domingo, 28 de fevereiro de 2016

Doses Homeopáticas #68

DRIVE é um filme que fala sobre paternidade. O personagem de Ryan Gosling assume temporariamente, da forma como lhe é possível, o papel de figura paterna ao menino cujo pai biológico está na cadeia. De maneira semelhante, o patrão vivido por Bryan Cranston substitui, mesmo que por vias tortas, a referência que ele provavelmente não teve na infância. Trajando uma indefectível jaqueta de escorpião, o protagonista se assemelha aos enigmáticos pistoleiros do western, aos homens sem nome, de poucas palavras, sobre os quais não se sabia de onde viam, para onde iam e que propósitos lhes guiavam. O diretor Nicolas Winding Refn cria um filme tenso, repleto de uma iconografia muito própria, mas com conceito decalcado de obras anteriores, sobretudo da Hollywood de outrora. Filme-homenagem, tem no desempenho assombroso de Ryan Gosling um de seus pilares. Aliás, o elenco recheado de nomes tão conhecidos quanto competentes proporciona o aprofundamento da dimensão humana, dos elementos que enriquecem o que a imagem e o ritmo dão conta de acelerar e desacelerar. A violência está presente a todo o momento, com sangue jorrando em grande profusão para marcar uma realidade essencialmente bárbara, em que o dinheiro fala mais alto e nem sempre os bons sentimentos conseguem sobrepujar as adversidades.


Redefinição da comédia romântica na época de seu lançamento, NOIVO NEURÓTICO, NOIVA NERVOSA continua um filme excepcional, talvez a obra-prima maior de Woody Allen, pelas maneiras bem-humorada e madura com as quais esquadrinha a relação dos protagonistas. Sabemos desde o início que Alvy e Annie vão se separar, mas não deixamos de acompanhar com entusiasmo os primeiro encontros, as risadas que pontuam o simples preparo de um jantar, a cumplicidade que vai se adensado no ritmo do pessimismo dele e da alegria quase inocente dela. Aos poucos, porém, o amor arrefece e vai perdendo terreno para as desilusões cotidianas, as diferenças que crescem na medida em que a tolerância rareia. Os personagens falam com o expectador, interagem com transeuntes como se eles fossem conselheiros sentimentais, há as tiradas afiadas de Allen, com uma fartura poucas vezes vista, além da evidente cumplicidade entre o cineasta/ator e Diane Keaton, quiçá sua parceira de cena mais marcante. A abordagem dos sentimentos e, principalmente, dos relacionamentos que deles decorrem é destituída de falsos ideais de romantismo ou de fórmulas prontas. O amor, que antes parecia eterno, acaba porque as coisas mudam, nos diz essa obra que aponta à maturidade de um artista cujos talentos vão muito além da capacidade de fazer rir.


Ainda sob o jugo da ditadura militar no Brasil, um grupo de artistas performáticos, liderados pelo personagem de Irandhir Santos, desafia com irreverência as convenções e a carolice imperativa. Seus números iconoclastas no palco do Chão de Estrelas apostam na força, na sensualidade e na naturalidade dos corpos. Em meio a isso, o protagonista se envolve com um soldado, ou seja, alguém lotado no extremo aposto dessa luta na qual ele se vale da poesia, da música, enfim, da arte, a fim de fazer valer os direitos de existir sem restrições. Em TATUAGEM, primeiro longa-metragem de Hilton Lacerda como diretor, os números musicais/poéticos entrecortam as e se fundem organicamente às demais camadas, com a história propriamente dita. Irandhir e Jesuíta Barbosa, intérpretes do envolvimento amoroso/sexual que personifica a transgressão defendida pelos componentes da trupe, merecem todo reconhecimento em virtude do excepcional trabalho, que funciona tanto no registro mais expressivo e desbragado quanto no que diz respeito às evidências surgidas nos não ditos e nos olhares enviesados. Lacerda choca a sedimentada tradição e os intentos de revolução nesse excelente filme que faz jus com folga aos prêmios recebidos.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Doses Homeopáticas #67



Marco-zero da nouvelle vague francesa, NAS GARRAS DO VÍCIO mostra um jovem que volta à cidade interiorana onde cresceu, a fim de recuperar-se de uma doença que quase o matou. Lá ele encontra um espaço parado no tempo, em que a arquitetura não mudou tanto, diferentemente das pessoas de seu passado, que agora são outras, não raro oprimidas pelas dificuldades que o isolamento e a falta de perspectiva impõem. O diretor Claude Chabrol filma esse regresso amargo com liberdade para tocar em temas-tabu, tais como o incesto. O protagonista se ressente de não poder fazer muito por seu amigo de infância, um sujeito infeliz que trata mal a esposa grávida, vive bêbado e flerta com a cunhada mais nova. Serge é extremamente autodestrutivo, um homem ressentido pelas oportunidades que a vida lhe negou, por ter criado raízes num local em que seus sonhos de crescimento não encontram ressonância nem possibilidade. Os personagens, bem como as relações que os unem, são construídos de maneira orgânica, sobretudo no que tange aos sentimentos e contradições, combinando, assim, com o despojamento e o frescor apregoados pela encenação.


ORAÇÃO DO AMOR SELVAGEM, do cineasta catarinense Chico Faganello, é um filme repleto de pequenos problemas, como na primeira parte, em que o protagonista, interpretado com muita competência por Chico Diaz, perde a esposa e passa um período numa comunidade pautada pela religiosidade. Contudo, a trama que enfoca contendas motivadas pela intolerância religiosa e os ótimos desempenhos do elenco garantem o saldo positivo. Enredado pela irmã do pastor vivido por Ivo Müller, Thiago precisa lutar contra um entorno que lhe vê com olhos desconfiados. A comunidade é arredia ao diferente, a quem não frequenta a missa e reza pela cartilha do homem que brada sermões e invoca Deus, muitas vezes, para cobrir as próprias falhas. A filha de Thiago é um emblema de pureza nesse entorno degradado, tacanho e com mentalidade enferrujada. Embora os homens sejam aparentemente mandatários, são as mulheres que definem as coisas. O desejo paira no ar, principalmente o do pastor pela própria irmã, ou mesmo o dela pelo forasteiro. Fosse um pouco menos pudico no que diz respeito às cenas mais quentes, Faganello poderia ter potencializado o sexo enquanto elemento de combustão daquele lugar. Ainda assim, um filme com muito a dizer, que não se furta, inclusive, de um final muito bonito, em que a poesia é precedida da barbárie, da violência extrema.  



Considerado o primeiro longa-metragem norte-americano, O CASAMENTO DE CARLITOS não é protagonizado pelo personagem icônico de Charles Chaplin, o vagabundo de chapéu-coco, mas pelo pilantra que se envolve com uma menina do campo a fim de ficar com o dinheiro do pai. A atriz Marie Dressler é o grande destaque do filme, interpretando essa interiorana atrapalhada e corpulenta que, depois de ser passada para trás, se vê trabalhando como garçonete para, mais tarde, tornar-se a única herdeira do tio que sofre um acidente praticando montanhismo. Embora dividido em seis capítulos, o longa dirigido por Mack Sennett, chefão da Keystone, não soa episódico, como se fosse um apanhando de curtas-metragens enfileirados para dar conta da duração maior. Se em boa parte da trama temos a dinâmica triangular entre Carlitos, a herdeira e sua mulher anterior (que também espera lucrar alguma coisa em virtude da ingenuidade alheia), a parte final exibe as principais características das produções da Keystone, como ação tresloucada, os Keystone Cops mais atrapalhando que ajudando e as coisas se resolvendo no âmbito da gag.   

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Doses Homeopáticas #66

Dirigido por Howard Hawks, EL DORADO é protagonizado por John Wayne e Robert Mitchum. O primeiro interpreta um lobo solitário, aqueles tipos que vagueavam pelo velho oeste sem eira nem beira, aceitando os trabalhos mais diversos, desde que eles incluíssem o uso de sua arma. O segundo é o xerife da cidade que dá nome ao filme, homem que precisa de ajuda para mediar um conflito entre dois fazendeiros, principalmente depois que uma desilusão amorosa o faz mergulhar pesado no álcool. Os dois são amigos, até mesmo por isso o personagem de Wayne volta para ajudar o de Mitchum quando as coisas parecem insolúveis pelas vias diplomáticas. Auxiliando eles, um jovem que não sabe atirar e um idoso que se autoproclama matador de índios. Assim como na obra-prima Onde Começa o Inferno, Hawks privilegia os momentos de espera, mais importantes, de fato, que os tiroteios responsáveis por pontuar os desdobramentos da contenda. Há humor, uma boa dose de romance, mas, sobretudo, a valorização da amizade, algo visto tanto na proximidade dos dois protagonistas quanto na trajetória do novato que passou dois anos caçando os responsáveis pela morte de um velho amigo de quem herdou o chapéu estranho.


AUDAZES E MALDITOS é um faroeste vanguardista, no qual John Ford discute o preconceito racial. A culpa de um crime bárbaro (estupro seguido de duplo homicídio) é imputada ao sargento Rutledge, membro respeitado e exemplar do exército norte-americano. Ele é negro e sabe muito bem que a cor de sua pele pode determinar o veredito da corte marcial. Quase sem esperanças, Rutledge não se pronuncia sobre o caso, pelo menos até o julgamento em que é defendido pelo colega e amigo Tom Cantrell (Jeffrey Hunter). Os eventos anteriores e posteriores ao assassinato da adolescente e de seu pai, também um oficial do exército, surgem nos depoimentos das testemunhas do processo que decide o futuro de Rutlege. Embora não estenda a questão aos indígenas, vistos no filme apenas como antagonistas sanguinários capazes das maiores atrocidades e, portanto, indignos de nossa simpatia, esta realização de John Ford abraça o combate à discriminação, primeiro, mostrando toda opressão que achata o homem de honra ilibada, tachado criminoso muito mais por conta de sua raça que propriamente em virtude dos indícios, e segundo, mostrando-o como uma figura heroica, alguém que ainda se sente escravo, dada a conjuntura social que hipocritamente diz-se igualitária, mas que, na verdade, rebaixa e repele todos que não são brancos e endinheirados.


Embora esteja sempre acompanhado na jornada para levar um bandido à cidade onde lhe pagarão pelo serviço de captura, o protagonista de O HOMEM QUE LUTA SÓ é essencialmente solitário, alguém que interage em virtude da necessidade, sobretudo por estar focado numa questão muito particular. O personagem interpretado por Randolph Scott convive com ameaças, dos índios que querem esposar uma de suas acompanhantes de viagem, do irmão do sacripantas que ele escolta até a forca e de um companheiro de estrada que deixa clara a intenção de lhe matar para poder usufruir do benefício da anistia, concedido como recompensa. As cenas de ação, muito bem filmadas, evidenciam a relação do homem do velho oeste com a natureza que o circunda. Contudo, o diretor Budd Boetticher privilegia a exposição das motivações. Cada personagem possui uma intenção muito bem definida, pela qual luta, não importando o esforço e/ou a consequência. Vingança e luto se mesclam no final redentor, no qual o fogo consome o totem da dor de quem já viu de tudo nos descampados do oeste selvagem. 

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Doses Homeopáticas #65


O primeiro grande acerto de MACBETH: AMBIÇÃO E GUERRA é tratar o protagonista e os personagens mais próximos como forças da natureza. Isso é evidenciado pela imagem, aliás, pela belíssima construção visual a cargo do diretor de fotografia Adam Arkapaw. Os méritos prosseguem na excelente direção de arte, entre outros detalhes, como o estado deplorável dos guerreiros no campo de batalha, ou seja, a maquiagem também se destaca. Mas, fora os quesitos técnicos (que, claro, também podem ser considerados artísticos), o que mais salta aos olhos neste corajoso e brutal filme de Justin Kurzel são as interpretações de Michael Fassbender e Marion Cotillard. Ela consegue transparecer todo ardil do qual se vale para insuflar o espirito guerreiro do marido na direção do trono da Escócia. Já ele, em princípio transmitindo a virulência de um homem dominado com facilidade pelos joguetes da esposa, aos poucos evidencia a loucura de Macbeth, a ira sem fim que faz desta trama um transcorrer repleto de som e fúria. Um grande trabalho dos atores, coroado com uma produção esmerada e suntuosa, sem nunca transparecer ostentação ou gratuidade. Numa temporada de prêmios como o Oscar, é de se lamentar este filme não concorrer nas principais categorias.


Perder-se é um risco sério em meio ao ritmo frenético de A GRANDE APOSTA, afinal de contas o filme se vale de diversas expressões idiomáticas do mercado financeiro, ininteligíveis para muitos de nós. Contudo, o diretor Adam McKay contorna essa dificuldade com explicações, entre as contidas nos diálogos e algumas brincadeiras, como as protagonizadas por celebridades que destrincham verbetes enquanto fazem qualquer outra coisa. O grupo de homens que anteviu a crise imobiliária responsável por devastar a economia em 2008 é heterogêneo. Seus membros se aproximam apenas no que diz respeito à clarividência de enxergar um mercado sustentado por títulos quase sem valor. O filme aponta o dedo condenatório aos bancos, mostrando-os como os principais responsáveis pela quebradeira que deixou milhões desabrigados e desempregados nos Estados Unidos. O andamento acelerado, a montagem inteligente, o roteiro esperto, são atributos de um ótimo filme, que dá conta de comentar criticamente a conjuntura sobre a qual o capitalismo estadunidense foi construído e mostrar a singularidade dos personagens que tiveram suas razões para apostar pesado contra algo que todos achavam sólido demais.


SPOTLIGTH: SEGREDOS REVELADOS é um drama jornalístico orquestrado de maneira tão inteligente que não é preciso muito tempo para estarmos completamente absortos na investigação da equipe especial do jornal Boston Globe sobre crimes de pedofilia cometidos por padres. O diretor Tom McCarthy nos coloca em contato íntimo com a rotina da redação, com as etapas necessárias para que uma boa história vire reportagem e possa, de alguma maneira, influenciar positivamente a sociedade. Os personagens são muito bem construídos, tendo contempladas suas singularidades – o que os torna gente acima de jornalistas – sem, contudo, que o foco da apuração seja desviado para suas dificuldades. São pessoas de carne a osso, com anseios muito próprios e motivações, da mesma forma, bastante particulares, que dividem uma gana pela verdade, por fazer do jornalismo um instrumento efetivo. Os bastidores da notícia são expostos como uma zona cinzenta à qual geralmente os leitores não têm acesso, repleta de pressões e outros impeditivos para que as coisas sejam impressas da maneira como aconteceram. Há um crescendo de emoção e adrenalina que acompanha a progressão da trama, o que evidencia a tensão inerente a um trabalho complexo como o empreendido pelos jornalistas do Globe, fazendo deste filme um êxito contundente, tanto no que diz respeito à forma quanto ao conteúdo.
  

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Doses Homeopáticas #64



O brasileiro Alberto Cavalcanti é um dos diretores do inglês NA SOLIDÃO DA NOITE, filme que maquia com muita perspicácia sua estrutura essencialmente episódica. Um arquiteto reconhece os presentes numa casa estranha como protagonistas de pesadelos recorrentes que ele vem tendo. Intrigados pelo inusitado, os presentes, até mesmo para convencerem um cético psiquiatra que não acredita no sobrenatural, começam, um a um, a contar casos estranhos acontecidos consigo próprios ou mesmo com pessoas próximas. O clima de terror/horror é quebrado por uma trama engraçadinha, movimento inteligente que nos convida a ficar mais atentos à encenação, já que tudo decorre de relatos e, por certo, é passível de distorções, quando não de invenções. Entre um causo e outro, o arquiteto se convence de que algo muito grave vai acontecer, que aquele dia estranho não vai acabar bem, algo sinalizado pela confirmação, na prática, do que ele havia presenciado apenas durante o sono. As tramas são interessantes uniformemente, ou seja, não há um sensível desiquilíbrio, como de costume em filmes feitos de fragmentos.


A NOITE DO DEMÔNIO é Jacques Tourneur em grande forma. O filme contrapõe ceticismo e ocultismo, no qual o segundo acaba se sobressaindo, principalmente, pela presença marcante do demônio que surge em meio à fumaça para aniquilar aqueles que foram presenteados com pergaminhos amaldiçoados. O protagonista não aceita a existência do sobrenatural, buscando explicações científicas e racionais para fenômenos estranhos. O demônio é uma figura ameaçadora, fruto da trucagem que dá conta de transmitir o temor decorrente dessa presença. Embora Tourneur fosse terminantemente contra a aparição literal, preferindo que os espectadores, assim como os personagens, ficassem na dúvida se viram mesmo algo extraordinário, ela funciona muito bem. Perdida a queda de braço para os produtores, temos o mostro na tela, elemento que extirpa qualquer ambiguidade e deflagra a existência inconteste de forças bizarras que regem o entorno.  Ainda assim, o filme nos ganha pela atmosfera que oprime num crescendo de horror eficiente, pois construído com inteligência ao largo das discussões suscitadas e do romance que surge.


A ALDEIA DOS AMALDIÇOADOS é um filme curto, que consegue em seus sintéticos 77 minutos estabelecer um clima de horror genuíno, baseado nas tensões despertadas por fenômenos inexplicáveis. Primeiro o apagão geral numa cidadezinha inglesa. Os habitantes desmaiam e acordam horas depois, como se nada tivesse acontecido. A herança de tal ocorrência é a gravidez de todas as mulheres férteis do lugar, a gestação acelerada e o nascimento, no mesmo dia, de um bando de crianças loiras, com olhos estranhos e uma concepção física e intelectual extraordinárias. Os pequenos crescem rápido, expondo poderes cada vez mais ameaçadores. Não se sabe qual a origem deles, embora haja uma teoria que os relacione a seres extraterrestres. Tudo funciona muito bem nesta realização de Wolf Rilla, em que os vilões, filhos apenas de mães, estão dispostos a qualquer coisa para sobreviver, até mesmo a matar entes próximos (não queridos, já que eles são destituídos de emoções). Apreensão e medo caminham juntos, um alimentando o outro, constantemente.