quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Oblivion


Já dá para desconfiar da verdade em Oblivion quando sabemos que o protagonista, Jack Harper, teve suas memórias apagadas antes mesmo de iniciar missão numa Terra assolada. Por que seria necessário tornar inacessíveis esses dados pretéritos? Apenas para fazer do protagonista alguém mais competente ou no intuito de ocultar a verdade servidora apenas de um senhor? Por si, tal dado confere previsibilidade à trama, mas, calma, virão outros de função semelhante. Apesar disso, é bom enxergar a realização de Joseph Kosinski sustentada não na surpresa ou no impacto das revelações, e sim na junção minuciosa de tecnologia (efeitos visuais, principalmente) e artesania criativa. Esta, inclusive, dará conta de aglutinar ideias já utilizadas por outros sci-fis, sem que as mesmas soem (ao menos não em demasia) meramente requentadas.    

Após o planeta ser devastado em guerra nuclear contra alienígenas alcunhados “saqueadores”, Jack (Tom Cruise) vive seus dias correntes em 2077 entre a observação e eventuais reparos dos robôs que patrulham as máquinas responsáveis por fornecer energia à humanidade habitante numa das luas de Saturno. Ele tem a companhia da oficial de comunicação Victoria (Andrea Riseborough), com quem mantém caso amoroso. A luta diária contra o inimigo é assombrada por fragmentos de memória, mais especificamente o rosto de uma mulher (Olga Kurylenko) e o Empire State Building. Não precisamos de muita bagagem cinematográfica para ligar as lembranças misteriosas da figura central com algo que pode mudar a trajetória do enredo.

Difícil seguir esmiuçando a trama sem ao menos arranhar a experiência de quem ainda não viu, por isso paro aqui, atendo-me aos já citados elementos que Oblivion reaproveita a seu bel prazer. Examinando rapidamente, no longa se vê pitadas de O Vingador do Futuro, Matrix, Lunar e até de 2001 – Uma Odisséia no Espaço. Há privilégio do caráter escapista e pouco acréscimo ao filão, verdade seja dita. Feitas as ressalvas, porém, é bom lembrar que ao cinema também compete entreter, e nesse tocante o filme é bastante feliz, pois repleto de boas cenas de ação, uma história de amor bem ao gosto hollywoodiano (sacrifícios, perdas, inevitabilidades), belo desenho de produção e inspirada construção sonora.

Com boa vontade, Oblivion pode ser categorizado “entretenimento acima da média”. Decepcionará, no entanto, caso sobre ele recaiam expectativas mais exigentes. Fãs sensíveis às convenções do gênero poderão aferrar-se em demasia à deficiência de ideias vanguardistas, perdendo, assim, a possibilidade de aproveitar o filme por outros vieses. Como ainda inexiste pecado em emocionar-se e curtir uma obra da qual não necessariamente se saia arrebatado (graças, afinal somos humanos), credito a Oblivion o mérito de oferecer prazer enquanto dura. Contudo, é bom dizer, esperar ele sobreviver para além da sessão pode ser caminho sem volta rumo à frustração. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

domingo, 27 de outubro de 2013

Doses Homeopáticas #09


A OUTRA se insere na vertente dramática de Woody Allen, cineasta mais conhecido do grande público por meio das obras cômicas, entretanto com igual talento para investigar os infortúnios humanos. Gena Rowlands interpreta uma cinquentona profissionalmente bem resolvida que entra em sua maior crise existencial após ouvir, por acaso, sessão de análise no apartamento ao lado do escritório onde tenta escrever. Allen utiliza esse meio intelectualizado, de pessoas racionalmente estáveis (na superfície), para mostrar as rachaduras emocionais surgidas mesmo ali, onde, a priori, tudo estaria sob controle. Em enxutos 77 minutos, o nova-iorquino constrói um drama pesado, repleto de observações contundentes acerca das certezas inabaláveis e seus, também a priori, insuspeitos pontos de fraqueza.


Quem mais, a não ser Woody Allen, pensaria num plano de roubo induzido por hipnose como mote de filme cômico? O ESCORPIÃO DE JADE se passa nos anos 1940, aliás, época que Allen gosta de revisitar. Ele mesmo interpreta o detetive que vive às turras com a colega recém-contratada para modernizar a seguradora. Os dois são hipnotizados, passando, então, a atuar sob as ordens do Escorpião de Jade, astuto bandido que menciona no telefone as palavras “Constantinopla” e “Madagascar” para ter os dois como ladrões à sua disposição. O ESCORPIÃO DE JADE é comumente tido como exemplar menor na filmografia de Woody Allen, mas defendo seus méritos, pois comédia de costumes bastante inteligente e que toma por pretexto os roubos a fim de estimular o amor com aparência de ódio existente entre C.W. Briggs e Betty Ann (Helen Hunt).

Em ALMAS DESESPERADAS, Marilyn Monroe despe-se da aura de símbolo sexual vulnerável que tanto lhe rendeu fama, para assumir o papel de uma mulher emocionalmente perturbada por trauma amoroso do passado. Contratada babá no mesmo hotel onde o tio trabalha de ascensorista, ela flerta com um homem desiludido pelo eminente fim do namoro com a cantora do local, e não tardará a recebê-lo no apartamento onde deveria apenas cuidar da menina Bunny. O que se desenrolará é uma sequência de acontecimentos fortuitos, em grande parte ocasionados pela loucura da personagem de Marilyn, num filme de crescente pungência à medida que a protagonista passa do torpor ao desatino.


A primeira cena de OS SUSPEITOS mostra um “sacrifício” com a suposta anuência de Deus. Aliás, religiosidade e crença (favor, não confundi-la com fé) são elementos fundamentais à estreia em Hollywood do canadense Dennis Villeneuve, longa pesado e tenso onde o sequestro das crianças não passa de pretexto para trazer à tona geralmente o pior da natureza dos personagens. Em meio ao elenco muito bem conduzido, Hugh Jackman e Jake Gyllenhaal se destacam, um enquanto pai que transita entre o desespero e a selvageria, e o outro na pele do policial incumbido da investigação. Ligeiramente prejudicado pela prolixidade e o excesso de reviravoltas, OS SUSPEITOS ainda assim é admirável, um thriller que permite poucas vezes nossa desatenção.



KICK-ASS 2 é tão violento e divertido quanto seu antecessor. Pessoas criam alteregos para lutar contra o crime cotidiano, inspirados pela figura de Kick-Ass, jovem estudante disfarçado para dar algum sentido à vida. Do outro lado, o mal também aspira à estilização dos quadrinhos, e então surge Mother Focker, o supervilão. A linguagem de KICK-ASS 2 é interessante, pois fruto de um hibridismo entre o meio original (HQ) e o cinema. A ação continua repleta de sangue, há apontamentos sobre responsabilidade e crescimento, bem como questões referentes à própria proliferação da violência via signos da chamada cultura pop. Na vida real o heroísmo pode assumir muitos disfarces, não necessariamente fantasias multicoloridas. Claro, as deixas para o terceiro são inevitáveis, mas por que não, se os dois primeiros são tão legais de ver? 

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Bate-papo :: OS SUSPEITOS


Ontem, navegando pelo Facebook, me deparei com um debate interessante sobre OS SUSPEITOS, de Denis Villeneuve, destaque em cartaz. Ana Carolina Grether e Douglas Tadei conversavam, comentário após comentário, a respeito de qualidades e fragilidades do filme que tem dado o que falar. Com a autorização dos dois, reproduzo aqui este ótimo bate-papo com questões bastante pertinentes a quem assistiu OS SUSPEITOS. Obrigado, Carol e Doug, por cederem a conversa.

A CONVERSA ABAIXO CONTÉM SPOILERS
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Douglas Tadei - OS SUSPEITOS (Prisioners) tinha tudo pra ser um filme pra longos debates psicológicos. Mas, onde poderia aprofundar o debate eterno entre a justiça e o sangue no “zóio”, preferiu seguir a linha de todos os thrillers que a gente tá cansado de ver. Decepção com o twist final longo, pé no cu de chato, com atuações acima da média. Meu destaque vai pra Paul Dano, que praticamente não fala, mas representa melhor que o elenco inteiro. 
Ana Carolina Grether - O final longo depõe meio contra sim, também acho. Mas gostei muito do filme, fiquei vidrada durante todo tempo. 
Douglas Tadei - E o Paul Dano, Carol? Ele arrebentou! 
Ana Carolina Grether - Gostei mais do Donnie Darko (Jake Gyllenhaal), os tiques, o shape, tudo. 
Douglas Tadei - Jake vai ser sempre Donnie, mas ele se esforça. Mr. Villeneuve perdeu a chance de criar um épico. 
Ana Carolina Grether - Se esforçou e conseguiu pô, o cara tá ótimo. Concordo, o diretor podia ter se superado. 
Douglas Tadei - Se tivesse meia hora menos e focasse na dubiedade da coisa, seria meu campeão. Eu nem queria ver as meninas back, a dúvida me consumiria. 
Ana Carolina Grether - Concordo! 
Douglas Tadei - Um filme que promete uma coisa e entrega outra, mas merece umas indicações ao Oscar. 
Ana Carolina Grether - Ah merece! Se todos os filmes medianos fossem metade deste, já estaria ótimo. OS SUSPEITOS é bom e, de tão bom, parece que a crítica que fazemos é justamente por estarmos com o olhar nivelado num patamar elevado. Desde o início, como você falou, o filme se mostra em altíssimo nível, embarcamos nessa. Quando chega o final, há um declínio que, embora não prejudique de todo, dá uma baixada de bola. Pena. 
Douglas Tadei - Pra encerrar, tinha que dizer isso: Don´t fuck with wolverine´s daughter! É que você não tá vacinada em thrillers, histórias assim tem de montes! Mas eu juro que achei que o diretor ia explorar MAIS o conflito, que é onde a coisa pega. 
Ana Carolina Grether – Verdade, não tô e talvez tenha me encantado mais por isso. 
Douglas Tadei - A dubiedade entre ser ou não o vingador, e não revelar, era a melhor parte! E ele cagou nisso! O sofrimento, a incredulidade e a vontade de se vingar do casal negro dava uma tese, e o diretor jogou isso na privada. 
Ana Carolina Grether - O que achei incrível, e até curioso, foi a energia do Hugh Jackman em fazer o que fez e sustentar aquela agressão toda até o fim, sem dó nem piedade. Nessa hora se identificando(?) com seus fantasmas, com sua história de vida e família, além de ter se mostrado altamente afetado pela provocação de sua mulher (Maria Bello) que, sem sentir ou não, o desafia quando diz que esperava dele: proteção, segurança. Achei uma bela jogada, o Hugh Jackman aparecer ora aliado à fúria, ora à culpa. 
Douglas Tadei - A toda hora eu pensava: “E se eu tivesse uma filha? faria igual?”. FARIA. É esse lance de justiça pelas próprias mãos que me interessa no debate, pena que ele não se aprofundou. Qualquer pessoa em sã consciência diria “não”, até mexerem com a tua filha, até onde a polícia pode ir, qual o seu papel enquanto pai da vítima? É foda processar isso. Acho que acabamos discutindo o que o filme tinha de promessa! Me saí bem como debatedor? 
Ana Carolina Grether - De qualquer modo, o contraste de comportamento entre ele e o outro casal é gritante, pra mim fica o seguinte: para além de fazer justiça com as próprias mãos, ele (Hugh Jackman) estava ali lavando a alma de outras histórias que não só a da filha. É sutil, mas me parece que o excesso dele em cima do Paul Dano, mesmo depois que entende o envolvimento deste com o assassino, é contextualizado a partir de sua própria identidade, de seu comportamento furioso, incontido, nervoso, másculo, determinado, obsessivo. SIM!! por mais debates com Douglas Tadei  Eu apoio!! Só esquecemos de avisar que esse post seria puro spoiler
Douglas Tadei - YEY! Não leiam. Me pegou o despreparo dele ao saber que o Alex não era. O que fazer? 
Ana Carolina Grether Pois é. Em resumo: o filme pega a gente de jeito.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O Direito do Mais Forte é a Liberdade


A primeira sequência de O Direito do Mais Forte é a Liberdade surge poeticamente da feliz fusão entre situação e registro. Pessoas conferem as propagandas de um cerimonialista mambembe que anuncia certa atração espetacular a preços módicos, esta constituída de mulheres seminuas e “Fox – a cabeça falante”, suposto milagre da cirurgia moderna. A polícia chega e, assim, sem mais nem menos, quebra a encenação com um mandado de prisão, transformando a captura no espetáculo grátis pelo qual a plateia não pagou.  A partir daí, acompanharemos “Fox”, ou melhor, Franz Biberkopf, desempregado apostador da loteria habituado a encontros fortuitos em banheiros públicos.

Num desses encontros ele conhece o ricaço que o levará posteriormente ao empresário com quem não tardará a iniciar namoro. Logo que Franz ganha na loteria (sim, ele consegue), passa a frequentar os melhores restaurantes, as rodas culturais, aprofundando seu relacionamento com Eugen, esse herdeiro de firma praticamente falida.  Deslocado, o protagonista não parece o tipo a quem o dinheiro “enriquece”, pois lhe soa mais interessante qualquer drink em seu bar favorito que as idas à ópera, por exemplo. De início, temos Franz na conta de alguém malandro, um sobrevivente que se desloca pelo mundo fazendo o que bem entende, tendo quem quer. O dinheiro, mas, principalmente a relação com a burguesia, o faz gradualmente alguém frágil e passível de ser enganado. Dinheiro deixa de ser problema quando compra a felicidade, e Franz não se importa de adquirir o não almejado (ou aquilo que não precisa) se isso agradar seu amor.

Dirigido e protagonizado por Rainer Werner Fassbinder, O Direito do Mais Forte é a Liberdade é melodrama clássico, com as tintas carregadas de um Douglas Sirk (de quem Fassbinder era espécie de discípulo intelectual), mas com toques da peculiar pegada desse alemão, um dos responsáveis pelo ressurgimento do cinema germânico em dado momento. Fassbinder situa os personagens numa Alemanha fora dos padrões, repleta de ricos decadentes ou proletários frequentadores de espeluncas, desfraldando sua visão crítica acerca da hipócrita sociedade alemã de então.  A nudez masculina não é tabu, beijos entre pessoas do mesmo sexo tampouco. Inexiste o escândalo, pois os momentos de intimidade e afeto fogem de estigmas na diferenciação por gênero ou orientação sexual. Homossexual assumido, Fassbinder sempre militou pela igualdade.

O Direito do Mais Forte é a Liberdade é de 1974, e nele vemos muitas das causas defendidas nas temáticas recorrentes pelo prolífico diretor alemão, morto de overdose aos 36 anos e, conforme se conta, envolto constantemente em conturbados relacionamentos que se impregnaram em seu cinema. A derrocada de Franz, a humilhação por ele sofrida num estrato social estranho, a sensação de não-pertencimento, em suma, seu périplo, faz emergir uma série de subtextos: a reconstrução da Alemanha, a opressão burguesa, a liberdade sexual, a mulher talvez como símbolo da pátria ainda fracionada (aqui a irmã alcoólatra de Franz), tudo neste filme vigoroso que guarda o frescor e a importância dos envelhecidos apenas por fora.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

domingo, 13 de outubro de 2013

Qual é o nome do bebê?


O início de Qual é o nome do Bebê? tem diversos cacoetes típicos das comédias francesas. Um narrador com tiradas “espertinhas” apresenta os personagens da trama que se desenrolará a seguir. De maneira expositiva, ele traça o perfil de todos, sobrando assim pouco espaço para que consigamos ao longo do filme construir algo mais sobre essas figuras atreladas umas às outras, seja por parentesco ou amizade. Sem dúvida, tal artifício é muleta narrativa e pode irritar aqueles cansados do chavão estilístico.

Vincent (Patrick Bruel) comemora sua primeira paternidade durante jantar em família. A inesperada confusão logo é armada quando revela o nome escolhido para o bebê: Adolphe. Aos presentes parece impensável que o futuro pai leve mesmo em consideração relacionar de alguma maneira seu filho ao ditador responsável por milhares de mortes à frente do terceiro reich. Entretanto é tudo chacota de Vincent (homem de direita), feita deliberadamente para tirar o cunhado esquerdista do sério. O plano funciona até demais, pois a festividade torna-se involuntariamente arena para diálogos ferinos, repletos de ambição intelectual e política.

Mas o alvoroço inicial é na verdade apenas estopim para outras discussões, ressentimentos entre casais, opiniões até então recônditas, mágoas antigas ressoantes no íntimo daqueles que as escondem pelo bem da convivência. Aos poucos a situação piora, segredos vêm à tona, relações são postas à prova, e o que iria ser reunião entre congêneres e amigos em volta da mesa marroquina, acaba acerto de contas. É uma bola de neve crescente de percurso cada vez mais perigoso. Pena a sucessão de problemáticas proposta pelos diretores Alexandre de La Patellière e Matthieu Delaporte ser cansativa e refém da repetição.

Comédia torta e até certo ponto pretensiosa (ensaia qualquer coisa sobre política, a reabertura de velhas feridas francesas, entre outras tentativas), Qual é o nome do Bebê? passa na tela sem aborrecer, mas também sem ofertar algo que o faça merecedor de um espaço generoso na memória. As figuras possuem afetada profundidade, mas se afogam no raso de sua natureza ordinária. Claramente disposto a mostrar a família como instituição inquebrantável, o longa tem lá suas boas intenções e momentos de inspiração, contudo insuficientes para torná-lo mais que razoável e inofensivo programa de domingo.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Um Alguém Apaixonado


Um Alguém Apaixonado, segundo filme não iraniano do diretor Abbas Kiarostami, se passa no Japão, mas poderia ser ambientado em qualquer lugar, já que o cineasta evita tanto a abordagem turística quanto a tentativa de fazer-se senhor de uma cultura alheia a sua. Então, mesmo inevitavelmente influenciado pelo meio, ele obtém certo universalismo na trama que segue a jovem Akiko, universitária vinda de província e prostituta para vingar na capital. Lá pelas tantas, caberá a ela atender um senhor bastante distinto, mais interessado em conversar e ter companhia que propriamente em sexo.  

Quem é Akiko? Como ela conheceu seu noivo enciumado e por que ainda está com ele? Quais as intenções do idoso, por vezes tão paternal? O espectador afoito por respostas e perfis completos poderá se desapontar com Um Alguém Apaixonado, definitivamente um filme que não fornece todos os retornos. Algumas lacunas serão preenchidas pela plateia, mas para outras tantas restará a bruma, quando muito, da especulação. Os personagens assumem posturas diversas num fluxo bastante orgânico e semelhante às experiências cotidianas. Por sinal, esse é o nível no qual deveríamos discutir o tão alardeado cinema verdade e não necessariamente naquele que tange apenas as características estéticas.

Mesmo fruto de uma inquietação para lá de relevante, Um Alguém Apaixonado empaca vez ou outra. Por exemplo, a partir da entrada em cena do noivo de Akiko, ela se ausenta com frequência do protagonismo (e da tela). Claro, até isso se justifica quando entendemos outra das características do filme: muita coisa acontece fora do campo de visão, este infiltrado por sons externos e outros acontecimentos invisíveis, porém de extrema importância. Assim, não restam dúvidas quanto às habilidades de Kiarostami tal criador, mas aqui se pode objetar o modo como ele privilegia a forma em detrimento do conteúdo.

No final das contas, Um Alguém Apaixonado aponta para a continuidade, não apenas da exploração de novos cenários, mas, e, sobretudo, da busca de Kiarostami por ampliar suas já manifestas preocupações com questões de importância artística e humana (encenação, verdade, relacionamentos, etc.). Perder ou não o interesse no decorrer do longa é de ordem particular, e quem sabe minha apatia gradativa frente ao desenvolvimento do enredo tenha a ver com uma necessidade própria (neste caso não suprida) de ver algo que transcenda o cinema enquanto linguagem, configurando-se em arte mais voltada ao homem que à gramática do cinema. De qualquer forma, está valendo, e muito.


Publicado originalmente no Papo de Cinema