domingo, 27 de dezembro de 2009

Preciosa

Direção: Lee Daniels
Roteiro: Geoffrey Fletcher, baseado no romance escrito por Sapphire
Elenco: Gabourey Sidibe, Mo'Nique, Paula Patton, Mariah Carey, Sherri Shepherd, Lenny Kravitz, Stephanie Andujar, Chyna Layne

Outro dos postulantes a êxito na próxima festa da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas no Kodak Theatre, por seu desempenho nos festivais pré-Oscar e seu sucesso entre crítica e público estadunidense, Preciosa é um drama, um filme de pequeno orçamento, que trata da vida sofrida de Claireece Precious Jones. Não é simplesmente uma trajetória sofrida como a de muitos casos reais transformados em narrativas diegéticas (sim, Preciosa é baseado num livro que, por sua vez, é fundamentado numa história verídica), mas uma das mais sofridas, daquelas que se não soubéssemos ser galgada em fatos, sairíamos a disparar contra seus autores, acusando-os de inverosimilhança. A lista de agruras pelas quais Claireece passa durante sua vida é imensa, mas esmiúçá-la traria a ira do leitor que ainda não viu o filme, pelo fato do simples adiantamento destas informações configurar-se numa abstração de descobertas que, gradativamente, constroem o filme.

Atrevo-me a relativizar a recepção exacerbadamente calorosa que Preciosa vem tendo em inúmeras resenhas por aí. Colocar em cena uma excluída social, sofrendo por conta de um destino, no qual nada pôde escolher, se configura, por si só, em elemento de aproximação com o espectador, que sente logo empatia e pena dela. Neste filme, esta força natural tira da atriz principal o fardo de ser convincente, já que sua presença física, pura e simples, mortifica e cria uma atmosfera que, tal como uma bruma, disfarça a atuação de Gabourey Sidibe, que se limita ao automático, bem ao contrário de, por exemplo, Mo’Nique, que interpreta fortemente a mãe de Claireece, no papel mais complexo e interessante de Preciosa. Lee Daniels parece ter caído na armadilha de fetichizar um pouco demais a imagem de sua protagonista, esvaziando os entornos, ou os estereotipando. A utilização de velhos clichês como a professora que luta pela salvação da aluna, a funcionária do serviço social que serve de válvula de escape, numa representação do papel do Estado e da maneira como ele trata, ou deveria tratar, os menos favorecidos, não chega a incomodar, por mais que salte agressivamente aos olhos, vez ou outra.

Mesmo que fale sobre uma vida de percalços, privação e extrema falta de oportunidade, Preciosa sofre de uma alienação incômoda, que desvia um pouco o foco. Algo não ajuda no desenvolvimento do filme, certas opções, principalmente do roteiro e direção, resolutos em nos deixar penalizados, paradoxalmente ao mesmo tempo em que atenuam alguns dramas por meio da curta duração de sua exploração, trazendo ao filme uma leveza mais próxima dos contos de fadas, ainda que o que discorra na tela seja algo monstruoso. Nada contra a abordagem “conto de fadas pelos olhos da Gata Borralheira”, só que, estilizando a caminhada de Claireece na luta contra seus problemas ou mesmo na busca de coisas normais, como um namorado, boa condição de vida para si e seus filhos, o diretor Lee Daniels criou uma narrativa correta, mas que peca por uma edulcoração velada, uma suavização travestida de opção estética, que chateia pelo falsete. Preciosa é um bom filme, não nos furta ótimos momentos, mas falha no intuito de ser maior e melhor, exatamente por não se deter com paixão ou mesmo crueldade em quase nada, se mostrando um rascunho, uma versão meio que oca da existência desta mulher que personifica o mundo-cão.


quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

A Torre de Vidro

Desta vez eu tomei a liberdade de tirar um tempo e criar um texto para o antológico longa-metragem Inferno na Torre (1974). O que falar de um filme-catástrofe, com mais de 2h30min, que gira em torno de apenas um edifício que pega fogo? Clichê total? Talvez sim, talvez não. Podemos falar muita coisa: além de ser um dos precursores do gênero, e daí podemos citar também Aeroporto, O Destino do Posseidon, Terremoto, entre outros, ele traz em seu elenco estrelas de primeira categoria dos idos tempos em que fazer cinema não era apenas ter como protagonistas caras bonitas, mas interpretações “fortes”. Dirigido por John Gullerman e produzido por Irwin Allen, o prédio mais alto do mundo, que é um testemunho arquitetônico para a ingenuidade e para a inovação – o prédio também é a armadilha mais mortal que existe – leva aos seus ambientes, entre os 135 andares, nomes como os de Steve McQueen, Paul Newman (Brad Pitt da época), William Holden, Faye Dunaway, Fred Staire, Richard Chamberlain, O.J.Simpson e Robert Wagner. Uma década em que se concentravam nos sets nomes estelares da sétima arte. Só isso já basta para dar uma conferida, sem falar nos figurinos (as mulheres de longos coloridos e os homens de smoking com suas borboletas gigantes). Lógico que não podemos comparar Inferno na Torre com os atuais filmes-catástrofe, como O Dia Depois de Amanhã, ou mesmo 2012, que utilizam de recursos digitais para fazer o espectador ir além daquilo que realmente ele está vendo. Se você que ainda não assistiu correr à locadora para pegar, poderá sair um pouco decepcionado, uma vez que os efeitos especiais, como dito antes, comparado com os de agora, são praticamente toscos. Mas para quem conferiu em seu lançamento, sem dúvida alguma, vale a pena rever. Até porque, cinema é assim mesmo e confesso cá com os meus botões: nada como ter visto Inferno na Torre no escurinho do cinema Guarany – hoje o banco Banrisul na Marquês do Herval, em Caxias do Sul - que levou às suas telas filmes como este, de tirar o fôlego. Eu aplaudo esta estrutura metálica transformada em um verdadeiro inferno.

Raulino Prezzi, especial para o The Tramps

domingo, 20 de dezembro de 2009

Avatar


Olá, caro amigo-leitor.

Domingo, nas vésperas do Natal, calor escaldante para os padrões caxienses de temperatura, Marcelo, meu irmão e contribuinte mais assíduo deste blog, e eu fomos assistir Avatar, o mais novo exemplar da filmografia do diretor canadense James Cameron.

Jake (Sam Worthington), paraplégico e ex-fuzileiro naval das forças armadas norte-americanas, é convidado à expedição ao planeta Pandora, em busca de um minério altamente valioso devido ao potencial energético deste. A atmosfera do local é tóxica aos terráqueos, então foi criado o "Projeto Avatar", onde o DNA humano é misturado ao dos nativos humanóides, os Na’vi, dando origem a uma espécie de receptáculo de consciência controlado à distância - avatar, utilizado por alguns componentes responsáveis por estudos, sobretudo biológicos, do planeta.

Não gostaria, mas serei breve, devido às palavras que me fogem. Avatar inicia meio truncado, talvez com excesso de explicações diretas, que não fluem de forma orgânica com os diálogos que se entrelaçam. Didatismo direcionado ao público, sem muita maquiagem. As engrenagens da trama começam suas atividades na cena em que Jake tem sua consciência pela primeira vez em seu avatar. Comovente sua reação pueril, tendo em vista a anulação de qualquer limitação física no tido mundo real, no seu mundo. O personagem centro da trama negligencia mais a cada minuto sua realidade sobre a cadeira de rodas, conforme se relaciona de maneira afetiva com uma das tribos de Pandora.

O visual mereceria um post solo, tamanha sua qualidade. Gollum, personagem digital de O Senhor do Anéis, que há poucos anos impressionou à todos, vira esboço perante o trabalho desenvolvido em Avatar por Cameron e a Weta Digital, responsável pelos efeitos visuais de ambas as produções. As imagens oferecidas pelo diretor de Titanic são exuberantes e icônicas.

Logo que houve o lançamento do trailer, alguns o apontaram como trabalho da Pixar, famigerada produtora de animações de altíssima qualidade em 3D. Os que temem isso, ou até mesmo algo tecnicamente perfeito e oco como cinema, podem se acalmar. Cameron conseguiu convergir o apelo popular à qualidade artística. O roteiro, bem amarrado, não conta com inovações, segue, inclusive, narrativas que o antecedem. A surpresa é rara durante a projeção e um pontilhado a frente indica o rumo que a película tomará em seu tempo restante. A segregação racial, a mensagem ecológica são passadas por metáforas claras e óbvias. Porém, nada disso atrapalha. A teia formada pela relação estabelecida entre os Na’vi e o meio em que vivem é fantástica. Uma conversação seria mais adequada no garimpo de interpretações, ao contrário de uma via unilateral, que é o que temos, neste espaço, apesar do campo de comentários que nos fornece uma resposta não imediata.

De qualquer maneira, Avatar é um grande filme, pode se orgulhar do título efêmero de melhor de todos os tempos, que não é tanto assim, se levarmos em conta a ainda infância da mídia, no quesito efeitos visuais, contudo, não é só. Enfim, basta torcermos para que sigam em tal toada suas sequências, então teremos uma franquia que os amantes do cinema aguardam e merecem.



Abraçosss

sábado, 19 de dezembro de 2009

35 Doses de Rum

Direção: Claire Daines
Roteiro: Jean-Pol Fargeau e Claire Denis
Elenco: Alex Desças, Mati Diop, Nicole Dogue, Grégoire Colin, Jean-Christophe Folly, Djédjé Apali, Eriq Ebouaney, Julieth Mars Toussaint

Tendo o hábito de ler críticas de cinema, às vezes nos deparamos, num texto aqui outro acolá, com um crítico dizendo que certo filme “vai crescendo após a projeção”, ou seja, que ele vai melhorando depois que acaba, quando o espectador assimila o que viu. Os que acusam estes críticos de pedantismo têm a visão estreita de que este é o tipo de argumento inválido, ou seja, que ou se gosta de um filme durante a audiência do mesmo ou não se gosta, sendo a percepção imutável. Estes, os que não dão valor ao crescimento da percepção a cerca de uma obra depois do contato, provavelmente não procuram algo mais do que entretenimento, ou mesmo não sacrificam seus preciosos minutos para “divagar” sobre os efeitos que um filme pode provocar. Acredito piamente que o cinema, quando compreendido como expressão artística, contribuinte da nossa formação humana, não se limita ao tempo de duração de seus filmes.

Tudo isso para falar de 35 Doses de Rum, filme francês, dirigido pela experiente Claire Denis que, em mim, se configurou exemplar, se levarmos em conta o primeiro parágrafo deste texto. Daines desenvolve sua narrativa em um aparente fiapo de história, envolvendo um pai, uma filha, uma vizinha que é taxista, um vizinho meio que perdido na existência e um colega de trabalho do primeiro, que acaba de se aposentar e vê sua vida meio que perder o sentido. O desenvolvimento é lento e gradual, numa daquelas narrativas das quais somos cúmplices, pois vamos acompanhando a evolução da história e a edificação das relações entre os personagens, aos poucos fazendo as conexões necessárias para entender o porquê dos olhares perdidos, as motivações de uma ou outra atitude intempestiva e as implicações das relações. Daines despoja seu filme de qualquer sentimentalismo barato, até mesmo quando há uma cena de forte impacto emocional, as lágrimas são contidas, rebaixadas num confronto com a realidade, na qual, geralmente, não as vertemos aos cântaros.

35 Doses de Rum é forte porque se estabelece nas conexões, na maneira como os personagens se ligam, ou tentam se ligar, uns nos outros. Não somos inundados de explicações, cenas do passado que auxiliam na tarefa de construir o filme, aqui as sutilezas são pontuais. Uma carta da qual podemos ver um pedaço, uma palavra aparentemente solta, uma situação que parece destoante, uma reação inesperada, é assim que ele se constrói, principalmente sobre a relação entre Lionel (interpretado com uma veracidade dolorosa por Alex Descas) e sua filha, no casulo com o qual se protegem, no qual ambos procuram a felicidade, na distância segura que mantém de outras relações sentimentais.

35 Doses de Rum é um filme que cresce após a sessão pela opção narrativa da diretora, que nos dá a oportunidade de revelá-lo aos poucos. Isso não quer dizer que a fruição do mesmo não seja intensa quando o estamos vendo, mas ele realmente cresce porque fica conosco, e esta reverberação vai nos revelando coisas que enriquecem a experiência. Dá gosto uma visão tão sensível como a de Daines, que nos oportuniza uma experiência como esta, na qual somos convidados a investigar sentimentos, não exatamente buscando respostas definitivas, pois elas não existem quando falamos de humanos e do que eles sentem.


quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Dexter e o Passageiro

Atenção! O texto a seguir contém spoilers das quatros temporadas de Dexter.

Dexter
é meu seriado favorito. Alguns amigos já me disseram que eu adoraria outros, como, por exemplo, House, Ugly Betty, True Blood, The Office, Mad Men, entre tantos desta leva riquíssima que iça a qualidade da televisão americana e, por conseguinte, da televisão mundial, se levarmos em conta que quase todos estes são ou serão importados para os quatro cantos do mundo. Devido à falta de tempo, acabo tendo de racionar minha audiência, escolhendo, neste momento, duas séries, das quais sou fã de carteirinha: LOST e Dexter. Não poderiam estas serem mais diferentes entre si, tanto na sua temática como no seu desenvolvimento. Enquanto LOST instiga (e a mim instiga muito) por uma série de desdobramentos, que envolve desde viagens no tempo até influência da mitologia egípcia, Dexter me fascina pelo estudo do personagem, no caso de um personagem dos mais complexos, Dexter Morgan. Criança que viu a mãe ser esquartejada, adotado por um policial que logo o “diagnosticou” como hospedeiro de um “passageiro negro”, analista forense que assassina criminosos impunes para alimentar o tal passageiro, pai de família.

A primeira temporada de Dexter é primorosa. A caça ao “Assassino do Caminhão de Gelo”, as implicações da ligação do passado do mesmo com o de Dexter e toda tensão e violência do final da temporada, são elementos que deixaram tarefa ingrata aos produtores, já que a impressão causada pedia uma continuidade à altura. No segundo ano, Dexter passa por períodos de turbulência, trai a namorada, coloca em risco suas ligações sociais, busca ajuda para seu vício em matar, encontra uma pessoa tão ou mais perturbada psicologicamente que ele, a quem acaba liquidando, como catarse. Dexter procura alguém que o compreenda, que entenda seus lados, na busca de aceitação. Os personagens secundários são muito bem desenvolvidos, seus dramas pessoais, muitas vezes, se configuram numa ferramenta de enriquecimento da figura central, sem que isso tire a importância individual deles. Na terceira temporada, a busca de Dexter por aceitação se intensifica e ganha contornos de aparente sucesso quando encontra alguém que parece lhe compreender, não se horrorizar com seu lado negro, e até compartilhar de sua necessidade de matar. Mas como Dexter logo descobriu, lidar com as implicações psicológicas do ato de matar não pode ser assimilado por qualquer um, e o fascínio mórbido exercido pela morte foi tão devastador em seu “amigo” que o mesmo saiu do controle, não obedeceu a nenhum código e teve de sucumbir pelas mãos do mestre a quem não soube ouvir.

E aí chegamos a quarta temporada, na qual já vemos um Dexter casado, pai de três filhos, sendo um biológico e dois que herdou ao casar-se com Rita. Dexter então é um americano aparentemente comum ou, pelo menos, vive o dia-a-dia como pai zeloso, marido um tanto quanto ausente, assimilando de maneira profunda esta nova condição, a de homem de família. O esquema do antagonista principal das outras três temporadas é mantido, mas as implicações da existência deste personagem para o desenvolvimento da história de Dexter são tão fortes que somente podem ser equiparadas, em equivalência, às do “vilão” da primeira temporada. Dexter encontra um assassino em série, ligado em um padrão, que tem uma família, responsabilidades sociais que o ajudam a encobrir o monstro interior, exatamente como ele nesta fase de sua vida. Dexter então vê em Arthur, o adversário em questão, um farol, alguém com quem pode aprender sobre a administração destas vidas paralelas. A temporada se desenvolve neste aprendizado, na relação que se estabelece entre Dexter e Trinity (Arthur). A evolução do personagem central da série foi gigantesca a partir desta relação e da constatação, tanto do público quanto dele próprio, de que Dexter não é tão diferente da maioria das pessoas, a não ser pela necessidade que tem de usurpar a vida de outros. Ele se vê arriscando suas caçadas em nome do bem-estar de sua família, numa crescente aceitação de seu lado humano, diferente do Dexter da primeira temporada, que se achava quase que órfão de elementos humanos. Estava indo tudo bem, a temporada ia se alinhando como uma das melhores (na verdade é a melhor desde a primeira) e seguindo para um desfecho ambiguamente feliz, parecido com o da terceira temporada, quando veio o décimo segundo e último episódio do quarto ano ou, mais precisamente, seus três minutos finais. Nestes, aproximadamente, 180 segundos aconteceu um fato que, de tão brilhante, parecia improvável. Confesso que o ocorrido me tocou demais, fiquei mortificado, com uma sensação pesada, dolorosa. Não se tratou, pura e simplesmente, de segurar a audiência para a quinta temporada, mas sim de dar uma guinada completa, tanto na história como na continuidade do personagem central. Ainda reverberam em mim aqueles minutos, e eles ecoam a seguinte pergunta: E agora?

domingo, 13 de dezembro de 2009

Desejo e Perigo

Direção: Ang Lee
Roteiro: Eileen Chang (argumento), James Schamus (roteiro), Hui-Ling Wang (roteiro)
Elenco: Tony Leung Chiu-Wai , Wei Tang, Joan Chen, Lee-Hom Wang Kuang, Chung Hua Tou, Chih-ying Chu, Ying-hsien Kao, Yue-Lin Ko

Ang Lee, após ser cooptado por Hollywood, aliás, como sempre o mítico olimpo do cinema estadunidense fez com talentos oriundos de outras praças, poderia ter se aconchegado na confortável posição de diretor de estúdio, produzindo sob encomenda, sem grandes riscos e contas a pagar. Poderia muito bem ser este peão de opinião insípida, caso não fosse um inqueto artista, alguém que, filme após filme, vem demonstrando que é evitável a onda do “fui absorvido pelo sistema”, desculpa esta utilizada por muitos que não tem a coragem de olhar para trás e creditar à sua acomodação, os rumos insignificantes de suas carreiras. Após perder injustamente o Oscar com seu excelente O Segredo de Brokeback Mountain, no qual trata do homossexualismo sem plumas ou mesmo um olhar excêntrico, concentrando o foco no amor, independente do gênero, Lee partiu a sua terra natal, voltando as raízes orientais, utilizando, ele sim com inteligência, o prestígio que o cinema americano lhe conferiu na busca de melhores condições para expressar sua arte.

Desejo e Perigo nasceu deste retorno de Lee ao oriente, e é um filme que remete aos clássicos, afinal de contas, ele (Ang Lee) tem sem mostrado um dos mais clacissistas narradores do cinema contemporâneo. A história de jovens militantes membros de um grupo de teatro que lutam contra a ocupação japonesa na China durante a 2ª Guerra Mundial, e sua missão de neutralizar um homem, chinês colaborador dos ocupantes japoneses, a quem alcunham de “traidor”, não se submete, ou mesmo apóia, no subtexto ou, que seja, no contexto histórico, com bem fazem alguns filmes que se propõem a lançar um olhar sobre determinado período. Lee, mais uma vez, direciona seu olhar para o humano, para as vicissitudes dos sentimentos, para as maneiras, muitas vezes inexplicáveis, como o amor e o desejo afetam a vida das pessoas. É claro que há todo um contexto político na trama de Lee, e não podia ser diferente, já que o período é doloroso na história do oriente e as feridas deixadas pela ocupação ainda se refletem nas diferenças persistentes entre japoneses e chineses, por exemplo. O ponto crucial é que Ang Lee não deixa que um eventual panfleto, ou uma bandeira mal hasteada, atrapalhem, a história que ele quer contar, do envolvimento amoroso improvável entre Wang Jiazhi, atriz que trabalha disfarçada, e o Sr. Yee, o “traidor”, que tortura e mata em nome do regime de governo e ideológico que mais lhe convém.

Muito alardeadas (mais até do que as virtudes do filme) as cenas de sexo são intensas, fortes ao ponto de termos dúvida da veracidade ou não de uma ou outra penetração. Nada gratuito, vale dizer. O envolvimento dos protagonistas, que se inicia com uma inocente troca de olhares, tem o tempo suficiente para amadurecer a margem do contexto e, no momento oportuno, sair da sombra do entorno para protagonizar o filme. A favor de Lee, além de seu inegável talento e elegância de contador de histórias, existe uma belíssima reconstrução de época, não daquelas desnecessariamente opulentas e ostensivas, e também um ator magnífico, em estado de graça: Tony Leung Chiu-Wai. Definido certa vez pelo crítico Ricardo Calil como “O Marlon Brando oriental”, Tony Leung Chiu-Wai encarna com tal paixão o Sr. Yee, que é impossível não dar razão a Calil, na comparação entre Leung e um dos maiores atores de todos os tempos. Desejo e Perigo é, assim, outro excelente filme de Ang Lee, de grandes proporções, não somente pela duração (quase três horas), e muito menos pela, já comentada, reconstrução de época, mas por mostrar o amadurecimento de um artista que, como devoto da narrativa clássica, sabe muito bem equilibrar tramas principais, paralelas e subtextos, sem que um acabe eclipsando o outro.


terça-feira, 8 de dezembro de 2009

SIMPLESMENTE ELA. BETH GOULART - por Raulino Prezzi

No início da tarde do dia 25 de novembro, tive a oportunidade de bater um longo papo com a atriz Beth Goulart, que estava de passagem por Caxias do Sul com seu espetáculo “Simplesmente eu. Clarice Lispector”. Herdeira de uma família de atores consagrados, a filha de Paulo Goulart e Nicete Bruno, e irmã de Paulo Goulart e Bárbara Bruno, tem um olhar doce quando o assunto é arte. Dona de extremado talento e de simplicidade ímpar, esta grandiosa atriz, vestindo um básico vestido de cor cinza, abriu seu coração, falou de seus trabalhos e fez das duas horas de entrevista, uma conversa entre amigos, que tenho o prazer de lhes apresentar (e aplaudir) Simplesmente Ela. Beth Goulart.


1 – Qual foi o processo criativo para chegar ao espetáculo “Simplesmente eu. Clarice Lispector”?
Começou com o processo da pesquisa. Foram dois anos de muita leitura. Li muitos livros biográficos e sobre a obra da Clarice. Trabalhei muito com cadernos de literatura do Instituto Moreira Salles e assistia a vários depoimentos dela. Foi então que eu construí o corpo do texto, extraindo deste material: depoimentos, entrevistas, correspondências, opiniões da própria Clarice sobre a vida, sobre a escrita, sobre Deus, sobre o amor.

2 – Um dos pontos que mais chamam a atenção neste espetáculo, é que você fica muito parecida com Clarice Lispector, fisicamente. Como se deu esta construção?
Muito pela maquiagem. É um trabalho de visagismo. São horas de preparação de cabelo e maquiagem. O interessante deste processo é que cheguei a fazer a maquiagem igualzinha a de Clarice, só que como faço outras personagens no espetáculo, não deu certo, porque ela não saia mais do meu rosto. Então resolvi trabalhar com a sugestão. Neutralizei minha sobrancelha e utilizei o traço do olho da Clarice, suavizando as diferenças e acentuando as semelhanças. Mas não é só o visagismo quem faz de mim Clarice, é a energia dela, é o tempo de andar, de falar, de usar as mãos. É um estado Clarice que faz você enxergar a própria Clarice.

3 – Foi demorada esta construção?
Nestes dois anos de pesquisa, dediquei seis meses num trabalho com a Rose Gonçalves, que é uma preparadora vocal maravilhosa. Para eu poder me dirigir, ir para o espaço, para o corpo, precisava já ter um domínio da palavra, o suficiente para poder brincar com elas. E assim fui caminhando, dominando o texto, me aprofundando e trabalhando a tridimensionalidade da palavra. Trabalhei o sotaque da Clarice, que muita gente acha que é estrangeiro, o que na verdade é um sotaque nordestino (ela começa a falar com sotaque nordestino), só que como ela tinha a língua presa, parece uma outra língua (ela apresenta pela primeira vez, durante a entrevista – a voz de Clarice Lispector), então descobri a musicalidade. Eu ouvi as entrevistas dela no Museu da Imagem e do Som a última para a TV Cultura (o que aliás é só isso o que existia dela). Você junta um visagismo, uma luz, um figurino e a energia da pessoa – a pessoa está em cena conversando com você. E este é o meu objetivo – trazer a Clarice para conversar com o público.


4 – Foi Beth Goulart quem encontrou Clarice, ou foi Clarice quem encontrou Beth Goulart?
Esta pergunta é muito interessante. E eu respondo: as duas coisas. Escolhi a Clarice como admiradora dela – desde a minha adolescência eu tenho Clarice, ela é instigante, singular, especial. O momento e a forma como se deu, eu digo que fui escolhida, porque este projeto na verdade não era para ser este, era para ser outro que não deu certo, não ia fazer um solo, teriam outras pessoas, era para ter outros autores...mas nesta altura não dava mais para eu abrir mão. Eu já estava grávida da Clarice e não podia negar o que estava acontecendo comigo. Meu envolvimento fez acontecer o Simplesmente eu. Clarice Lispector que também pode ser visto como Simplesmente eu. Beth Goulart

5 – Como foi dividir o palco com seu irmão Paulo Goulart Filho no espetáculo Quartett, de Heiner Müller?
Foi maravilhoso. Ele é um excelente bailarino e ator. Meu primeiro companheiro nesta montagem era o Guilherme Leme, que tem comigo uma química e uma cumplicidade muito boa. Como ele teve que sair do espetáculo, fiquei numa sinuca, porque não podia ser qualquer ator para dividir a cena. Porque são dois personagens que se apaixonam, num envolvimento profundo num jogo de identidade. Isso foi muito interessante com o meu irmão.

6 – O que chama atenção no espetáculo Quartett era a semelhança de vocês dois...
...funcionava como um jogo de espelhos. Não mudamos nada, continuou a mesma marcação. Com o Guilherme Leme se estabelecia um jogo de poder, com o Paulinho, foi um jogo de amor, que era o que eu gostaria de ter feito desde o início. Até porque estas personagens só se destroem porque não aceitam o amor. Mas a beleza do espetáculo é enxergar a beleza por trás do poder. Enxergar o medo deles, que não tiveram a coragem de assumir este sentimento. Eles preferem o conhecido do poder ao desconhecido do amor, ao desconhecido da entrega.


7 – Cinema, teatro ou TV?
Cada um no seu momento. Os três são importantes. Como criadora eu prefiro o teatro, mas como atriz eu gosto de todos. Mas sem dúvida nenhuma o contato humano é insubstituível.

8 – Onde podemos encontrar a Beth Goulart cantora?
Em cena (Clarice Lispector). Uma das pesquisas de linguagem que eu tenho feito nos últimos tempos, sempre tem um trabalho de corpo e de voz. Isso faz parte da minha característica profissional. Não nego, eu assumo. A música é muito importante para o trabalho, e em “Simplesmente eu..." num determinado momento, gostaria de ter uma canção judaica, um canto (ela considera a linguagem dos deuses). Pesquisei muito e não consegui encontrar. Depois de um tempo, encontrei um cd de salmos cantados, mas também não era o que eu desejava, pois eu queria uma súplica, que viesse do coração, e como minha necessidade era tanta, acabei compondo a música (é uma das cenas mais lindas do espetáculo)

9 – Como vê o panorama do teatro brasileiro?
Interessante. Temos mais grupos de trabalho de pesquisa, no eixo Rio-São Paulo, onde eu convivo mais. A Cia do Atores é um grupo que viaja o mundo inteiro com própria linguagem, assim como grupos que já possuem uma trajetória, como o Antunes Filho. No Rio de Janeiro já se vê um movimento de novos dramaturgos. O teatro hoje já tem uma cara, ou melhor, várias caras. Mas continuo achando que o teatro é uma arte de resistência. Falta ainda uma política cultural que abranja estas atividades, que dêem um subsídio para todos estes grupos funcionarem e para outros grupos se reerguerem. É necessário o exercício de formação de plateia, de hábito cultural que ainda precisa ser alimentada no brasileiro. O hábito de ir ao teatro. Muitos só vão assistir comédia para não precisar pensar. Teatro é uma atividade do pensar. O público tem que parar de ter medo de pensar. Pensar é bom, faz bem. Se você não pensa muito enferruja. Tem que trabalhar o corpo e a mente, e isso, o teatro, a mãe de todas as artes tem todas as manifestações artísticas. Falta ao público o prazer de co-criar o espetáculo. O público não tem que ficar só passivo. Ele tem que por a sua contribuição, complementar, fazer seu pensamento crítico, seu exercício de raciocínio, para tirar suas conclusões. Por exemplo: quando fazíamos Quatett, as pessoas ficavam chocadas, até porque o Heiner Müller tem um teatro = terrorismo cultural. Ninguém sai igual de uma peça dele. Por isso as pessoas não têm que ver o que pensar, elas têm que pensar no que vêem. Você tem que ver uma coisa que te provoque - o pensamento, a reflexão. Sou contra e a favor, acho que é isso, acho que não é...é sair do conforto, deixar de ser passivo. E esta é a função do teatro. Tem que ser um prazer para quem faz e deve ser um prazer para quem assiste. Então, muita gente está acordada, mas há muita gente dormindo também.

10 – Quais são os teus próximos projetos?
Agora vou me dedicar a este projeto (Clarice), ele está me dando muita alegria, ele tem uma vida longa. Têm surgido alguns convites pelo Brasil e para fora do país. Mas junto a isso, eu estou num processo de pesquisa de falar de outras mulheres importantes, que quero dar o meu olhar. O teatro e o cinema têm um compromisso com a história. O Brasil não conhece muito a história do Brasil. Existem mulheres que transformaram a nossa história e que devem ser relembradas, por meio de um olhar poético, lírico, artístico, mas também analítico, crítico, sobre o que cada uma delas fez.



PING – PONG
Comida – o cozido da minha mãe (a também atriz Nicete Bruno)
Filme – Cidadão Kane
Personagem – Joana D’Arc
Um lugar no Mundo – Paris
Personalidade Brasileira – Fernanda Montenegro
Espetáculo teatral – Os Sete Afluentes do Rio Ota - inspirado na obra-prima de Robert Lepage
Um beijo, um abraço e um aperto de mão – Para José Sarney (risos). Vai para casa Sarney
Uma frase – “Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro acorda” - Jung
Uma música – Beth não lembrava o nome então...ela cantou “...eu sem você, não sei além porque, porque sem você, não sei nem chorar...

“O propósito do teatro é fazer o gesto recuperar o seu sentido, a palavra, o seu tom insubstituível, permitir que o silêncio, como na boa música, seja também ouvido, e que o cenário não se limite ao decorativo e nem mesmo à moldura apenas – mas que todos esses elementos, aproximados de sua pureza teatral específica, formem a estrutura de um drama” – Clarice Lispector

Por Raulino Prezzi, especial para o The Tramps

domingo, 6 de dezembro de 2009

A praga chamada Remake

O público americano odeia ler legendas, isto todo mundo já sabe. Dizem que é por isso que os remakes acontecem (nem sempre é), estas verdadeiras perdas de tempo que, geralmente, não acrescentam nada. Frequentemente estas “coisas” empobrecem uma bela ideia. Vem a indústria e pasteuriza tudo. E aqui não vamos reforçar o estereótipo da vilania americana, é a industrialização do cinema, que visa o lucro acima de tudo, a culpada, independente do país onde está instalada.

Tudo isso só para o exemplo a seguir. O filme Morte no Funeral, de relativo sucesso quando do seu lançamento em 2007, uma co-produção alemã-inglesa-americana, logo ganhará seu remake. Abaixo seguem os trailers, primeiro o do original e depois o da refilmagem. E aí, a diferença é ou não gritante?



Guerra ao Terror

Direção: Kathryn Bigelow
Roteiro: Mark Boal
Elenco: Jeremy Renner, Anthony Mackie, Brian Geraghty, Guy Pearce, Ralph Fiennes, David Morse, Christian Camargo, Suhail Aldabbach, Evangeline Lilly, Sam Spruell

Kathryn Bigelow vem fazendo sucesso com seu Guerra ao Terror, ainda mais depois de ele ter, recentemente, ganhado o Gotham Independent, um dos prêmios pré-Oscar da temporada. Andam falando que este é o filme definitivo sobre a guerra ao terror, sobre o embate bélico de, especula-se, motivos econômicos, que os EUA ainda trava com o Iraque, em nome da liberdade, dizem os estadunidenses. Visões ideológicas conflitantes a parte, é sintomática esta necessidade de se apontar “o filme definitivo sobre a guerra contra o Iraque”, como se a existência do tal filme fosse, de fato, definir alguma coisa. Então quer dizer que se existe um filme “definitivo”, ou seja, que define com exatidão as múltiplas facetas do conflito, não há necessidade de se discutir mais, certo? Não há necessidade de se criar qualquer outra obra cinematográfica que fale sobre esta guerra, já que existe algo que a define. Esta busca pelo “filme perfeito” sobre o assunto é vazia e desprovida de fundamento.

Bom, dito isso, queria dizer que gostei de Guerra ao Terror que, inexplicavelmente foi lançado em DVD no Brasil há alguns meses pela Imagem Filmes, ignorando completamente este burburinho que ele vem causando acima da linha do Equador. Uma indicação ao Oscar poderia o levar, de forma inédita, aos cinemas das terras brasilis? Fica a questão. Voltando às minhas percepções, meu “gostar” não chegou ao nível do entusiasmo, do impulso irracional de apontá-lo como definidor de um período, assim como os superlativos críticos vem fazendo. O filme se concentra, basicamente, na vida de três homens do exército americano responsáveis por lidar com bombas, minas terrestres e qualquer outra coisa que possa explodir nas terras do Iraque. Sabe-se que um dos artifícios mais corriqueiros das milícias iraquianas é o uso de carros-bomba, homens-bomba e explosivos implantados em locais estratégicos, daqueles que não escolhem a nacionalidade de suas vítimas, mas que, segundo sistema de idéias discutível, sacrificam por um bem maior. Um destes homens é atormentado, sente psicologicamente os efeitos da guerra. O outro é quase que neutro o filme todo, é um peão muito competente e aparentemente estável. Já o protagonista é alguém diferente, um ilusório inconseqüente que, na verdade, carrega a ideologia do filme, ou sua mensagem mais marcante. Ponto forte: este homem, personagem central, é interpretado magistralmente por Jeremy Renner, ator de papéis anteriores menores, sem muito destaque, mas que aqui encarna um personagem que de tão poderoso poderá vir a ser um divisor de águas em sua carreira.

Kathryn Bigelow, sem dúvida, fez um filme de fortes intenções, de diversas leituras possíveis, além de se mostrar ágil como artífice da linguagem e hábil como condutora do nosso olhar. Ela cria diversos momentos muito tensos em Guerra ao Terror, em parte ajudada pelo tema, afinal de contas desarmar bombas é um momento tenso por si só. O grande problema do filme é a maneira formulaica com que, principalmente em sua primeira parte, lida com as missões e com as participações especiais, de atores renomados, como Guy Pearce e Ralph Fiennes. O esquema, quando desvendado, passa a não conseguir mais esconder os passos que a diretora segue. Os momentos em que realmente Guerra ao Terror fica grandioso são os das missões, mas a visão periférica de Bigelow é tão restrita nestes três personagens que o entorno parece ser apenas subserviente em outros momentos, ou seja, não tem o desenvolvimento dramático das cenas de “ação”. Até mesmo nos momentos de ação, de explosões para ser mais preciso, Bigelow assume o risco de tirar o impacto em algumas sequências, utilizando câmera lenta ao invés de potencializar a força, e ela realmente nos priva deste impacto, algumas vezes em prol da beleza de cena, porém como efeitos colaterais.

Guerra ao Terror, como dito acima, é um bom filme, já que se mostra competente em desenvolver sua história e subtextos, mas não sem perder ritmo algumas vezes. Quando digo isso, particularmente acho pouco um filme ser “competente”. As discussões ideológicas da diretora meio que se esvaem num desenvolvimento que limita nossa visão, que nos coloca frente a um conflito que pouco se caracteriza. Guerra sem Cortes, de Brian De Palma, por exemplo, é um filme bem mais engenhoso e instigante do que Guerra ao Terror (faço esta comparação pois ambos versam sobre a guerra contra o Iraque). Na verdade acho o filme de De Palma uma obra-prima narrativa, mas nem por isso o adjetivaria de “definitivo”, afinal de contas, nem a arte, a diplomacia, as teias políticas, ou o que quer que seja, podem definir algo tão devastador e irracional como uma guerra.