sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Possessão


Política, desejo, ciúme, obsessão, são alguns dos pilares de Possessão (1981), dirigido pelo polonês Andrzej Zulawski. Muito do impacto causado surge, para além do conteúdo repleto de mensagens cifradas, dos artifícios que trazem ao exterior as complexas sensações dos personagens. A linguagem de Zulawski é seca, quebradiça, elíptica, não apenas para desestabilizar o espectador que segue o desenrolar da trama num misto de interesse e perplexidade, mas também como alusão ao fim da Guerra Fria, período responsável por tornar política e socialmente instável toda a Europa.

Mark (Sam Neill) acaba de voltar para casa, desliga-se do trabalho (provavelmente algo relacionado à polícia ou espionagem) para se dedicar à família. Encontra a esposa Anna (Isabelle Adjani) descontente, e não tarda a descobrir sua infidelidade, com isso iniciando doloroso processo de desintegração do casamento. Obsessivo, o homem inicia um jogo no qual o filho de ambos é peça-chave. Para visitar Bob (a criança) a mãe precisará continuar vendo também o pai amargurado. Dessa relação baseada na chantagem emocional, surgem pequenas e depois grandes violências, começando pelas psicológicas e culminando em agressões físicas. Do lado de cá, somos tragados pela atmosfera construída por Zulawski, pulamos de cena em cena, somos arrastados pelos travelings e nosso olhar é guiado direto à fraturada psique dos personagens.     

Se no início percebemos Mark com elo frágil do rompimento, a parte com menos estrutura para segurar o tranco da separação, gradativamente Anna apresenta sinais de maior proporção à psicose desenvolvida pelo ex-marido. Zulawski extrai seu filme das bases reais para instaura-lo no campo da alegoria com o surgimento de uma criatura inumana, novo interesse amoroso/sexual da personagem de Adjani. Podemos entender tal ser disforme e ávido por sangue como a materialização da patologia mental que tira Anna completamente do prumo, fazendo-a, inclusive, assassina. Os reveses de humor, o retorno para arrumar a antiga casa sob o pretexto de ver o filho - por quem nunca espera de verdade -, a cada vez mais doente relação com Mark - ele mesmo em permanente estado de desorientação -, fazem de Anna (figura mais complexa do longa) tanto vítima quanto algoz de si.  

Em Possessão é complicado diferenciar objetividade de subjetividade. Há indícios muito frágeis de quando (se é que) estamos na realidade ou na lógica distorcida dos personagens.  À medida que o filme se entrega totalmente aos ditames da loucura, Deus e o embate entre destino e aleatoriedade passam a ser citados, assim como as esferas intangíveis e carnais formadoras do humano. Aliás, pensamento e carne nunca se dissociam em Possessão, enquanto um padece, a outra sangra.

Confesso ter me entediado, vez ou outra, com a reiteração de certos ideais, a aposta no alongamento das exposições (ainda que a duração das mesmas seja disfarçada pelos cortes abruptos), em detrimento da concisão. Por outro lado, o filme soar descontrolado, inquieto, lhe faz muito bem. De qualquer maneira, senti como se minha leitura fosse em parte prejudicada por uma abundância de importantes signos referenciais que me escaparam. Mea culpa, mea culpa, mea máxima culpa. Assumir isso não é demérito algum, ainda mais frente à evidente força de um objeto cinematográfico não identificado destes, onde somos convidados irremediavelmente às profundezas da demência alheia.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Doses Homeopáticas #30


CHEF é um arroz com feijão bem temperado. Conhecemos o percurso do cara que afunda no ego, que deixa o próprio talento e a obsessão pelo trabalho cegá-lo quanto às outras coisas importantes da vida, e que logo vai ter de começar de novo. Mas aqui, além do diretor John Favreau fazer um filme que pega a gente pelo estômago – e dá uma fome danada ver o preparo dos pratos -, há um acerto de contas que desloca ligeiramente o mais óbvio, ou seja, a frustração pessoal que logo se transforma num novo sucesso, direcionando o filme à reconciliação familiar na viagem pelos EUA que fará, finalmente, pai conhecer filho e vice-versa. Tudo caminha para um final feliz, como manda o figurino. Fica a sensação de provar um prato caseiro, que a gente já comeu diversas vezes, mas ao qual sempre volta, porque além de familiar, o gosto é bom.


Saí da sessão de A PEDRA DE PACIÊNCIA com a sensação de ter visto algo muito forte do ponto de vista cinematográfico. A protagonista encara praticamente sozinha a dureza do dia a dia de bombardeios e a criação das filhas, já que o marido está quase em estado vegetativo após levar um tiro. A partir de seus relatos para esse ouvinte imóvel, que involuntariamente assume papel de confessor ou analista, a gente passa a entender melhor a opressão da mulher muçulmana, já que temos exemplificadas as convenções sócio-religiosas que institucionalizam sua inferioridade. A encenação se atém ao básico, a fazer da protagonista um símbolo do sofrimento feminino cotidiano no Oriente Médio mais extremista, ainda que conserve a dimensão muito particular de sua história. O homem ali prostrado, quem sabe, representa a inércia fundamentalista, cuja desculpa maior é a tradição. A mulher, pelo contrário, é uma força incontrolável, que burla como pode o sistema cruel para viver com o mínimo de dignidade.


Assim como na maioria dos filmes de David Fincher, em GAROTA EXEMPLAR a investigação principal é apenas uma autoestrada pela qual trafega o comportamento humano em suas mais diversas facetas. Com a habilidade de sempre, o cineasta conduz o inquérito mais como desculpa para deter-se neste ou naquele personagem, para estudar condutas (às vezes extremas) pouco ortodoxas. O marido realmente matou a mulher ou tudo não passa de um mal entendido? Da força dessa incerteza calculada que permeia o filme se incumbe a direção de Fincher, empenhada em ressaltar a ambiguidade dos olhares, dos movimentos, a inflexão suspeita de uma fala qualquer. A violência é muito mais psicológica que gráfica, as instituições são questionadas a todo instante, bem como a verdade, esta que pode tanto ser fabricada por advogados, visando uma boa imagem na televisão, quanto dissimulada no dia a dia para dar a (falsa) impressão de felicidade. Um filme, em última instância, sobre o conflito entre o parecer e o ser.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Fim de Caso


Ninguém sabe ao certo os caminhos da paixão, muito menos quão sinuosos e improváveis eles são. Após encontrar Henry Miles (Stephen Rea), marido de sua ex-amante, vagando desconsolado abaixo de chuva, o escritor Maurice Bendrix (Ralph Fiennes) retoma o contato com ela, Sarah (Julianne Moore), de quem havia se separado há dois anos. Rever o amor perdido é como ter reabertas as feridas até então em processo de cicatrização. Subir as escadas da casa conhecida remete às primeiras carícias, ao sexo feito na clandestinidade onde depois nasceu um sentimento cujo tamanho e força não deixam enquadrá-lo nos habituais “certo” e “errado”. O cineasta Neil Jordan, em Fim de Caso, reafirma o interesse tanto na dualidade humana, quanto na erupção dos desejos, sobretudo os avassaladores que não permitem muita resistência.

O cenário é Londres em plena Segunda Guerra Mundial, cidade sitiada por bombardeios, em permanente tensão. As sirenes que alertam a população para a iminência de ataques aéreos servem inusitadamente ao amor de Bendrix e Sarah. Acompanhamos tudo em retrospectiva, enquanto o escritor datilografa, conforme definição própria, seu “diário de ódio”. Ele não sabe se odeia o marido, a mulher ou a ele mesmo, mas tenta entender e aliviar esse sentimento transpondo-o ao papel. Idas e vindas temporais, reminiscências mesclando-se a acontecimentos presentes, fatos vistos de ângulos diversos, formam uma construção narrativa engenhosa, cujo maior mérito é evidenciar os desvãos que fazem equivalentes a geografia interna dos personagens e a paisagem externa em conflito bélico.

A câmera de Jordan é elegante, passeia por uma Londres antiga, reconstruída minuciosamente para a transposição do livro homônimo de Graham Greene ao cinema. Não bastasse alterar violentamente o ambiente, a Guerra ainda é responsável por algo que influencia de maneira direta e decisiva a trama, dando-lhe contornos ainda mais dramáticos. Promessas precisarão ser cumpridas, sobretudo as feitas a Deus, ainda que o credor onisciente, onipresente e onipotente, seja causa e solução, simultaneamente. Fim de Caso pode soar moralista, pois investe algumas de suas fichas mais altas num diálogo entre fé, milagre, pecado e salvação. Contudo, proponho que percebamos tal exploração como parte de um embate, criado por Greene e reverberado por Jordan, que choca a divindade clássica e seus desígnios, tão misteriosos quanto castradores, com a própria ideia do amor não submetido ao moralismo. Portanto, se Deus é amor, onde há amor, em tese, não há pecado.

O amante, cego de ciúmes, intermedia investigação da qual será conscientemente objeto, à medida que o marido se resigna à dependência da mulher. Sarah, por sua vez, divide-se entre culpa e desejo. Fim de Caso é um filme complexo, onde as pulsões dos personagens aparecem como elementos inerentes à constituição humana, partes indissociáveis de nossa falibilidade primal e irrefreável.  Mediadas pelo amor, ressurreição (simbólica) e cura, a princípio atributos das divindades, podem, como fenômenos perfeitamente instaurados na ordem do real, advir de uma “pecadora”, cuja danação decorre não do adultério, como muitos gostariam de supor, mas da fidelidade quase irrestrita às suas promessas.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Doses Homeopáticas #29


MISSÃO IMPOSSÍVEL: PROTOCOLO FANTASMA está mais para uma aventura típica de Ethan Hunt que para tentativa de alinhamento com, digamos, os novos tempos pós-Bourne. Mas isso, por si, não quer dizer muito, pois não é preciso emular Bourne para ser bom na seara dos filmes de espionagem. Aqui tudo começa muito bem, com aqueles planos truncados, cheios de reviravoltas e segredos típicos das andanças incógnitas do agente secreto pelo mundo. O vilão a ser combatido é um cara que pretende detonar uma guerra nuclear, só isso. Contudo, aos poucos o que parecia legal vai amornando, perdendo força, inclusive visual. A resolução se aproxima ao passo em que já não nos interessa mais tanto. Brad Bird, cria da Pixar em seus primeiro live action, sai-se bem, mas é prejudicado por um roteiro dispersivo e que subaproveita boas ideias.


MISS VIOLENCE tem um pouco dos primeiros filmes de Michael Haneke. Inclusive, no início, antes de suicidar-se, a aniversariante olha para a tela, nos encarando, como faz um dos protagonistas de Violência Gratuita, embora sem o mesmo efeito. O resto do longa é um estudo sobre o que teria levado a garota a se matar. Adentramos no núcleo familiar de maneira íntima, conhecendo aos poucos a rotina que a festividade inicial não deixava transparecer. A encenação é seca, os sentimentos dos personagens parecem represados, isso visto nos semblantes que quase não conseguem mais expressar a dor existente, efeito colateral de um processo de desumanização. Há uma cena de sexo (estupro) aqui, outra mais gráfica ali, mas o que verdadeiramente confere força ao filme é a atmosfera opressiva alcançada pela articulação das coisas num nível sugestivo, menos visual e mais perceptivo.



AMOR À FLOR DA PELE é um daqueles filmes que nos sugerem o amor como fonte de tudo, início e fim não apenas de relacionamentos, mas da nossa própria interação com o mundo. O casal que se julga traído começa a encenar a traição, como se isso, ou seja, de alguma forma entender, lhes reduzisse a dor. No caminho, eles próprios se apaixonam, percebendo que não há como controlar as emoções como se elas fossem documentos tramitando em repartições públicas. A trilha sonora, a palavra que às vezes corrobora e às vezes nega a imagem, a maneira poética de Wong Kar-Wai trabalhar o tempo em prol de uma ligação que se constrói com vagar, a salada cultural de referências (que nem por isso torna a Hong Kong da década de 1960 menos asiática), a ambiência precisa da metrópole convulsionada pela crise dos espaços, são elementos que fazem de AMOR À FLOR DA PELE, quem sabe, o filme mais complexamente romântico das últimas décadas. 

sábado, 11 de outubro de 2014

Santo Forte


Aproveitando a visita do Papa João Paulo II ao Brasil em 1997, e a consequente comoção de tal presença, o cineasta Eduardo Coutinho pôs-se a investigar certos aspectos da religiosidade brasileira em Santo Forte. Para isso, fez um recorte, instalando-se numa pequena comunidade na Gávea, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro, para nela identificar, num nível mais evidente, os cruzamentos das doutrinas para a formação complexa das crenças locais, e, nas entrelinhas, o próprio percurso até as religiões, os aspectos sociais e antropológicos que estão na base da relação enraizada, ora na tradição, ora na ocasião, entre pessoas, santos e outros guias de um possível plano mais elevado da existência.

A comunidade é humilde, abriga gente cuja sabedoria tem mais a ver com a vivência do que necessariamente com qualquer experiência nos bancos escolares. Povo sofrido esse que encontra alento nos braços do catolicismo enquanto segue também a doutrina dos orixás. Aliás, o diálogo da fé cristã com as religiões de origem africana perpassa todo Santo Forte. Percebe-se, por exemplo, que as pessoas se dizem católicas, ocultando as práticas no terreiro num primeiro momento, não por medo de discriminação, mas por ficarem realmente entre duas tradições, a brasileira de nascimento e a africana da origem remota, optando comodamente pela mais corriqueira enquanto “oficial”. Como sempre, Eduardo Coutinho não esboça qualquer sinal de julgamento, está ali para fazer emergir complexidades.

Também como de costume, o cineasta expõe a feitura de seu filme, mostrando entrevistados na assinatura de termos de cessão de imagem e deixando a câmera aparecer, ou seja, abolindo de alguma maneira a chamada quarta parede responsável por nos separar daquilo que assistimos, aproximando-nos, assim, do cotidiano alheio, sem traços de invasão. Estamos inequivocamente vendo um filme, onde mesmo o mais sincero dos depoimentos está sob a ordem dos signos cinematográficos. Ligada, a câmera não capta a verdade, mas sim derivados, muito próximos ou muito distantes da dita. Novamente, Coutinho intermedia com habilidade ímpar a relação entre a câmera e o depoente, fazendo deles íntimos.

Santo Forte utiliza as três vertentes religiosas mais disseminadas no Brasil para discutir, a partir do então oportuno momento, a função da crença na vida das pessoas, ainda que não o faça sem certa redundância. Sofredores que encontram na devoção a base para o dia a dia não se importam em batizar os filhos pela manhã com as bênçãos do padre e à noite num cenário repleto de fumaças e das bebidas favoritas dos Pretos Velhos. Tal contradição não lhes incomoda, pois seu pacto é com própria fé com a qual abrandam boa parte da carga cotidiana.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

O Decálogo - Krzysztof Kieslowski (Parte II)


Segunda e última parte das impressões da amiga Bianca Siqueira a respeito de Decálogo (1989), minissérie televisiva polonesa, concebida e dirigida por Krzysztof Kieślowski.
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Não pecarás contra a castidade

Jovem rapaz espiona (através da janela) sua vizinha e se apaixona por ela. Inventa inúmeras situações para vê-la e se contenta apenas com isto. Magda, a vizinha, sabe que tem um observador, mas não desconfia de Tomek. Seu apartamento é frequentado por diferentes homens com os quais ela tem relações sexuais, deixando o jovem Tomek enciumado e cada vez mais determinado a fazer parte da sua vida. Esta determinação acarreta na revelação das suas manobras de aproximação e das espionagens realizadas através da janela. Magda então prepara uma revanche para castigar seu indiscreto observador.  Mas este castigo acaba por revelar a distância que ambos estavam do Amor. A castidade do jovem Tomek é ridicularizada assim como a existência do Amor. As feridas causadas por este embate realçam outras tantas já hospedadas na alma e os cuidados recebidos serão oportunos.


Não Roubarás

Mãe e filha são separadas em nome da moral e bons costumes vigentes. A matriarca da família (avó) assume a educação da neta (agora filha) e distancia ainda mais os laços diretos (verdadeiros) entre elas (agora irmãs). Esta atitude moralista corroborada pela sociedade implica na estruturação de mentiras, estigmas, rancores, medos... E uma assepsia nas emoções. Esta conduta acaba por desumanizar as relações interpessoais e indicar-lhes um personagem cultural desejado. Uma mãe deve ser arrumadinha, casada com homem do mesmo circulo social, com certa idade e estudos completos. Esta personagem idealizada não cabia em uma jovem adolescente grávida do namorado (professor). É neste solo que Majka (mãe roubada de sua condição) se organiza e foge semeando a dúvida, estremecendo valores, implodindo a sua família... Ela busca sua identidade, mas não encontra terreno para conhecê-la.


Não levantarás falso testemunho

Professora de ética discute em sala de aula com seus alunos uma situação em que um bebê está em risco de morte por conta da moral e bons costumes da localidade. Ela ressalta que a ética, neste caso, deve ceder lugar à mentira (falso testemunho), pois a vida humana está acima das ponderações ou valores incidentes sobre ela. Curioso ver que fato similar a este ocorreu no passado com esta mesma professora, então jovem mulher católica. Na ocasião, a jovem estava amedrontada com a perseguição aos judeus (nazismo) e as ponderações éticas e cristãs sobre a vida pareciam valer mais que uma criança judia sob sua responsabilidade.  Esta jovem mulher abandonou a criança judia em nome destas ponderações (testemunho de fé) culturais vigente.


Não desejarás a mulher do próximo

Um casal apaixonado se vê diante da impotência sexual. Consideram que o Amor entre eles é mais forte que os desejos da carne, mas esta convicção não se sustenta por muito tempo. Ambos se atraem pelas paixões dos sentidos e, se deparam (cada qual a seu modo) com objetos, ligações misteriosas, cartas, excitação no trabalho e códigos secretos. Passam a viver uma rotina de segredos e mistérios até que o amante “potente” é desvendado. É neste momento que o casal passa a se olhar por inteiro e a constatar que o vazio experimentado (da impotência) ainda permanecia. Esta descoberta dolorosa seria necessária para que aquelas feridas pudessem receber cuidados.


Não cobiçarás coisas alheias

Dois irmãos se reencontram no enterro de seu pai e descobrem a herança valiosa em selos (coleção) que acabam de ganhar. Ao estimarem o valor deste bem, ficam completamente absorvidos por ele. Passam a obter conhecimentos sobre a prática dos colecionadores, o mercado (comércio) de selos, etc. Vendem seus próprios pertences para proteger o patrimônio adquirido e acumularem mais (novas) peças. Mas, o que a princípio parecia ser um benefício, uma dádiva, se tornou uma armadilha para suas almas. O “espírito da coisa” se reverteu em cada vez mais acumulação de valores e na proteção destes cobiçados itens.  Para obterem segurança deste patrimônio herdado necessitavam da aquisição de trancas, códigos, estratégias, alarmes, e o cofre que construíram  permitiu que eles próprios fossem tomados como moeda.

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Após assistir os dez episódios/ mandamentos, podemos notar o paralelo traçado por Kieslowski entre a cultura (ética) e a vida humana. Para ele o sentido da vida (o espírito) não está sempre vinculado ao sentimento calcado nos usos e costumes de um povo. A ética e a civilidade, sim, pois estas nascem do vínculo afetivo social predominante. Mas a base anímica alcança apenas o ser humano em sua singularidade afetivo/ emocional. Esta carece de liberdade e de expressão. E o homem está para além da sua alma (cativa) ou das suas conformidades culturais.

Para nos ajudar a entender este paralelo entre alma e espírito, Kieslowski alinhava os dez episódios pela paixão, tradição, medo, lógica, religião, ética... Cultura. Faz isto através dos seus personagens comuns (O cão morto, o pai do menino prodígio, o médico, o casal, o carteiro...) permitindo a comunicação entre eles e as “mazelas” de suas almas.  Mas ele também nos permite a existência de outro personagem que está em todos os episódios (só não vi no ultimo); um rapaz loiro, que não sofre, não trama, não fala, não se submete às paixões, mas está vestido, participa das aulas, viaja, enfim, está como nós, mas não está preso às nossas paixões ou à nossa ética. Podemos elucubrar que o sentido da vida está para além do entendimento psíquico (alma) ou lógico. E que o espírito (que é livre das amarras culturais e anímicas) nos revela algo mais sobre nós.  


Por Bianca Siqueira