domingo, 24 de agosto de 2014

Doses Homeopáticas #26


O LOBO ATRÁS DA PORTA não é um filme comum. Por comum, entendo os que não duram muito na memória. A história passada no subúrbio carioca é feita de amor, sexo, traição, mas principalmente de violência. Tudo se esclarece brutalmente no depoimento da personagem de Leandra Leal, aquele que desdiz os relatos anteriores, responsáveis por criar pequenos flashbacks falsos. A imagem carrega a paixão que transita entre esses personagens tomados de súbito por acontecimentos aleatórios de desdobramentos trágicos. Ninguém é ingênuo no filme de Fernando Coimbra, diretor que mostra muita habilidade na condução da narrativa em que as pequenas fraturas se tornam, gradativamente, grandes rombos emocionais. Os estilhaços atingem a todos.


SOB A PELE começa meio cambaleante. A reiteração não ajuda, pois vemos muitas vezes, sem variação, a extraterrestre usando sua beleza para atrair homens a um lugar que os desintegra. O clima de suspense se deve à música, tão e somente. Contudo, assim que a protagonista decide experimentar os atributos da humanidade, o filme ganha um fôlego completamente novo. A partir dali, a atmosfera se adensa e Johansson pode se ver livre da cara de paisagem, pois então há visível agonia em seu semblante. A imagem do filme também ganha força, agora sim passando a se integrar com a trilha. A crise existencial acontece em meio ao silêncio da protagonista, sem histrionismo. No final das contas, SOB A PELE é um filme muito bom.  


Talvez GUARDIÕES DA GALÁXIA seja mesmo o filme mais legal da Marvel. Bem diferente dos últimos longas do estúdio, que parecem só peças de um quebra-cabeça chamado Os Vingadores, aqui há vida própria, mesmo que o enredo também se encaixe no projeto maior. Ótima história, personagens cativantes, bom-humor e a excelente trilha sonora, fazem de GUARDIÕES DA GALÁXIA uma produção surpreendente. A ação e os efeitos estão a serviço da trama, são necessárias, não um mero enfeite. Grande parte dos méritos é mesmo do diretor James Gunn, pois ele consegue o improvável: imprimir personalidade no produto de um estúdio que, embora esteja fazendo muito bem a lição de casa, às vezes preocupa-se demasiado com a unidade de suas realizações, tendo como efeito colateral uma homogeneidade nociva.

domingo, 3 de agosto de 2014

Joe


Os personagens de Joe, novo filme do cineasta David Gordon Green, são filhos desamparados de um país negligente e avesso às responsabilidades patriarcais. Não à toa, a paisagem interiorana, novamente utilizada como que para descentralizar a visão essencialmente urbana dos Estados Unidos, reflete a dureza de crescer órfão (literal ou metaforicamente falando). Joe (Nicolas Cage) comanda uma equipe de envenenadores de árvores. Por lei, os madeireiros não podem derrubar espécimes vivos, portanto contratam peões para fazer o trabalho sujo. Homem de liderança, ele é atormentando por uma raiva que precisa contida se quiser manter-se longe da cadeia ou de qualquer problema.

Eis que ele emprega Gary (Tye Sheridan), jovem de 15 anos incumbido de sustentar a mãe, a irmã menor e o pai alcoólatra. À medida que percebe a tenacidade do garoto frente, principalmente, à bestialidade do pai, e à necessidade de chefiar sua família disfuncional, Joe o acolhe, pois dele se sente próximo. David Gordon Green estabelece a obviedade da ligação desde o primeiro encontro dos dois, como se eles fossem o retorno ao passado para um e possibilidade de futuro para o outro. Mais lugares-comuns aparecerão. Clichê não é pecado quando bem utilizado, pois, do contrário, filmes seriam respeitados única e exclusivamente pela originalidade.

Joe é violento. Algumas cenas podem chocar os mais sensíveis, como, por exemplo, a do velho matando com golpes incessantes, apenas para roubar míseros trocados e vinho barato. A câmera permanece impávida, firme no registro da barbárie. Fora esse teor gráfico, a brutalidade surge, entre outros momentos, também na relação de Gary com o pai, esta permeada de fúria, ressentimento e desejo velado (até certa altura) de subjugação mútua. No campo simbólico, a raiva de Joe é projetada na cadela que guarda a casa, grosso modo, o lado animal da sua personalidade irascível. O protagonista reutiliza esse sentimento, no mais das vezes, em prol do trabalho, da convivência com a vizinhança e funcionários, mas nem sempre dá para domesticar impulsos tão fortes e enraizados.

Acusado justamente de escolher “errado” muitos papeis, volta e meia esbanjando canastrice, Nicolas Cage prova, mais uma vez, seu valor quando bem dirigido. Tye Sheridam, num trabalho entre a vulnerabilidade infantil e a precoce maturidade, e Gary Poulter, sem-teto chamado para fazer teste de elenco (infelizmente morto ao voltar às ruas poucos meses após as filmagens), cuja interpretação do pai nos limites da maldade é admirável, completam o trio principal que amplia a dimensão humana do filme.

A metáfora situada no sustento, fruto ora da destruição, ora do plantio de árvores, morte e vida, luz e sombra enquanto caminhos paralelos e possíveis, pode até ser considerada meio óbvia, mas representa bem o percurso acidentado dos personagens sem eira nem beira, à espera do fim ou de algo que lhes impulsione rumo a um futuro sem tanto sofrimento.


Publicado originalmente no Papo de Cinema