelo ao que mantém com sua família e amigos. Ela não hesita muito em ir ao motel com o homem de quase 40 anos que na web se dizia um adolescente tão cheio de incertezas quanto ela.

Há a descoberta do caso pelos pais, a interferência do FBI e toda uma busca pelo pedófilo. Will, o pai, interpretado por Clive Owen (num registro que lembra noventa por cento das interpretações deste bom ator meio monocórdico) fica obcecado por encontrar o homem que molestou sua garotinha. O paradoxo se apresenta em sua profissão, utilitária da erotização adolescente para aumentar as vendas de seus clientes. Contradição rasa, pouco desenvolvida, que soa mais como reprimenda e chamamento moralista à reflexão do espectador sobre a sociedade em que vive. Intenção boa, por certo, mas delas o inferno está cheio. A desabalada carreira de Will em busca do bandido esbarra ainda na dificuldade da investigação, agravada pela própria filha, enamorada de seu suposto agressor. Estupro, sexo consentido, ou algo que uma adolescente de quatorze anos ainda não tem maturidade para avaliar?

Confiar é um tanto perdido em seu próprio escopo, indeciso entre o drama familiar e a expansão de sua causa como exemplo de algo maior e cotidianamente preocupante. Will parece mais atormentado por sua impotência do que propriamente pelo delito cometido, e Annie reluta enquanto amada, aceitando-se vítima do crime somente após tomar conhecimento de que não foi especial para o meliante. Confiar discute com pouca profundidade o nocivo protagonismo do sexo na sociedade, mas talvez seu maior pecado seja o de não assumir posicionamentos que fujam do senso comum. David Schwimmer resvala em diversos pontos de controvérsia, mas sua narrativa acaba sendo vítima de signos palatáveis. Tivesse o arrojo de abordar com menos pudor o embate entre as frustrações do pai e a natural inconsistência da personalidade adolescente ainda em formação da filha, e o diretor poderia ter realizado algo maior, preso de menos na obrigação de passar mensagens de alerta, e mais aberto às pessoas. Schwimmer é exatamente como Will: obcecado pelo tema, pelo que ocorre, e descuidado em demasia com os personagens que por ele são duramente afetados.


Publicado originalmente no Papo de Cinema. 

sábado, 5 de novembro de 2011

A Árvore da Vida que evolui


Difícil descrever a montanha-russa de sensações experimentadas durante a sessão de A Árvore da Vida. Envolto na aura de mistério e expectativa inerentes aos trabalhos bissextos do cineasta Terence Malick , o filme, vencedor da Palma de Ouro no último Festival de Cannes, parece suscitar seguidores e inimigos com a mesma intensidade. Pretensioso, auto-importante, genial e genioso, são alguns dos adjetivos que grudam na percepção de quem o vê, é claro, dependendo de como ele bate. Minha relação com A Árvore da Vida foi bastante atípica. Deu-se, inicialmente, num misto de espanto e deslumbramento, caiu vez ou outra num marasmo, voltou ao campo do deslumbre e ainda continua seu processo de expansão. O filme ficou, e isto já é sinal que de banal ele não tem nada.

Terence Malick certamente é ambicioso e pretensioso. Mas quem disse que estas são duas características negativas, desde que se justifique a ambição e se alcance a pretensão? Recorrer a uma narrativa grandiloqüente para apequenar o homem diante dos mistérios do universo, certamente não é expediente inovador, mas há muito não se via no cinema uma reflexão tão aberta neste nível. Alguns vêem na história (e na tragédia) familiar americana dos anos 50, e sua relação de significados com o Big Bang, originário da vida, uma meditação acerca da existência de Deus, de alguém que vela meio displicentemente seus filhos, que manda moscas para feridas, quando poderia curá-las. Outros entendem o filme como depositário das intenções de um artista louco para descobrir este Deus. Alguns, ainda, diriam que A Árvore da Vida se presta a um acúmulo de clichês que funcionam como elo entre religião e filosofia barata.

Ao discutir quase tudo, Malick certamente buscou a transcendência. Contudo não me parece que sua intenção vá muito além de mostrar nossa pequenez ante ao todo que nos abriga, e imbuir de força divina os processos da natureza violenta e cruel que nos circunda. O Big Bang, a cachoeira com suas águas turbulentas, o dinossauro que se mostra dominante, pois evoluído, e o menino que, oprimido pela figura paterna, vê-se em certo momento tal qual o pai (“Sou tão ruim quanto você”, ele chega a dizer) demonstram o caminho agudo inerente à natureza, que só é bela e possuidora de tantas maravilhas quando vista por olhos inferiores como os nossos. Isto poderia ser uma metáfora para um Deus que, igualmente, só é magnânimo quando comparado às criaturas menores que somos? Claro que pode, repito, depende do ponto de vista.

A meu ver, A Árvore da Vida é um acontecimento cinematográfico difícil de ser amplamente controlado pelo espectador. Ao relacionar o núcleo familiar, que se presta, com uma variação e outra, a qualquer família constituída, com os processos que levaram à evolução das espécies, Malick pode ter errado a mão em algumas partes, esticando demais certos planos, se perdendo, vez ou outra, na grandiosidade metafísica que gostaria de exprimir por meio de seu cinema. Certamente que pode, e até acredito que A Árvore da Vida não seja livre de algumas arestas, de reparações, pois perder-se na imensidão do cosmos, e na intenção de retratá-lo em sua complexidade, é humano, demasiadamente humano.

Não me furtaria o direito, porém, de taxar este novo filme de Terence Malick como grande. O cuidado com a imagem - que passa ao largo da mesmice a que somos submetidos cotidianamente, o trato de personagens tão interligados e, por que não, alegóricos, e a abertura às múltiplas interpretações e entendimentos, tudo respira pelos poros do talento recluso de Malick. No que alguns veem lampejos de documentário do Discovery Chanel, percebo uma construção bastante importante para que se entenda o itinerário do filme. O que muitos teimam em pintar como narrativa truncada, me parece um claro e impressionante fluxo, composto por elipses que reforçam os pequenos fragmentos e que transformam as diminutas coisas e gestos em microeventos interligados.

A Árvore da Vida é uma ampla experiência sensorial que, sem dúvida, clama por outras incursões, para que nelas se possa desvendar outras possibilidades. É uma viagem, a meu ver não no sentido pejorativo, como se fosse obra de alguém sob efeito de qualquer substância (como já andei lendo por aí), mas sim por carregar o espectador a outros lugares, por embeber os sentidos com imagens e sons impressionantes, por instigar o pensamento distante das convenções. Um grande filme que se desdobra, permanece e, o que é mais impressionante, evolui.