domingo, 29 de abril de 2012

Drive - Dirigindo às claras


Olá, caro amigo-leitor!

De acordo com a boa educação, é de bom grado nos apresentarmos às pessoas que ainda não nos conhecem. Bom, então, aí vai uma versão reduzida: meu nome é Rafa Müller, sou estudante de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda, redator da Quanta Propaganda e um amante incondicional da cultura. Sobretudo, a literatura e o cinema. Recebi o convite para assumir a coluna voltada à sétima das artes do blog da Anglo e, bem, aqui estou. Feito isso, vamos ao que realmente interessa.

Na última sexta-feira, dia 30 de março, estreou no Brasil e no GNC Cinemas de Caxias, o filme norte-americano “Drive”. A novidade em telas tupiniquins foi sensação no Festival de Cannes em 2011, talvez a festa do cinema mais importante do ponto de vista artístico. O diretor dinamarquês Nicolas Winding Refn levou, na oportunidade, o prêmio por seu trabalho atrás das câmeras. Diga-se de passagem, com grande merecimento.

O protagonista, encarnado magistralmente pelo ator Ryan Gosling, não possui nome, contudo diversas camadas paradoxais que o formam. Este é um exímio piloto, que atua em filmes de ação como dublê em cenas com veículos e, como extra, guia máquinas envenenadas em assaltos pelas ruas de Los Angeles. O personagem é uma pessoa enigmática. O olhar fixo, perdido em pensamentos segregados em sua mente, são marcas de sua personalidade recheada de meandros, distorções e atitudes inesperadas a um casmurro. A fotografia de Newton Thomas Sigel mescla sombra e luz estourada em tom dourado, a favor da narrativa e não apenas enquanto parte estilística da película.  Há momentos lúdicos, por exemplo, quando Gosling em meio ao breu tem a incidência de luz somente sobre as costas da emblemática jaqueta clara, com o bordado de um escorpião. A respiração não é mais sua. É do animal traiçoeiro que leva consigo. Ele pulsa após uma das melhores cenas do filme, ocorrida dentro de um elevador.

O envolvimento do Driver com uma vizinha de andar gera uma instabilidade até então não vista. Ele perde a traseira, o rumo, porém sua habilidade ao volante supera qualquer obstáculo ou dificuldade pelo caminho. As lacunas. Impressionante o que elas fazem ao roteiro bem amarrado da obra. Os momentos em que nada efetivamente acontece, em que sentimentos ou ações ficam em suspensão. Palavras não ditas. Olhares e gestos que traduzem o que o verbal tornaria explícito e acabaria com a beleza do tênue.

O filme é fantástico e fácil de agradar aos amantes da sétima arte ou simplesmente àqueles que buscam entretenimento de boa qualidade e que não agrida a inteligência do espectador. O cinema é fascinante e “Drive” é uma das obras que mais fascinaram este que vos fala nos últimos meses. Fica aqui registrada a dica e um “até breve” meu.

Abraçosssssá momentos


Publicado anteriormente em Eu Sou Mais Anglo

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Rosetta e a crueza do mundo


Privada do sustento já na primeira cena de Rosetta, filme dos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, a menina protagonista se debate violentamente tal animal acuado, ser selvagem que vê escoar outra chance de normatizar uma rotina repleta de pequenas derrotas. Ela clama pela ocupação que tornaria mais digna a vivência com a mãe alcoólatra e abatida, com quem divide o teto num acampamento suburbano de trailers. Esta raiva incontida em nada é alimentada pelo ego ferido ou qualquer motivação mais, digamos, superficial, e sim pela limítrofe sensação de que se esvai mais uma possibilidade de futuro.

Rosetta é seguida de perto e sem paternalismo pelos Dardenne, que tampouco parecem dispostos a fazer dela mártir, depositária dos males mundanos. A linguagem seca e dura acompanha ininterrupta esta garota que vai e vem pela floresta, onde intercala o único sapato urbano com a bota de borracha própria ao lamaçal em que vive. Não há música, e inexistem, ainda, movimentos de câmera que redimam ou aliviem por qualquer beleza do entorno. Tudo é registrado com a urgência que a pobre menina tem para tornar-se alguém.

Em Rosetta rareiam os espaços para julgamentos morais ou justificativas óbvias, pois seu ideário apregoa que às pessoas resta (sobre)viver com o peso de suas próprias falhas. Menos pela aproximação estética com o real, a excelência da visão dos Dardenne em Rosetta se dá por uma espécie de ética do cotidiano que alimenta pessoas e situações cinemáticas.  E no derradeiro momento, quando a dureza atinge níveis quase insuportáveis, o beco sem saída pode transformar-se em chance. Pode, mas não quer dizer que a tragédia iminente venha, de fato, virar uma centelha de esperança.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Martha Marcy May Marlene


Um dos destaques indies da atual temporada, Martha Marcy May Marlene é ambientado de tal maneira longe dos cenários americanos mais tipificados, que logo permite ao espectador a benéfica constatação da pluralidade geográfica estadunidense, esta pouco perseguida pela maioria de seus conterrâneos. A trama começa no escape da protagonista (Martha) de um lugarejo interiorano, onde há ajuntamento semelhante a uma comunidade de fanáticos religiosos. Patrick, o mestre, por assim dizer, é homem austero que alterna momentos de acolhida e instantes de violência. Todos os seguem cegamente. As mulheres só comem depois dos homens, e eles só copulam com elas após o “batismo” do grão-mestre. Martha escapa, então, para os braços da irmã, mas vê-se assombrada por lembranças que, pouco a pouco, embaralham sua percepção de segurança, tornando-a arredia, instável e um tanto paranoica.

Martha Marcy May Marlene começa promissor, pois cerca de mistérios a vida pregressa de Martha, descortina lentamente seu envolvimento com as normas da “seita” (dentre as principais, consentir-se estuprada e lidar diretamente com a morte), em alternância à exposição da intricada adequação por ela experienciada no retorno ao seio familiar. Hão de ser enaltecidas, ainda, a construção narrativa baseada na ausência de informações “mastigadas”, e a esperta montagem do vai-e-vem temporal, cuja função sintática, em muitas passagens, realça o desmoronamento mental de Martha. Infelizmente, o interesse arrefece na medida em que a trama avança, pois privilegiadas as investigações da personalidade caótica e do estado psicológico ambíguo da figura central, não restam espaços satisfatórios nem para qualquer estudo mais profundo sobre a vivência pretérita na comunidade e muito menos a subtextos igualmente nuançados acerca da família que a irmã e o cunhado workaholic querem formar.

Destacam-se - antes que o esquecimento não permita -, os desempenhos de Elizabeth Olsen, como Martha (talento nato e deveras promissor) e de John Hawkes, na pele de Patrick, (ele, excelente ator cuja capacidade não foi plenamente descoberta pelo grande público). Ambos são figuras proeminentes nesse longa mediano sobre alguém fracionado e psicologicamente abalado que não encontra seu lugar. Ainda que não faça feio, Martha Marcy May Marlene está longe de qualquer voo mais libertador, talvez porque seja demasiado ligado às conseqüências, e um tantinho negligente quanto às causas.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

sábado, 14 de abril de 2012

Inocente ou culpado?


O cinema contemporâneo dinamarquês é rapidamente associado a Lars Von Trier, Thomas Vinterberg, Susanne Bier e toda a trupe que questionou a sétima arte com o manifesto Dogma 95. No entanto, uma vertente ainda mais recente de realizadores vem fazendo proveito dos muitos incentivos que o país oferece à produção cinematográfica e constantemente se destaca entre a programação de festivais e mostras ao redor do mundo. 

Sem pensar muito sobre a categoria supracitada, posso citar Annette K. Olsen (e seu excepcional Pequeno Soldado), o sucesso internacional da trilogia Millenium nas mãos de Niels Arden Oplev e Nicolas Winding Refn, que tem no currículo Drive e a igualmente cultuada trilogia Pusher. A partir de agora posso encaixar no mesmo grupo Jacob Thuesen, nome que desconhecia até que, num acaso de sorte, tive o primeiro contato com seu cinema por meio de Acusado, suspense que em 2005 concorreu ao Urso de Ouro em Berlim. 

Thuesen, que curiosamente desenvolve inúmeros trabalhos como montador, já havia dirigido curtas e documentários, sendo Acusado seu primeiro longa-metragem. O suspense dramático explora um período crítico na vida do casal Henrik e Nina, que possuem uma complicada relação com sua filha adolescente, Stine. A vida do trio fica ainda mais complexa quando a menina acusa o pai de abuso sexual em algumas ocasiões.


Antes mesmo do argumento central do filme se tornar compreensível, a fotografia de Sebastian Blenkov se faz notar com um duro jogo de luz e sombra que muitas vezes sequer revela as expressões dos atores. O que pode causar incômodo no início revela-se pactual à maneira comedida com que Thuesen apresenta seus personagens, em especial Henrik – que passa a sofrer as consequências da acusação em um rígido sistema legislativo e penitenciário. Mesmo que o intrigante roteiro de Kim Fupz Aakeson pressuponha a inocência de Henrik, sua face poucas vezes revelada pela fotografia de Blenkov se une a ótima interpretação de Troels Lyby para criar uma atmosfera ambígua acerca de seu personagem, onde é difícil poder afirmar qualquer coisa.

Enquanto o modelo narrativo whodunit? apresenta uma história na qual o principal mistério é descobrir quem é o culpado, Aakeson demora, mas afirma seu roteiro sobre um artifício que poderia ser intitulado hedunit?, onde a questão central está em conhecer a culpa ou inocência de seu protagonista. Tal questionamento, felizmente, dá espaço para o desenvolvimento da trama, que se aprofunda com uma série de problematizações advindas da acusação de Stine, que gradualmente mina e transforma em caos a vida de seus pais. 

Ainda que cometa alguns deslizes em sua resolução, Acusado tem um fechamento bastante climático e refinado, sem os excessos que um cineasta mais descuidado poderia causar em um filme de tema tão delicado. Fica a expectativa de que Jacob Thuesen deixe as moviolas – ou o que quer que as tenha substituído numa sala de edição – para se dedicar mais vezes à direção e às câmeras que ele parece orquestrar tão bem. 

Adeus Saraceni



"Nosso povo é vira-lata, com muito orgulho"

Paulo Cezar Saraceni
05/11/1933 - 14/04/2012

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Sobre o Festival de Cinema de Paulínia

Carta aberta da Abraccine ao Sr. Prefeito de Paulínia, José Pavan Jr.
A Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) recebe com muito pesar o comunicado de que o Festival de Cinema de Paulínia não será realizado este ano.
A nota do prefeito José Pavan Jr. afirma que a alocação de recursos destinados ao festival em outras prioridades (saúde, educação, moradias populares) tornou a decisão inevitável. 
Como cidadãos, entendemos a construção de moradias populares, e o investimento em educação, saúde e meio ambiente deveriam mesmo ser prioridades constantes de qualquer municipalidade, e não apenas em anos eleitorais. 
Já como profissionais de cinema, lamentamos a descontinuidade de um projeto muito bem formatado e de grande repercussão nacional. 
Em poucos anos, Paulínia criou um Polo Cinematográfico, uma Escola de Cinema e um festival que se tornaram exemplares. O festival, ora em compasso de espera, era justamente a vitrine de toda essa atividade. Reunia em Paulínia produtores, cineastas, atores e atrizes, jornalistas e críticos de todo o País. Formava público para os filmes brasileiros. Criava empregos na cidade e beneficiava a autoestima dos seus habitantes. 
Muitos novos projetos surgiram desses encontros anuais entre profissionais de diversos estados da federação. Foi dessas reuniões, por exemplo, que nasceu a nossa própria instituição, a primeira associação nacional de críticos de cinema, o que faz com que tenhamos carinho especial com Paulínia. 
Todo esse patrimônio simbólico corre o risco de se perder, ao sabor de conveniências políticas de momento. Esperemos que a fresta de esperança aberta no comunicado do prefeito resulte na realização do festival em 2013. Mas ressaltamos, desde já, que é perda irreparável o cancelamento da edição de 2012. Eventos importantes firmam sua tradição pela continuidade.
Assinado. Luiz Zanin Oricchio (presidente da Abraccine)

segunda-feira, 9 de abril de 2012

O Porto e a união em prol do humano


Para os já iniciados na obra do finlandês Aki Kaurismäki, não é surpresa alguma que O Porto seja tão abertamente voltado à fatia menos abastada de uma sociedade inserida no que se convencionou chamar “primeiro mundo”. Seu cinema bastante idiossincrático e, por isto mesmo, facilmente reconhecível, aponta com muita frequência à luta diária de gente simples, cidadãos comuns ocupados, sobretudo, com a manutenção ou resgate da dignidade. Pena que os longas de Kaurismäki sejam escassos no circuito comercial brasileiro, restando a internet como meio quase único a quem se propuser descortinar seu itinerário estilístico e constantes temáticas.

O Porto transcorre na região portuária Le Havre, na Normandia, onde não raro chegam contêineres carregados de imigrantes ilegais. Nesta cercania, vive o engraxate Marx, de condição financeira delicada e esposa prostrada numa cama hospitalar. Contra as probabilidades, o estado de espírito deste senhor é formado basicamente de otimismo e tenacidade, atributos imprescindíveis tanto para suportar a rotina dura e os seguidos golpes, quanto para ajudar o menino refugiado que encontra à própria sorte. A esperança se fortalece pela adesão dos vizinhos, na liga formada para salvaguardar o sonho londrino do garoto que busca a mãe. Os personagens lutam para preservar intimamente a decência esfacelada através de políticas públicas que deveriam por eles zelar.

Em O Porto, Aki Kaurismäki não utiliza o subtexto político/social apenas para reforçar as construções dramáticas (revertendo o que costuma fazer) e sim como linha guia na qual as figuras se equilibram contra a queda.  O finlandês conserva estilo marcado, o movimento essencial pela montagem e a luz como efetivo meio de expressão, principalmente nos interiores que denunciam a parte degradada de um país que vende riqueza aos demais. Acusada pela dureza com que trata a questão da imigração, a França surge como cenário propício para esta história cujo viés humanista se contrapõe ao protecionismo exasperado das grandes nações. Neste panorama, em que a repressiva policial contra imigrantes afronta a negligência da vigilância diária - evidência do ridículo,- Aki Kaurismäki aposta assertivamente no protagonista merecedor de milagres por sua incorrigível obstinação, e na mobilização das pessoas que pouco podem lutando sozinhas, mas que se agigantam quando unidas.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Qual é a nota?


No embaralhamento entre crítica e guia de consumo, surgem as famigeradas cotações por estrelinhas, números, ovos, entre outros. Entende-se perfeitamente este como um dos termos de adequação ao leitor desinteressado que, muitas vezes, nem chega a ler a opinião do crítico, mas cujo interesse na nota (guia do consumidor?) gera os tão importantes pageviews e assinaturas.

Então, tendo em vista a facilidade proporcionada pela nota que sublinha algumas opiniões, não seria ela mesma uma das culpadas por rarearem aqueles que se propõe a leitura aprofundada do trabalho crítico? Ou esta simplificação é benéfica justamente por ser uma das grandes responsáveis por críticos ainda chegarem ao grande público?

segunda-feira, 2 de abril de 2012

A Noite Americana e a lente mágica


François Truffaut, pensador e cineasta que ajudou a promover verdadeira revolução no cinema francês, sobretudo entre os anos 1950 e 1970, primeiro como crítico e articulista na mítica Cahiers du Cinéma e depois como um dos pilares da nouvelle vague, realizou com A Noite Americana o típico sonho do diretor cinéfilo. É numa das mais rasgadas e elucidativas homenagens que o cinema já prestou a si próprio, pois escancara como nenhum outro de seus semelhantes os bastidores de filmagem, perscrutando dificuldades e prazeres da rotina em estúdio.

Além de dirigir, Truffaut interpreta o cineasta criativamente responsável por A Chegada de Pamela, melodrama falado em francês.  Em meio a veteranos excêntricos e jovens instáveis, ele carrega nos ombros a dura tarefa de responder a todo tipo de pergunta, da arma que deve ser utilizada na cena da morte, ao filtro de luz adequado para determinado efeito dramático. Tem de lidar com o ator infantil, a atriz sensível, a veterana alcoólatra, a pressão dos financiadores, as surpresas e os affairs que brotam no meio desta gente ligeiramente mais espontânea. Aliás, Truffaut resguarda o diretor de todo e qualquer envolvimento amoroso, justo ele que manteve inúmeros relacionamentos com quem trabalhou. Poderia com isto querer maquiar seu passado mulherengo, ou simplesmente destituir a figura diretiva de qualquer mácula que tornasse o cargo menos nobre?

Especulações à parte, em A Noite Americana Truffaut presta homenagens bastante pessoais, além de utilizar sua fábula como hospedeira de subtextos que comentam os rumos da própria arte cinematográfica. Destaca-se entre os tributos, a sequência em que um pacote com diversos livros sobre grandes diretores de cinema - não por acaso, ídolos de Truffaut -, se desnuda ante o cineasta carente de iluminação. Na seara dos comentários, põe-se em relevo o lamento, a certa altura, pela mudança de paradigmas que legou o trabalho em estúdio quase ao ostracismo. Sobre este último, pensa-se primeiro em contradição, pois tal movimento ganhou contornos definitivos exatamente com a eclosão da nouvelle vague. Percebe-se, porém, que a observação é, na verdade, a amarga constatação do implacável eclipse provocado pelas novidades, até mesmo nos bons termos do que elas substituem.

Afora observações ferinas e homenagens abertas, A Noite Americana se alimenta do amor de Truffaut pela sétima das artes, num fluxo narrativo apaixonado, apaixonante, e enriquecedor. Estes carateres se evidenciam sobremaneira nas tomadas que desconstroem gravações, nas pequenas revelações da faceta ordinária do cinema. A vulgaridade cai por terra quando estes mesmos registros são filtrados pela ótica da câmera, que os devolve ao olimpo diegetico onde o milagre se configura. Magia em estado puro.  


Publicado originalmente no Papo de Cinema