terça-feira, 30 de novembro de 2010

Kinatay e o culto aos gênios fabricados


A crítica de cinema parece viver constantemente em busca de um novo gênio, de um olhar que seja diferente, que fuja da mesmice atual que muitos gostam de relacionar a centenária arte do cinema. Reducionismos à parte, esta busca é sintomática, pois revela uma necessidade, mais da imprensa cultural do que precisamente de quem está preocupado com o presente e o futuro do cinema, até por que cineastas alçados muito rapidamente ao panteão dos “gênios” são descartados com similar velocidade, para darem lugar ao próximo, neste círculo vicioso. Exemplo: o homem da vez é o vencedor da última Palma de Ouro, Apichatpong Weerasethakul, incensado como se fosse uma lufada solitária de originalidade, por seu cinema metafórico, lúdico e cheio de símbolos. Concordâncias ou discordâncias à parte (pauta para um novo post), não demorará muito para que o tailandês dê lugar ao próximo, feliz ou infelizmente. 

Há alguns anos, o filipino Brillante Mendoza era o homem da vez, o emergente que salvaria o cinema do “monstro do conformismo e da gula mercadológica de Hollywood”. Resolvi, é claro, movido pelos elogios e pela curiosidade que eles despertaram em mim, assistir Kinatay, um de seus filmes mais controversos pelos olhos dos críticos que cobriram os festivais onde ele foi exibido. Não há como avaliar toda carreira apenas por um filme, mas o impacto, ou a falta de, que Kinatay causou em mim, provocou esta reflexão sobre  a necessidade que alguns têm de encontrar o novo “gênio do cinema”.

Dizer que Kinatay é ruim, seria fechar os olhos para as evidentes qualidades do filme. Ele inicia com um casamento (que me remete ao expediente de alguns filmes de Claude Chabrol), e depois enfoca o noivo em seu envolvimento com o crime local, na “missão” de acompanhar o corretivo dado pelo tráfico em alguém que não cumpriu seus pagamentos. Brillante trata da perda da ingenuidade do protagonista, por meio de seu olhar, testemunha de algo hediondo, que nunca mais será o mesmo. É como se o cineasta, num ideário pautado pela crítica social, fizesse da transição do momento de luminosidade e alegria (casamento) para os sombrios e tensos momentos do crime (o esquartejamento de uma prostituta), uma espécie de elegia a sociedade filipina, vítima de sua própria condição. O filme tem clima, é tenso e, em determinados momentos, passa esta tensão ao espectador.    

Aí chegam os problemas. Os planos de Mendoza soam artificiais, e a câmera na mão, onipresente, mais atrapalha do que ajuda. Mesmo quando procura nos chocar (por mais que negue esta procura), Brillante parece pudico, “cheio de dedos” em mostrar o que está acontecendo. O filme, ou melhor, as cenas de tortura e mutilação, ficam no meio termo entre o gore e o sugerido, não se decidindo por qual linha seguir. Mendoza foi aclamado por muitos como corajoso e inventivo, mas a rigor, seu filme, longe de ser ruim ou algo que o valha, é um exemplar até certo ponto comum, maquiado por algumas cenas mais fortes e pela linguagem documental que a câmera trepidante e inquieta tenta emular.

Brillante Mendoza tem talento, isto é inegável, e Kinatay me despertou curiosidade sobre seus outros filmes, mas irei vê-los, assim como vi este,  não como quem busca presenciar a gênese de uma revolução cinematográfica, mas com o olhar ciente de que no cinema, e em qualquer outra arte, são mais corriqueiros os ídolos fabricados, do que os gênios de fato e de direito.
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Ps.: Quando relacionei um aspecto de Kinatay a Chabrol, por conta da cena inicial do casamento, fiquei pensando se o fato de os casamentos de Chabrol serem envoltos em festas, com direito a bolo, celebração e tudo mais, e o mostrado no filme filipino ser tão precário, coletivo, comemorado de maneira informal em um restaurante, seria deliberadamente uma tentativa de reforçar o caráter miserável do entorno, por meio desta paralelização do cinema filipino (terceiro mundo) com o cinema francês (primeiro mundo). Seria um exemplo da eterna “síndrome do coitadinho”, que volta e meia permeia alguns registros da arte de países subdesenvolvidos? Fruto da minha cabeça? Pode ser.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

O Equilíbrio das Boas Opiniões


Entreguei-me de corpo e alma (e quando viu, lá se foi o primeiro clichê) à tarefa hercúlea de ler as edições fac-similares da revista Filme Cultura, tão importante instrumento de referência cinematográfica de outrora, que foi recentemente reativada, tendo este belíssimo lançamento (da versão fac-similar) como marco de reinício. São lindos livros, cada um dos cinco, compilando doze edições da revista, num texto miudinho, o que significa que as mais de 4000 páginas render-me-ão um bom tempo junto às personalidades nacionais do pensamento cinematográfico das décadas de 60 a 80, período em que a revista sobreviveu, passando pelas turbulentas eras em que o Brasil estava inserido, tanto no campo político como no social.

Tenho certeza de que tal leitura enriquecerá, e muito, minha percepção acerca de alguns filmes, ou mesmo de fenômenos ligados ao cinema, neste caso à guisa das épocas, no frescor dos acontecimentos, sob a jurisdição de quem era farol deste tipo de análise em idos tempos. Onde mais poderíamos encontrar uma entrevista de Stanley Kubrick quando do lançamento de 2001 Uma Odisséia no Espaço? Em período cibernético, não há de se duvidar de nada, mas em papel, sentindo o peso da edição e o contato com as palavras de maneira quase física, duvido muito que se tenha semelhante oportunidade.

Imagino que muitas leituras me levarão a reflexões, que se configurarão posteriormente em posts por aqui, em parte pela minha tendência ao devaneio, em outra por conseguir pinçar, entre um artigo e outro, entre uma análise fílmica e outra, algo que julgo merecer a atenção de quem por aqui se abastece de alguma forma. Algo que me chama a atenção no momento, é uma enquete realizada, paulatinamente a cada edição, sobre a visão dos críticos a respeito do Cinema Novo, o maior movimento (escola?) cinematográfico que o Brasil já gestou. Uma coisa é ter uma opinião agora, olhando retrospectivamente, buscando um contexto e, tendo visto os filmes, analisar o Cinema Novo e achar para ele um espaço na história mundial do cinema. Outro assunto é ler como estes críticos viam os cinemanovistas e suas obras, no calor de seus lançamentos, influenciados ainda pelo ambiente social da nação naqueles claudicantes tempos.

As opiniões, como costumam ser, independente do assunto, são as mais variadas possíveis, e são, também como de costume, geralmente extremadas. Há de se entender que o Cinema Novo sempre foi taxado “de esquerda”, por mostrar as mazelas do Brasil, os menos favorecidos, ao passo que demoniza o capitalismo, o fazendeiro, ou mesmo as relações opressoras de trabalho, que fazem do pobre cada vez mais pobre e do rico cada vez mais afortunado. Na época, e falamos da década de 60, o Brasil vivia um clima político muito acirrado, e este entorno certamente influenciava as opiniões acerca do Cinema Novo, conforme a posição política do analisador. Nota-se que alguns críticos acolhem o movimento, certamente por seus méritos, mas muito pela afinidade com esta visão de esquerda, sendo também o contrário verdadeiro, e certamente mais gritante, com os detratores sendo cegados às qualidades dos filmes inseridos no Cinema Novo, pelo simples fato de eles expressarem uma visão de mundo, de política mais precisamente, que ia de encontro com a sua. É mais ou menos o que se observou recentemente nas opiniões sobre Tropa de Elite, polarizadas entre gente que o achou fascista e gente que encontrou nele, além de signos cinematográficos interessantes, uma resposta aos anseios do povo, farto da não segurança das grandes metrópoles.

Nem todas as opiniões são extremadas, e é justamente nelas que me apego com mais vigor, quando delas me aproprio para construir minha própria, pois nestes julgamentos vejo o equilíbrio necessário para qualquer construção sadia e menos afetada. É certo que uma obra, e o cinema não é diferente, tem de ser vista por diversos ângulos, não só os que lhe são intrínsecos, mas também os que lhe fornecem base e elementos, mas há de se convir que quanto menos contaminada por questões que costumam cegar o homem (como posturas radicais, sejam elas políticas e religiosas, só para citar dois exemplos), mais qualificada será a opinião manifestada, pois dela se conseguirá extrair não só a análise em si, mas também uma visão plural, ampla, sem espaço para chapas brancas e painéis monocromáticos, sem que nela sejam vistos panfletos originários de olhares cansados e/ou pouco generosos.

domingo, 14 de novembro de 2010

Guerra dos Mundos - A Invasão sonora



Olá, caro amigo-leitor!

Depois de longo hiato sem comparecer de forma efetiva no blog, postando algo, mesmo com valor pequeno, aqui estou, não em carne e osso, como geralmente são as aparições naturais, as que tem sua origem no mundo em que vivemos, mas em ideias e reflexões que envolvem um assunto, ou melhor, uma realidade tão comum na contemporaneidade: a democracia sonora, a qual explode em expressão na onda de celulares com MP3.

Não é de hoje, contudo de pouco tempo passado, que os aparelhos celular têm na comunicação falada sua atratividade menos explorada, quando jogos, interatividade, câmeras fotográficas cada vez mais potentes e, por aí vai, usam da publicidade e de outros meios de divulgação no objetivo de gerar venda e lucro aos envolvidos. Tudo bem, não serei hipócrita e nem dissimulado, um aparelho que permita mais de uma função além da que intrinsecamente proporcionaria é louvável, porém quando o foco se estabelece no periférico, motiva justa reflexão.
Bom, talvez o que mais agrida minha individualidade, acredito que a de outros tantos semelhantes à pessoa que vos fala, é o MP3 sem fone, utilizado arbitrariamente como caixa de som. Diferente da atividade sonora ambiente, que, geralmente, condiz com a concepção do lugar onde escolhemos estar. Não, é uma salada de frutas sem o mínimo de coerência, indo de pagode, funk à música pop internacional mais rápido do que uma Ferrari em uma reta nula de obstáculos faria. O que essas pessoas possuem contra o fone?

A música é extremamente banalizada, sendo que na condição de arte, teria de atender uma necessidade individual ou coletiva, não simplesmente invadir nosso aparelho auditivo, a solicitação de licença inexistente. O ônibus é, indubitavelmente, o pior local, pois não há flexibilidade de escolha, onde nosso caminho vai de “A” à “C”, o que nos resta é engolir ou tentar ao menos distração, talvez utilizando ironicamente fones de ouvido, numa espécie de protesto calado, em relação ao indivíduo que nos acompanha até “B”. Quando este ponto chega, ai que alívio. Mas, logo outro ser disposto à invasão surgirá. Aguarde e verá. Ops, aguarde e ouvirá, mesmo sem o querer, no melhor estilo Alexandre, O Grande.

Até mais.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Quando reis são substituídos

O nome dela era Molly, e em algum momento de 2003 ou 2004 eu conheci sua câmara. Pareceu-me impossível não ceder e me contagiar com Molly's Chambers, primeiro single da até então desconhecida banda Kings of Leon. Assisti ao videoclipe da música, repleto de zooms e enquadramentos frenéticos, numa de minhas tardes juvenis regadas à MTV e guloseimas calóricas – e foi como descobrir o Santo Graal ou um congênere.

Pouco tempo depois os cabeludos e nada asseados “Reis de Leon” surgiram com Califórnia Waiting, quando garantiram lugar no meu panteão de deuses do rock. Olhando em retrocesso, no entanto, tal afirmação soa exagerada e precoce – porém não se deve creditar muita validade nas máximas de um jovem de 16 anos. De qualquer forma, permaneci fiel ao som dos rapazes de Tennessee, que com seu southern rock continuaram me agradando nos anos seguintes, ainda mais após o lançamento dos álbuns Aha Shake Heartbreak, meu favorito (que inclui as fantásticas Slow Night, So Long, King of the Rodeo, The Bucket e Milk), e Because of the Times.

Em 2009 minha relação com Kings of Leon foi posta a prova após Only by the Night. O quarto disco dos Followill me soou estranho, dissonante à seus trabalhos anteriores. Ainda que Sex on Fire continuasse me empolgando após algumas audições, o álbum em geral me soava correto demais, assim como os vocais de Caleb e suas guitarras somadas às de Matthew. Com o show da banda no recente SWU a constatação de que o reinado deles não deveria durar muito me pareceu inevitável. Impressão que se confirmou com o recém lançado Come Around Sundown.

Com Come Around Sundown o Kings of Leon inaugura uma nova vertente em sua sonoridade, aque pode ser classificada como “clean rock”. Ainda mais que em Only by the Night, os Followill entregam composições lineares, pouco inspiradas e, em alguns casos, até mesmo chatas. Analisando a trajetória da banda com maior atenção, ouso em dizer que houve uma clara ruptura que a descaracterizou, uma linha que hoje a divide entre dois grupos distintos – o que pode ser percebido até mesmo no visual de seus integrantes. Ouso novamente em indicar que a ruptura sonora, esta linha divisível que mencionei, se chama Use Somebody.

De qualquer forma, sigo admirando o Kings of Leon – mas me refiro àquele grupo que para mim morreu em Because of the Times. No entanto, a coroa que uma vez entreguei à esses monarcas agora pertence ao Kings of the Convenience, duo de indie folk norueguês que um estimado Duque me apresentou. Não que a sonoridade desses auto-proclamados reis seja semelhante ou que se possa traçar algum paralelo entre ambos, porém o Kings of Convenience mantém através de seus álbuns algo que o Kings of Leon perdeu já tem algum tempo. A autenticidade.

sábado, 6 de novembro de 2010

O Direito de Morrer


O título já diz, e eu realmente não conhecia Jack, pelo menos não da maneira como o filme You Don’t Know Jack me mostrou a figura do Dr. Jack Kevorkian, alcunhado de Dr. Morte. É claro, não é somente a imagem que o filme passa que ficará em mim, que pautará minha opinião sobre esta figura tão controversa e sobre o tema que ele defendia, tão ou mais controverso quanto. Ele denfendia a eutanásia, o direito à liberdade de escolha do momento de se morrer. Cinebiografias geralmente endeusam seus objetos de foco, os tornam mais planos e menos dotados de arestas, até para que se estabeleça empatia entre o mesmo e o público. Por isto não devemos apenas guiar nossas opiniões acerca de alguém, ou de algo que este alguém defendia, após assistir a um filme destes. Não há como negar, porém, que You Don’t Know Jack dá uma perspectiva interessante, instigante e eu diria até iluminadora, sobre quem era Jack Kevorkian, sobre o porquê deste homem ter desafiado o sistema, a suprema corte e a opinião pública, por conta de sua convicção de que todos têm o direito de viver e morrer da maneira como lhe convirem.

You Don’t Know Jack foi desenvolvido pela televisão, é portanto um telefilme, mas que não se venha com aquele discurso pronto de que “só na televisão poderia se abordar um tema como este, com tal complexidade”. Não há nada em You Don’t Know Jack que não pudesse ser discutido numa sala de cinema, das convencionais. Talvez tivesse mais dificuldade de encontrar um público disposto às suas mais de duas horas de contestação, mas qual é, senão este, o desafio dos filmes que vão além do senso comum? O que importa é que é um filme legítimo, independente da maneira como foi exibido a priori. É um exemplar daqueles que gravitam em torno de seu protagonista, aqui brilhantemente interpretado por Al Pacino, que após muitos trabalhos anêmicos, no automático, volta a nos brindar com a pulsão dramática que fez dele, em idos tempos, um dos mais talentosos atores do cinema americano.

You Don’t Know Jack mostra o homem contra um sistema reacionário. Ele enfrenta mundos e fundos pelo progresso, contra as crenças e as desgastadas leis que limitam o humano, que fazem dele apenas massa de manobra, numa sociedade cada vez mais uniforme. Ser contra ou a favor da eutanásia é mais do que uma questão religiosa, mais do que acreditar-se pecador ou não, e era a favor desta expansão da discussão popular que ele trabalhava e, por que não, militava. Jack Kevorkian era um homem de personalidade complexa, um artista que acreditava no humanismo de sua prática médica. Ele desafiava a igreja e seus dogmas, as leis e suas brechas, não apenas por se achar acima de qualquer Deus ou da força da sociedade, mas por crer que ninguém tem o direito de sufocar a individualidade e perpetrar o sofrimento, em nome do que quer que seja.

Não há grandes inovações cinemáticas em You Don’t Know Jack, não há quebra de linguagens ou algo que o valha. Há, porém, uma história contada de maneira clássica, por um bom diretor artesão, Barry Levinson, que não se crê maior que a trajetória ou seu personagem central. Há um intérprete em estado de graça, e a busca pela complexidade, tanto da personalidade do Dr. Kevorkian, como do tema que ele defendia. Geralmente é mais fácil elogiar um filme quando suas qualidades são mais evidentes, ou quanto ele reza pela cartilha do chamado “cinema de arte”. Mesmo que, inevitavelmente, o filme tome partido da causa de Kevorkian, não há como negar que a discussão acerca da morte assistida e a maneira fascinante como ele, Kervokian, é mostrado, fazem de You Don't Know Jack um filme, no mínimo, desafiador, que frente a um espectador disposto, dificilmente passaria despercebido numa sessão de TV ou mesmo numa sala de cinema.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O Ás na Manga de Billy Wilder


Não se pode passar incólume ante um filme como A Montanha dos Sete Abutres. Recentemente muito comentado por conta do acidente com os mineiros chilenos (guarda semelhanças, pois trata da história de alguém que ficou preso nos escombros de uma montanha), este filme de Billy Wilder, um mestre, dos maiores que já filmaram em Hollywood, também é comumente associado ao jornalismo, profissão do protagonista, e do próprio Wilder antes que trabalhasse na indústria do cinema. Não se faz uma faculdade de jornalismo sem que veja ou, no mínimo, se ouça falar do filme, por sua abordagem da ética jornalística, matéria tão em falta nas coberturas que vemos por aí. Mas seria redutor, do meu ponto de vista, taxar A Montanha dos Sete Abutres somente como um magnífico exemplo da má conduta de alguém ávido pela notícia. O filme é mais que isto, bem mais.

Por meio da figura de Tatum, o jornalista brilhantemente trazido à vida pela interpretação de Kirk Douglas, podemos desenvolver uma série de leituras, expediente comum quando se busca a análise dos personagens de Wilder, aparentemente simplórios, mas dotados de uma complexidade ímpar, como poucos escritores de cinema conseguiram criar e outros poucos diretores conseguiram evidenciar. O homem fracassado que busca emprego de maneira confiante (externamente), por conta da falência de suas anteriores tentativas, que nada tinham a ver com seu talento para a profissão, e sim com escorregões de conduta e/ou desvios morais, é aceito numa pequena comunidade, alheia a vida que sempre desejou em meio às metrópoles e a efervescência das notícias. Em pouco tempo ele fica aborrecido e vê na primeira oportunidade concreta, a possibilidade de mudar de vida, de crescer, de ser mais. Este comportamento encontra um duplo na mulher do soterrado, que já não dispondo mais de amor pelo mesmo, acha na tragédia de seu ainda cônjuge uma possibilidade de enriquecer e também mudar de vida, sair do buraco interiorano onde vive.

Voltando a questão ética, tão falada nas faculdades de jornalismo que se apropriam de A Montanha dos Sete Abutres como exemplo, ela é mostrada, ou melhor, registrada como ausente, não só na figura da imprensa, facilmente identificada com abutres em busca da carniça (aliás, nas palavras de Tatum, notícias são as más, as boas nem podem ser chamadas de notícias), mas também em muitos outros personagens e situações que evidenciam esta praga (a falta da tal ética) que corrói a sociedade. A família que passa as férias em frente a montanha, a exploração do comércio e turismo ligados ao fato, o xerife que busca se reeleger construindo uma falsa imagem heróica (e é genial a história de ele alimentar um bebê de serpente de vez em quando, numa das metáforas mais fortes do filme), enfim, tudo que gira em torno do drama torna evidente esta falta de ética que parece instaurada no consciente coletivo, quase como que inerente ao humano.

A Montanha dos Sete Abutres é, portanto, mais do que um manifesto pelo bom jornalismo, utilizando para isto um exemplo quase que extremo de mau profissional. Poderia muito bem ser uma narrativa maniqueísta, nesta mania de enquadrar bons e maus, e colocá-los em lados totalmente opostos, sem espaços para nuances. Mas não podemos esquecer que, além de ter sido feito em tempos nos quais Hollywood abundava de talentos e era ponto de partida de verdadeiras obras-primas, o roteirista e diretor é Billy Wilder, um dos grandes, um “samurai”, como costumamos denominar carinhosamente entre amigos os grades diretores, aqueles cujas obras passam da tela para a eternidade. A Montanha dos Sete Abutres é uma das realizações que fazem de Wilder um diretor atemporal.