quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Despedida em Las Vegas


Ben, o personagem de Nicolas Cage em Despedida em Las Vegas deve ser um dos mais autodestrutivos do cinema. Quase não há cena ou sequência em que não o vejamos encerrado em copos e garrafas repletos de álcool, nos quais busca abertamente a morte. Trabalhador da indústria cinematográfica, em dado momento ele junta algumas roupas, o dinheiro lhe garantido pela recente demissão, a bebida tão cara e segue rumo a Las Vegas, oásis incrustado no deserto de Nevada.  A mudança não é motivada por anseio de vida nova e sim pela concretização da violência física e psicológica que impinge a si mesmo.

Já perambulando em meio à frenética movimentação da nova cidade, ele encontrará Sera, prostituta cuja existência não está longe da desventura opressora que o leva a pensar no fim. Desse encontro aleatório nasce uma ligação onde os seres tortos amparam-se no infortúnio alheio. Não há percurso em que o afeto inesperado leve a redenções, arrependimentos ou mesmo reviravoltas. Escanteie a lembrança dos dramas edificantes, nos quais o amor tudo pode e vence. Nada contra eles, quando bem orquestrados, mas em Despedida em Las Vegas o diretor Mike Figgs parece mais interessado em trabalhar a profundidade de pessoas quebradiças e cientes de suas falhas, sem forçar transformações miraculosas.

A beleza fulgurante da atriz Elisabeth Shue empresta volúpia a Sera, figura que suprime até o encontro com Ben uma necessidade básica de encontrar na tragédia existencial vizinha a via para abrandar seu próprio sofrimento.  Já Nicolas Cage, tão caricato ultimamente em papeis aquém de sua capacidade dramática (fruto de escolhas duvidosas), é a própria face da miséria humana na pele do homem que caminha inexoravelmente para o abismo. Juntos em cena, os dois intérpretes conseguem transmitir toda fragilidade de seus tipos e ainda amplificar o trabalho alheio. Poderíamos chamar isso de “química”.

Da trilha sonora muito bem pensada às escolhas fotográficas, tudo em Despedida em Las Vegas parece dar relevo ao trajeto descendente dos protagonistas. Não à toa o sexo, catalisador em algumas passagens, torna-se quase inalcançável entre o ébrio e a meretriz, espécie de tabu apenas rompido totalmente quando não há mais qualquer fio de esperança.  A deterioração atinge níveis de melancolia atroz no instante em que os dois findam sua ligação, banhados pelas mesmas luzes que evidenciam a fortuna efêmera dos apostadores na urbe insone.  Nem sempre há tempo para estancar feridas já abertas e de sangria irreversível.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

CINEMA A DOIS | OS DAVIDS - A Estrada Perdida e Crash - Estranhos Prazeres


A Estrada Perdida se abriga sob a égide onírica criada por David Lynch. Tal moldura, estilo entre o surreal e o enigmático, seria novamente vista em trabalhos sequentes, como Cidade dos Sonhos e Império dos Sonhos. Podemos dizer que o filme em questão se divide em duas partes demarcadas pela transmutação do protagonista, e, por conseguinte, da trama. Na primeira delas, Fred (Bill Pulman) mata a mulher, Renée (Patricia Arquette), mas curiosamente nada lembra quando interrogado. O contexto conjugal pré-crime é feito do homem inseguro frente a esposa sedutora, esta, porém, fria e lacônica, paradoxos que reforçam nele o desconforto permanente. Lynch mostra sintomas complementares, mantém a relação do casal na base ora da neurose, ora da excitação.

Na segunda parte, surge Pete Dayton, rapaz jovem, mecânico que mantém caso com Alice, esta também interpretada por Patricia Arquette. Ela é mulher de Dick Laurent, gângster perigoso e sádico, desconfiado da traição. Os devaneios e delírios contumazes de David Lynch aparecem claramente quando Alice e Pete perdem as rédeas em pleno deserto. Ali vemos luxúria, ímpeto incessante, gozo obsceno (ainda sutil) no rapaz cuja projeção paterna é o gângster, e na mulher que obtém prazer ao suscitar angústia nos homens desejantes. Por sua vez, Dick Laurent utiliza o poder para exercer sadismo em quem o venera e teme.

A Estrada Perdida é autêntico road movie. Mas estamos falando de David Lynch, cineasta subversor de gêneros. Portanto, poderíamos classificar A Estrada Perdida como road movie às avessas, pois nele a estrada é bloqueada, impedida e proibida. Não fica claro onde o caminho vai dar, mal conhecemos o ponto de partida, e o de chegada explicita-se tal enigma, aliás, arredio a soluções. A estrada de Lynch corta com violência alucinações, sonhos, projeções e frustrações, em suma, conduz irremediavelmente à perdição.

Baseado no livro homônimo de J.G. Ballard, Crash – Estranhos Prazeres parte de determinada sequência tão erótica quanto estranha, portanto, plenamente de acordo com o restante do filme. Catherine Ballard (Deborah Unger), loira cuja sensualidade transborda ao menor movimento, repousa os seios na asa de um avião, excitando-se em contato com a máquina enquanto é penetrada por trás. A descrição não é mais precisa que a feita pela própria Catherine a seu marido, James Ballard (James Spader). Dentro de uma lógica matrimonial bastante particular, ele, por sua vez, responde à esposa sobre o sexo com a assistente, inclusive os pormenores.

Após colisão de consequências fatais ao outro motorista, James passa a cultivar tara por acidentes de carro, tomado por estranha sensação inserida no limiar entre sexo e finitude. Daí a conhecer outras pessoas cujo desejo trafega por vias semelhantes é um pulo. Cronenberg filma Crash – Estranhos Prazeres perscrutando fetiches que elevam o hedonismo a única filosofia possível para a realização plena dos seres. A vida, tão frágil e volúvel, é moeda de troca para chegar às vias do prazer supremo, sem as quais, segundo alguns, não valeria a pena viver. Os eventuais danos físicos podem servir, inclusive, de entrada numa nova era, onde o corpo seria melhorado pela intervenção da ciência. Ou seja, nada mais cronenberguiano.

A convivência entre pulsão de vida e pulsão de morte faz Crash – Estranhos Prazeres sobrepujar seu imprescindível caráter erótico (as cenas de sexo são muito bem filmadas e bastante excitantes), pois o coloca num patamar onde se aprofunda a investigação das necessidades humanas para além da mecanicidade fisiológica. O carro, elevado a fetiche social desde sua invenção, é a armadura que, paradoxalmente, protege e expõe nossa fragilidade enquanto seres orgânicos.

Tanto A Estrada Perdida quanto Crash – Estranhos Prazeres mostram a transgressão como elemento de prazer, no primeiro, perverso, e no segundo, fetichizado. Em ambos, o sexo é constante e primordial à interação dos personagens, embora algo periférico se submetido às mais agravadas mazelas mentais dos mesmos. Se para Lynch o sexo é instabilidade violenta, choque constante de prazer e dor, para Cronenberg é álibi ao hedonismo inconsequente. O, por assim dizer, elemento “Arquette” também aproxima os longas. Patrícia Arquette perdida entre suas personagens lynchinianas e Rosanna Arquette, mulher-biônica tipicamente cronenberguiana.

Os dois filmes marcam a entrada de seus diretores numa estética contemporânea, sofisticada. A Estrada Perdida transfere o onirismo que Lynch fez emergir antes nas pequenas e pacatas cidades para a urbanidade caótica, tornando-a, assim, mais caótica ainda. Já Crash – Estranhos Prazeres possui estilo apurado, sóbrio, em contraste com os apelos visuais (positivos) próprios à filmografia anterior de Cronenberg. Eles guardam outras semelhanças, por exemplo, nos acidentes automobilísticos. Ainda que tal incidência seja bem mais relevante no filme do canadense, Lynch utiliza-a para determinar uma transição importante.

Mas há também alguns pontos que diferenciam bastante as realizações. Em A Estrada Perdida a perversão mascara a neurose dos personagens. Em Crash – Estranhos Prazeres a narrativa se constrói sobre o prazer que efetiva e verdadeiramente aquele grupo experimenta ao reconstituir acidentes automobilísticos. De certa forma, eles caminham ao fim inevitável, considerando suas naturezas destrutivas. David Lynch denuncia os inconscientes presentes, as camadas ocultas, desejos, o que os personagens fariam por amor ou dinheiro. Cronenberg mostra a patologia daquele grupo, nua e cruamente. As figuras são assim, e ele enquanto diretor não problematiza isso, apenas expõe.

Em Crash – Estranhos Prazeres há visceralidade, a "verdade" potencializada na doença, traço inexistente em A Estrada Perdida. De fato, um é neurótico e outro é psicótico; um é loucura e o outro é o desejo inconsciente de ser louco. “O sonho de todo neurótico é ser perverso", poderia bem ilustrar A Estrada Perdida.

Por Ana Carolina Grether e Marcelo Müller

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A ESTRADA PERDIDA – Por Bianca Siqueira 
Este filme nos convida a compartilhar alguns momentos da estrada percorrida por Fred (Bill Pulman) numa viagem ao seu mundo de significados e significações. Neste mundo onírico, simbólico, a linguagem e a comunicação se dão pela representação desses símbolos. O percurso do Fred é o resultado destas representações como: seus medos, suas angustias. É através destas representações que seguiremos pelo caminho "perdido".

O local onde este personagem está, assim como suas ações e reflexões, o expõe para a sua consciência (luz). A dialética se dá com elementos e objetos que o revelam.
A câmera intimista, a mão que aceita a sua impotência, o salto alto da Renée em todas as circunstâncias, o aprisionamento dentro do corpo angustiado, inseguro, ou a fuga deste mesmo ser ao encontro da liberdade em outro corpo (através do jovem mecânico), novas possibilidades para a vida amorosa, são algumas destas revelações que seu eu encapsulado em Fred tenta decodificar e transformar . 
Mas seu retorno, ao mesmo símbolo de fraqueza diante da impermanência das coisas, vai se construindo e o encontro com o mensageiro desta fatalidade se dá, novamente. Seus medos, inseguranças, desejos, violações, são expressos por ações, imagens, sons, palavras que encontramos por esta estrada afora. O caminho por onde Fred se encontra ou se imagina está cheio de perigos. Afinal a vida é cheia destes perigos! 
Ele está inseguro com relação a Renée, e a encontra como Alice ( talvez no país das maravilhas) que, a princípio, o fará se sentir único, especial, mas logo adiante ele terá que passar pelo mesmo local de onde partiu: insegurança, infidelidade, perdas. 
Ele se dá conta deste inferno de dúvidas e impotências e o seu eu se volta para o mesmo (Fred), para sua casa e lá deixa um recado que chegará logo logo a sua consciência: Dick Laurent está morto! Este recado é o que dá início as suas investigações. Quem é Dick Laurent?
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A ESTRADA PERDIDA – Por Pablo Gonzalez 
Veja bem essa estrada, algo vai mudar. É segredo. Pode ser dito sob a forma: Dick Laurent está morto. A morte e o sexo aceleram meu coração. Você acelera meu coração. Estou apaixonado, cuidado. Filmar um tiro é dar um tiro? Não é qualquer pessoa que trabalharia com Marilyn Manson. Somos moléculas comunicantes. Isto passa por você? Atenda esta ligação e me obedeça, você não será mais a mesma. Loura ou morena, tanto faz, meu segredo te transformará. Fred e Pete são meus nomes, eu tenho a minha vida. A polícia é palhaça. Trabalho com consistência violenta para imagens atraentes. Vem que eu vou te mostrar que não sou um só e que há muita coisa entre eu e você. Não é pra entender, é pra calar a boca e berrar. Vem fugir comigo, caia na minha armadilha. Extremo oriente, execução... Extremo ocidente, execução... Você vai conhecer um grupo secreto de sadomasoquistas traidores. Lembre-se: não existem coincidências ruins. Como é seu nome mesmo? Renée? Alice? Vou confundir seu julgamento. Pornô, videotaping, paranoia. Venha conhecer a genealogia da dor. E no final você vai me dizer o que foi que mudou na estrada...
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CRASH – ESTRANHOS PRAZERESPor Luciano Marra
Em termos lógicos, desde Aristóteles houve a separação clara entre meios e fins. Por mais redundante que pareça, objetos humanos, salvo os sacralizados, totêmicos ou artísticos, todos 'serviam a...', isto é, eram meios para atingir um fim. No entanto, já no sec. XX, com a produção industrial acelerada com a estratégia fordista, bens de consumo  só teriam saída se a demanda acompanhasse o incremento da produção. 
Caso a procura desses objetos se pautasse no uso, a procura seria mais lenta, dado nosso ritmo biológico, e a indústria morreria por encalhe de estoque. Daí que as lições do nazismo foram deslocadas para a publicidade. Passaram a fluir uma avalanche de imagens a fim de mistificar objetos de consumo e incrementar vendas. Da perspectiva eurocêntrica, o consumidor branco-padrão, o caso mais emblemático dessas lições é o do automóvel, no qual ele deixa de ser objeto de uso para se tornar um fim em si mesmo, já mistificado pelo jogo de imagens despejados na população urbanizada. Como dito antes, isso acontece se o objeto de alguma maneira se prestar ou ao culto, ou ao deleite. Caso sirva ao deleite, teremos um caudaloso desvio da libido em direção a um objeto morto, o que outrora fora tipificado como anomalia, o já puído fetiche sexual.

Em Crash – Estranhos Prazeres, Cronenberg leva ao extremo a hipótese da aceitação generalizada da proposta publicitária e causa enorme desconforto na classe média britânica ao ironicamente normalizar, numa acepção foucaultiana, tornar "normal", a intermediação dos prazeres por objetos de consumo. Criou um filme em que esta aberração em curso desde a década de 50 ganhou ares de 'mal-estar-da-civilização' da classe média consumista. E até hoje é amado-odiado pelo feito, cuja cena inicial é uma mulher loira sendo comida por trás ao mesmo tempo em que se esfrega na lataria de um avião.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

007 – Marcado Para a Morte


Já no início deste que é o décimo quinto filme do ícone criado por Ian Fleming, há uma missão de treinamento aos vários agentes 00, ou seja, àqueles com permissão para matar, os mais letais do serviço britânico MI6. Entre eles, um duplo que troca balas de tinta por projéteis de verdade, obrigando o mais famoso dos espiões cinematográficos, Bond, James Bond, a colocar ordem na casa, salvando a base de um acidente mais danoso. 007 - Marcado para a Morte vai, então, desenrolar-se quase todo dentro dessa dinâmica logo estabelecida, a das aparências, dos joguetes e conspirações político/comerciais. Convém não acreditar nas primeiras impressões, todos podem falsear e adotar personagens em busca de seus objetivos. 

James Bond cai numa espiral conspiratória que envolverá o serviço secreto britânico, a KGB, o governo soviético, mercadores de armas e revoltosos afegãos também vendedores de ópio. Em meio a tanta balbúrdia, certamente o protagonista terá tempo de apaixonar-se (ou seria melhor, suscitar a paixão?) por uma bela violoncelista russa, de alguma forma também metida nessa miscelânea internacional. Em 007 - Marcado para a Morte não há um antagonista marcante, como em vários das décadas de 60 e 70 (quem não se lembra de Auric Goldfinger, por exemplo?), mas a estrutura básica, com vilões e um assecla principal, neste caso o disciplinado Necros, permanece intacta e fiel à tradição. 

Interessante notar que 007 - Marcado para a Morte abriga quase todos os cânones “bondnianos”, inserindo-os aqui e ali com muita perspicácia. Bond é o mulherengo de sempre, tem suas diferenças com a diretiva do MI6, interage com Moneypenny, o chefe “M”, o gênio “Q“ e dirige aquele Aston Martin repleto de traquitanas. É claro, lá pelo meio, bebe seu martini, batido, não mexido. Na primeira aparição como James Bond, o ator Timothy Dalton prova sua competência, pois acresce particular valor ao agente a serviço da majestade. Ele mantém aquele olhar cafajeste, característico do personagem, sendo, ainda, eficaz nas cenas de ação, aliás, muito bem orquestradas pelo diretor John Glen, de longos serviços prestados à franquia, seja como diretor, editor ou mesmo timoneiro de segunda unidade. 

007 – Marcado para a Morte, sobre ter sido lançado em 1987, ainda guarda o frescor de uma boa aventura, não deixando transparecer em demasia os sinais do tempo, que, a bem da verdade, são denunciados apenas na abertura cantada pelo A-ha, banda muito em voga na época, hoje saudosa aos adeptos do revival oitentista. É funcional, muito porque o descompromisso com a estrita realidade não se deixa confundir com alienação, algo que pode surgir na audiência de alguns antecessores. Por essas e outras, 007 - Marcado para a Morte sobrevive como um dos bons filmes estrelados pelo espião favorito de 09 entre 10 cinéfilos.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

A Última Ceia


Hank (Billy Bob Thornton) é homem solitário e petrificado por trajeto provavelmente feito de muitas expectativas dentro de criação para lá de conservadora. Assistente penitenciário especializado em preparar condenados à morte, ele tenta legar ao filho a força que seu próprio pai sempre dele cobrou, afinal de contas, homens não podem chorar, fraquejar, vacilar, isso nas leis do pré-histórico tempo no qual até o racismo era visto como algo normal. Interessante como numa das primeiras cenas, mesmo sem concordar com o ideário segregador do pai, Hank dá pequeno espetáculo assustando crianças negras, de arma em punho. O patriarca vê tudo da janela, orgulhoso do rebento à sua aparente imagem e semelhança.

O episódio no qual Sonny (HeathLedger), filho de Hank, titubeia levando certo homem à cadeira elétrica provoca torvelinho de sentimentos que explode em briga e acaba em morte, mais precisamente suicídio. Cena brutal, seca e bem coerente com o registro adotado por Marc Forster em A Última Ceia. Aliás, a aridez utilizada para delinear personagens e suas motivações de certa forma amplifica uma sensação de abandono primal, como se realmente estivéssemos sós no mundo. E isso é reforçado quando esquadrinhamos Letícia, papel de Halle Berry (ela venceu o Oscar com esse trabalho), massacrada constantemente por tragédias, primeiro a do marido eletrocutado, depois a do filho atropelado.

Findos os episódios cruéis, restará a Hank e Letícia juntar forças para o recomeço. E essa nova chance é originada na mais bela cena do filme, quando a mulher pedirá com desespero que o homem lhe conceda alguns momentos de prazer, resultando num sexo excitante, libertador e catártico. Forster conduz a sequência com muita inteligência, fazendo uso de cortes secos, alternando planos abertos/médios e usando montagem truncada para justamente impactar com o simbolismo do ato que levará os participantes ao gozo. Ali, encerrados no corpo do outro, ele desperta da inércia e ela encontra conforto.

Nada é futilmente belo em A Última Ceia. O filme dispõe-se a mostrar lados obscuros aflorados para depois, bem à moda da boa arte, apontar caminhos possíveis sem aferrar-se aos mesmos como tábua de salvação ou idealizá-los para além da necessidade. Os sujeitos podem até buscar redenção (afinal são humanos), mas parecem resignados frente à impossibilidade de encontrar emplastro definitivo a feridas que nunca cicatrizarão, quando muito irão doer um pouco menos.  Marc Forster conta, além do próprio talento, com dois atores em estado de graça, Billy Bob Thornton e Halle Berry, cujos tipos são representantes de Américas aparentemente distintas, mas logo cientes do que os aproxima enquanto gente.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Doses Homeopáticas #07


Como bem sinalizou minha colega de sessão, UMA DAMA EM PARIS ensaia algo próximo de INTOCÁVEIS, pois, da mesma maneira, aproxima imigrante cheio de problemas a alguém carente de cuidados. Bom que o paralelo fica por aí, nas linhas iniciais. No filme de Ilmar Raag, a estoniana Anne vai à França, após a morte da mãe, para cuidar de Frida. Chega lá tímida, acuada pela senhora a principio irascível e implicante, mas logo se fará peça importante na vida dessa idosa interpretada por uma Jeanne Moreau em plena forma artística, aos 85 anos. O plot é conhecido, mas a maneira com a qual Raag tenciona as relações para depois afrouxar os nós que as prendem é bastante engenhoso e resulta numa história bonita de amizade e compreensão mútua.


Sai da sessão de AUGUSTINE com a impressão de pouco ou quase nada ter entendido. Não que a história (o recheio) seja complicada, longe disso. Aliás, interessante tomar conhecimento dos estudos vanguardistas do Dr. Charcot para provar ao mundo a existência da histeria, patologia responsável por, noutros tempos, mulheres enfermas serem confundidas com bruxas e outras criaturas possuídas. Além da fotografia monocórdica, de imagem escura e sempre mediada por uma bruma estranha, o desenvolvimento da relação entre Charcot e sua paciente Augustine me soou insípido, assim como quase todos os demais. A obsessão do homem em choque com a histeria feminina, nem isso me pareceu suficiente para tirar AUGUSTINE de um lugar ao qual, infelizmente, não tive muito acesso.


AMOR PLENO é dos filmes mais fatigantes que vi nos últimos tempos. Terrence Malick retoma a estética de A ÁRVORE DA VIDA, com planos e imagens impressionantes.  Contudo, se no longa anterior (do qual gosto muito), inclusive o forte caráter metafísico era, no mínimo, coerente, pois ajudava a relacionar, num plano superior, o macro (criação do mundo) com o micro (dificuldades enfrentadas em família), aqui o americano coloca a beleza e a religiosidade a serviço de uma história rasa, disfarçada de epifania interminável. Malick pretende fazer de cada movimento uma espécie de revelação divina e, na soma, algo que sinalizaria a força originária do Deus que, no filme, castiga com vida de infortúnios sentimentais o homem “responsável” pela contaminação da terra, isso para citar apenas um dos moralismos dogmáticos apregoados. AMOR PLENO é chato e arrastado blá-blá-blá teofânico.


Parece não haver mesmo limites para a imaginação de Michel Gondry.  A ESPUMA DOS DIAS é, quem sabe, seu filme mais radical, levando em consideração a intrusão de objetos, animações e situações inusitadas, elementos esses em convivência harmônica e cotidiana no particular mundo moldado por alguém tencionado a resolver a maioria das questões no campo do simbolismo visual. Essa força criativa intensamente imagética suporta o drama, as metáforas e a transição entre a felicidade colorida e a dor pintada de preto e branco, aliás, excelente sacada para reforçar a ideia do ambiente externo enquanto refletor do interno. Ressalva feita à falta de concisão, sobretudo na terceira parte, e A ESPUMA DOS DIAS, ainda assim, é filme o suficiente para entreter e emocionar.


MEU MALVADO FAVORITO 2 está longe da originalidade, mas pelo menos não deixa cair a peteca levantada por seu antecessor. Todo blá-blá-blá sobre a contratação do protagonista por uma organização contra crimes globais e a missão de salvar o mundo não passa de cortina de fumaça para o núcleo real do filme: Gru (mesmo que não saiba) procurando uma namorada. Os minions continuam cumprindo muito bem a cota dos coadjuvantes imprescindíveis (essa quase regra das animações, sobretudo após A Era do Gelo). A trama pode até ser meio boba, mas a inventividade visual e o bom timing das passagens cômicas compensam bastante qualquer obviedade. 

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

CINEMA A DOIS | OS DAVIDS - Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer e M. Butterfly


O pretexto para Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer é Twin Peaks, seriado de TV cultuado nos anos 1990 que prendeu a atenção de milhares de espectadores ao redor da pergunta: “Quem matou Laura Palmer?”. Esse spin-off não deixa a desejar, isso, claro, se evitarmos compará-lo demais justamente com a matriz da qual deriva. Se na série, Lynch provocava emoções diferentes a cada episódio, tornando assim a narrativa episódica mais atraente enquanto ela avançava, no filme há uma tentativa de solenizar e dar proeminência a aspectos extravagantes que ora guiam, ora alteram os rumos da trama. Ou seja, não esperemos do longa o impacto causado durante as duas temporadas exibidas na telinha, até porque provavelmente Lynch nunca tenha feito (ou mesmo venha a fazer) algo semelhante à Twin Peaks.

Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer começa um ano antes da famosa morte da protagonista. Ele parte da investigação do assassinato de outra jovem que, aliás, nem é mais citada no decorrer. Lynch reafirma sua predileção por revelar os segredos obscuros de uma cidadezinha pacata e humilde. Assim como em Veludo Azul, e a calmaria de Lumberton, em Twin Peaks surge, aos poucos, todo tipo de perversão e transgressão, sobretudo as vividas por Laura e seus amigos. Talvez o maior acerto, tanto do filme quanto da série, seja justamente a natureza incestuosa do crime, cuja vítima, quem sabe, é a personagem lynchiniana por excelência, uma vez perfeita nas aparências, mas assombrada por insuspeito lado sombrio autodestrutivo.

René Gallimard, então diplomata francês, tem legítimo momento de estesia ao contemplar uma apresentação de Madame Butterfly, em evento para estrangeiros na China dos anos 1960. Na ocasião, a cantora Song Liling entoa com emoção e dor, ambas na mesma medida, a triste história da gueixa que morre em virtude de seu amor por certo oficial americano da Marinha. A fascinação entre oriente e ocidente, base da tragédia operística em três atos, servirá também de combustível à paixão avassaladora dos amantes em meio à turbulenta situação político-social. Song se enreda pelo francês para dele tirar informações confidenciais valiosas ao partido comunista, e seu recato esconde grande segredo, aliás, não tão oculto desde que estejamos atentos à evidente androginia da intérprete.

A constante suspeita acerca da sexualidade de Song é artifício que, ao invés de constituir elemento de tensão, revolta-se contra o próprio desenrolar do enredo, pois é, por assim dizer, veladamente ruidoso em demasia. Ao escancarar desde o início a ambiguidade do personagem e, em contrapartida, ao longo do filme lançar mão de algumas situações cuja função é coloca-la em xeque, Cronenberg dispersa o potencial dramático de outros rudimentos, como, por exemplo, a política, quase rebaixada à periferia. Os méritos de M. Butterfly só emergem com mais pungência lá para o final, quando há a exposição dos segredos (de gênero e espionagem) e onde acontece inteligente inversão que confere amplitude a essa versão da tragédia de Butterfly, a morte simbólica do ocidente travestido de oriente.

Curioso, na comparação, dá para dizer: Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer poderia muito bem ter sido dirigido por Cronenberg, pois de alguma maneira alinhado a algo de seu perfil, assim como M. Butterfly, sobretudo a veia narrativa romântica, se encaixaria ao estilo de Lynch, este mais habilidoso ao temperar histórias aparentemente calcadas no tradicional, para delas extrair significados até então improváveis. 

Ambos os longas segregam tabus. Em Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer, o principal deles é o pai abusando da filha. Mas há também as drogas, o sexo desenfreado, entre outros dados que alicerçam a aproximação entre Eros e Tânato. Em M. Butterfly, o homem interpretando mulher para cumprir missão ideológica. Nos dois filmes, o preconceito e a hipocrisia aparecem lado a lado, sendo posteriormente desmascarados em momentos cruciais.

A diferença mais latente entre os longas diz respeito à forma como Lynch e Cronenberg traduzem as tramas em imagens, ou, melhor dizendo, como imprimem nelas seus próprios estilos. Se em Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer, Lynch conserva o estranho dos trabalhos anteriores (e posteriores), registrando o choque entre realidades díspares, inerentes uma a outra, Cronenberg opta por algo mais destituído dos elementos que o fizeram cultuado, exceção feita à maneira como explora sua obsessão pelo corpo, em M. Butterfly radicalizada por meio da confusão de gêneros, ou seja, o corpo enquanto entidade quase assexuada.

Por Ana Carolina Grether e Marcelo Müller

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TWIN PEAKS - OS ÚLTIMOS DIAS DE LAURA PALMER – Por Ana Paula Leite 
David Lynch não é um diretor qualquer e aterroriza porque tende a nos mostrar o que temos de mais assombroso em nós, indicando o velho(?) caminho do “nada é o que parece”, além de desconsertar qualquer tentativa de segui-lo em linha reta. Seus filmes costumam narrar seu rico universo imaginário e Twin Peaks, o filme, não foge à regra. 
Com seus personagens peculiares e certa sensação de slow motion, somos conduzidos à asfixiante cidadezinha que dá nome ao filme, seus vazios incômodos e muitas situações angustiantes. 
A série Twin Peaks marcou época com uma linguagem inovadora e brilhante; e eu era viciada nela, não perdia um capítulo, entretanto o filme não tem o mesmo magnetismo, a mesma estética, embora o clima esteja lá. 
Repleto de novas alegorias e personagens, o filme sobre os últimos dias de Laura Palmer simboliza alguns diálogos não só com a série que lhe deu origem, mas com alguns outros filmes de Lynch, principalmente pelo tom de estranheza permanente, as cores vibrantes, a ambiguidade de determinados personagens e a constante sensação onírica. 
Vale pela experiência, mas a série ainda me parece bem mais atraente.
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M. BUTTERFLY – Por Linara Siqueira 
No início de M. Butterfly, a China é apresentada para o personagem René (Jeremy Irons), um diplomata francês em serviço no país oriental, através da cantora de ópera Butterfly (John Lone). Ou seja, como um mundo de possibilidades, lírico. O encantamento é imediato e, a partir do momento em que se falam, é criado um jogo de representações que remete ao conflito cultural entre os personagens. 
No filme de Cronenberg, essa teatralidade acaba se tornando inerente ao relacionamento dos dois, através da entrega de René à paixão desmedida que ele nutre por Butterfly e da própria representação que a cantora exerce. Sendo assim, sob a máscara do pudor, Butterfly consegue enganar René de sua real condição: um espião travestido de mulher, uma persona criada por um homem. 
No decorrer do filme, a Butterfly que vemos acaba se tornando uma mistura dessa personagem propriamente dita com o produto da paixão de René. Contribui para isso a interpretação contida de John Lone e a mise-en-scéne do Cronenberg, que faz do corpo ora objeto de desejo e de entrega (nas cenas amorosas na primeira metade do filme), ora objeto de degradação e de humilhação (nas cenas de ambos juntos em que Butterfly já está como homem). 
A cena final de M. Butterfly é a redenção do personagem que, incapaz de entender o que se passou, torna-se ele mesmo o objeto de sua obsessão. "É melhor morrer com honra para não viver na desonra."

sábado, 3 de agosto de 2013

Transeunte


Protagonista de Transeunte, Expedito é aposentado de 65 anos que vaga pelas ruas do Rio de Janeiro acompanhando solitário o pulsar da cidade maravilhosa, quase como esperando a morte o levar. Seu cotidiano é marcado por afazeres banais e nada parece o impulsionar para longe da existência burocrática e protocolar. A falta da falecida mãe é apenas um dos elementos a diagnosticar esse homem onipresente na tela, mas seria ingênuo reduzi-lo ao estereótipo do indivíduo deveras apegado à figura materna.  Há mais angústias o ferindo.

Da trama de Transeunte pouco se pode falar, pois feita apenas das andanças de Expedito, partindo da apatia até o descortinamento das inúmeras possibilidades para além da dor e autocomiseração. Pouco a pouco o tipo interpretado com maestria por Fernando Bezerra busca forças para fazer sua vida respirar fora dos itinerários auto-impostos, da viciante rotina ameaçadora de tragá-lo para o limbo da depressão. Aqui e acolá surgem situações periféricas que denotam a figura central como amargurada por um (ou vários) amor perdido no passado. Tudo ajuda na construção de alguém que respira e transpira.

A primeira incursão de Eryk Rocha (filho do grande Gláuber Rocha) no longa-metragem de ficção possui vocação silenciosa, mas, paradoxalmente, é guiada em boa parte por música (apanhado de melodias populares românticas) e sons infiltrados da rua.  A fotografia é elemento destacado, tanto no uso do preto e branco rigoroso e granulado que suprime bastante a alegria da solar capital fluminense quanto na opção pelos enquadramentos fechados e hiper fechados.  Transeunte é filme formalmente rigoroso, exige do espectador, mas recompensa os embarcados, especialmente na proposta estética.

Ao relevar pequenos gestos, Eryk Rocha arrisca-se em terreno distante da alegoria acentuada das obras paternas, por exemplo, primando por registro bastante particular. O diretor parece tatear em busca de identidade própria, sem prender-se aos grilhões do sobrenome famoso. Como todo artista arrojado, está à mercê de opiniões não favoráveis, de gente que possa até achar seu trabalho pedante ou repleto de auto-importância. A cena final, onde a câmera antes acolhedora parece abandonar aquele que não mais sofre viver, é sintoma de algo sobre esteticismos. De onde posso enxergar, Transeunte parece um longa repleto de energia vital, força criadora e atento ao fator humano, acima de tudo.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

CINEMA A DOIS | OS DAVIDS - Coração Selvagem e Mistérios e Paixões


Os que têm o coração selvagem lutam por seus sonhos e, sobretudo, não fogem do amor. Ensinamentos da “Bruxa Boa”, entidade alcançada por Sailor só no ocaso, após ele superar obstáculos (não poucos) para poder, finalmente, declarar sua afeição incondicional por Lula. Coração Selvagem é o filme desbragadamente romântico de David Lynch, aquele no qual ele trafega com mais sinuosidade entre o bom e o mau gosto para, justamente, e de maneira genial, fazer emergir o caráter até um tanto ingênuo e pueril inerente aos amores idealizados e residentes em nosso imaginário. Não à toa, Sailor e Lula parecem saídos diretamente da década de 50, época romanesca dos casais que descobrem primeiro a sincronia afetiva para depois alinhar-se sexualmente, por exemplo.

Mas estamos em terreno lynchiano, ou seja, mesmo os mais arraigados nas características alusivas aos valores de outrora se comportarão conforme os códigos do nosso contemporâneo mundo doente. Sailor mata um homem com as próprias mãos, como que para defender a si e a sua amada das garras da “Bruxa Má”, melhor dizendo, da sogra maculada por ligações ilícitas do passado e do presente. Lula espera seu homem sair da cadeia e, com ele, empreende viagem de automóvel na qual não se preocupará com mais nada além de amá-lo, afetiva e sexualmente falando.

Coração Selvagem, então, assume-se road movie, cai na estrada com a dupla perseguida por assassinos e outros vilões. Se comparados ao entorno, repleto de gente estranha como Bobby Peru, Sailor e Lula são o mais próximo da pureza que ainda sobrevive em meio à podridão. Lynch utiliza alusões ao Mágico de Oz, o fogo enquanto catalisador, entre outros símbolos, para ressaltar o trajeto turbulento que o casal precisará percorrer para, enfim, chegar ao caminho dos tijolos amarelos e fazer triunfar seu amor.              

Mistérios e Paixões se ancora da década de 1950 para mostrar Bill Lee, aspirante a escritor que, diante da impossibilidade de concretizar seu sonho artístico, extermina insetos para pagar as contas. Ele passa por dificuldades: o estoque de inseticida acaba rápido, pois sua esposa o consome em busca de “baratos”. Levado, então, pela parceira, ele experimenta o pó e entra em viagens tão alucinógenas quanto existencialistas, nas quais, por exemplo, as máquinas de escrever, ou seja, objetos inorgânicos, adquirem vida e passam ao estado orgânico.  

Naked Lunch, de William Burroughs, é obra quase impossível de ser vertida ao cinema, isso levando em consideração qualquer fidelidade ao espírito matricial beatnik. Será a autoria delirante de David Cronenberg suficiente para dar conta do recado? O cineasta realmente transpôs a essência do livro através de seu próprio estilo narrativo, desenvolvendo a trama próximo do neo-noir policial, com direito a insetos-criaturas (alusivos a A Mosca), entre outras bizarrices. A calamitosa tradução brasileira, responsável por transformar Naked Lunch (Almoço Nu) em Mistérios e Paixões, não nos permite vislumbrar nada relacionado ao enredo, pois inexistem “mistérios” e “paixões” avalizando tal destaque.

Tanto em Coração Selvagem quanto em Mistérios e Paixões, vícios e obsessões estão presentes como imprescindíveis no desenho dos personagens e, por conseguinte, nos traços narrativos. No filme de Lynch, Lula nutre paixão por O Mágico de Oz e Sailor, por sua vez, espelha-se em Elvis Presley. Além disso, ambos têm algo de ninfomania, principalmente ela.  Já no filme de Cronenberg, o casal principal vira dependente do inseticida, substância que fornece paranoias delirantes. Além disso, Bill é obcecado por literatura e pela escrita, ao ponto de podemos classificar tais “paixões” como patológicas, dado seus traços compulsivos. 

Provável que Coração Selvagem seja um dos filmes mais acessíveis de David Lynch, não por instaurar-se no terreno do banal, longe disso, mas por abrir-se às interpretações, já que desprovido de signos indecifráveis ou deveras ambíguos, exceção talvez feita à figura de Bobby Peru. Já Mistérios e Paixões, quem sabe por advir da literatura e carregar consigo a inerente dificuldade da adaptação de uma linguagem à outra, é confuso na sua ressignificação, justo porque Cronenberg narra a história de Burroughs utilizando a via do suspense policial.  Ao passo em que conserva a importância metafórica do inconsciente (evidenciada no ato de escrever), guia-se ora por meio do inseto imaginário, ora pelo homem aturdido, gerando, assim, estranhamento para além da conta.

Por Ana Carolina Grether e Marcelo Müller

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CORAÇÃO SELVAGEM – Por Lívia Lima 
Coração Selvagem seria tão somente uma história de amor e erotismo se não fosse um filme de David Lynch. Apesar de ser um dos filmes mais "acessíveis" do diretor, um olhar mais atento, nos mostra que sua costumeira e genial bizarrice e sensibilidade estão ali presentes.  
Sailor e Lula formam um casal que parte numa viagem de carro fugindo da mãe desequilibrada dela que havia ordenado o assassinato dele. Ele, um sujeito que transita entre o heroísmo e a marginalidade, ela, uma mulher tão sexy e latente quanto infantil. No caminho, encontram os mais variados tipos estranhos, como o assaltante Bobby Peru (que tem a melhor cena do filme, na minha opinião, quando ele aterroriza e, ao mesmo tempo, seduz Lula) e as gêmeas loiras.

O filme é cheio de referências pop: Sailor parece uma versão pós-moderna de Elvis Presley. Lula é uma espécie de Marilyn Monroe misturada a Dorothy de O Mágico de Oz. O clássico é citado diversas vezes, seja nos sapatos vermelhos de Marietta, a mãe de Lula, ou por a mesma vê-la como uma espécie de “Bruxa Má do Oeste” ou mesmo a estrada que serve de caminho para chegar além do arco-íris que a protagonista deseja.

Coração Selvagem é a exaltação de Lynch ao amor sentido na pele e vivido intensamente. Assim como o fogo, que permeia todo o filme, somos consumidos por Sailor e Lula e terminamos o filme amando-os com ternura.
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MISTÉRIOS E PAIXÕES – Por Leonardo Ribeiro 
Difícil imaginar nome melhor para adaptar Almoço Nu, de William S. Burroughs, do que o de David Cronenberg. Com sua obsessão pelas transformações carnais e psicológicas do ser humano, Cronenberg costura trechos do livro com fatos da vida do autor, em uma trama de mistério, mas o que realmente interessa ao diretor é a paixão do personagem Bill Lee por escrever. Mais do que uma paixão, um vício. E Cronenberg mergulha de cabeça nesse vício, misturado ao consumo do “pó inseticida”. A substância alucinógena possibilita a criação das imagens bizarras características do diretor, mas é a relação íntima de Lee com seu ofício que se torna o ponto central. Não à toa, a máquina de escrever, que em seus delírios se transforma em um inseto gigante, sente prazer com o toque do escritor em suas teclas. É a conexão entre o prazer físico e intelectual que Cronenberg tanto preza, e que reflete o seu próprio prazer pela arte cinematográfica.

Assim, mesmo sendo uma adaptação, o filme resulta em algo totalmente pessoal. Diferente de outras adaptações literárias do diretor, como Crash, Mistérios e Paixões não é tão bem calculado. Sua trama é confusa e as partes funcionam melhor isoladamente do que em conjunto. Mas é exatamente por seu desejo de arriscar, de se apoderar de uma obra para criar algo particular, sem medo de errar pelo caminho, que Mistérios e Paixões se torna um capítulo fundamental na filmografia de Cronenberg.