domingo, 13 de março de 2016

Doses Homeopáticas #69


Primeiro longa-metragem de Dario Argento, O PÁSSARO DAS PLUMAS DE CRISTAL é um thriller instigante que coloca um escritor norte-americano, em vias de voltar para a América, enredado numa investigação sobre vários assassinatos. Ele testemunha um ataque e, a partir daí, passa a seguir pistas por conta própria. Argento habilmente lança luz em diversas direções, fazendo-nos ora acreditar na culpa de determinado personagem, quase de maneira inequívoca, ora a duvidar e, com isso, desviar as atenções para qualquer outro que minimamente dê sinais de possível vilania. A trilha sonora de Ennio Morricone se incumbe de temperar essa atmosfera. A sensualidade também está presente, ainda que tímida, na beleza das mulheres vitimadas pelo assassino. O estrangeiro deslocado é levado pelas circunstâncias a assumir responsabilidades de captura, algo para o que a polícia, embora também empenhada na missão, não parece competente, mesmo usando métodos científicos e parafernálias a fim de tentar encontrar o meliante. Embora esteja à mercê da figura ameaçadora vestida de negro, o protagonista segue adiante, refletindo a curiosidade do espectador. A vulnerabilidade fica por conta de sua esposa e de todas as outras mulheres em constante perigo.



PHENOMENA começa num terreno caro ao diretor Dario Argento, o das narrativas debruçadas sobre assassinos em série. A personagem de Jennifer Connelly é norte-americana, filha de um famoso ator de cinema, recém-chegada à Suíça para uma temporada de estudos. O medo a circunda, ainda mais quando sua colega de quarto é morta durante a escapada para namorar. Ela conhece um entomólogo que a ajuda a entender sua rara relação com os insetos. A partir daí, o filme envereda pelo sobrenatural, com Jenniffer sendo, inclusive, acusada de proximidade com o demônio. Esses vieses se cruzam e se alimentam numa trama tomada gradativamente por diversas facetas do macabro. Jenniffer corre grande perigo, pois o matador parece cada vez mais próximo e especialmente ávido por fazê-la vítima. O final tem um quê de gore, as motivações do antagonista são postas às claras e o horror se impõe, com direito a poço com pedaços de corpos e um elemento surpresa tão ameaçador quanto o portador de facas e outros objetos cortantes, só que ainda mais insólito, por sua natureza e deformidade. 


São muito distintas as várias abordagens cinematográficas de Drácula, a obra máxima de Bram Stoker. Em NOSFERATU, do cineasta alemão F.W. Murnau, datada de 1922, o que importa é a construção cênica do horror, levada a cabo por meio de diversos expedientes. A colorização manual da película, recurso cromático que distingue os segmentos, é um deles. A não demora neste ou naquele personagem é outro indício de que à Murnau interessa a atmosfera, o clima de medo e apreensão que se vale de alguns elementos do expressionismo alemão – sendo o mais evidente deles o jogo marcado de luz e escuridão – para impor-se. A caracterização de Max Schreck como o Conde Orlock (assim chamado em virtude de uma divergência no que tange aos direitos autorais do original escrito) não entrou para a história como uma das mais horripilantes por acaso. Distante dos vampiros sedutores, ele encarna uma figura amedrontadora, cuja presença traz consigo o medo e boa parte da carga de tensão do filme. Uma obra com quase cem anos, mas que continua intacta no que diz respeito à capacidade ímpar de mostrar Drácula como criatura que carrega consigo a essência do mal. 

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Doses Homeopáticas #68

DRIVE é um filme que fala sobre paternidade. O personagem de Ryan Gosling assume temporariamente, da forma como lhe é possível, o papel de figura paterna ao menino cujo pai biológico está na cadeia. De maneira semelhante, o patrão vivido por Bryan Cranston substitui, mesmo que por vias tortas, a referência que ele provavelmente não teve na infância. Trajando uma indefectível jaqueta de escorpião, o protagonista se assemelha aos enigmáticos pistoleiros do western, aos homens sem nome, de poucas palavras, sobre os quais não se sabia de onde viam, para onde iam e que propósitos lhes guiavam. O diretor Nicolas Winding Refn cria um filme tenso, repleto de uma iconografia muito própria, mas com conceito decalcado de obras anteriores, sobretudo da Hollywood de outrora. Filme-homenagem, tem no desempenho assombroso de Ryan Gosling um de seus pilares. Aliás, o elenco recheado de nomes tão conhecidos quanto competentes proporciona o aprofundamento da dimensão humana, dos elementos que enriquecem o que a imagem e o ritmo dão conta de acelerar e desacelerar. A violência está presente a todo o momento, com sangue jorrando em grande profusão para marcar uma realidade essencialmente bárbara, em que o dinheiro fala mais alto e nem sempre os bons sentimentos conseguem sobrepujar as adversidades.


Redefinição da comédia romântica na época de seu lançamento, NOIVO NEURÓTICO, NOIVA NERVOSA continua um filme excepcional, talvez a obra-prima maior de Woody Allen, pelas maneiras bem-humorada e madura com as quais esquadrinha a relação dos protagonistas. Sabemos desde o início que Alvy e Annie vão se separar, mas não deixamos de acompanhar com entusiasmo os primeiro encontros, as risadas que pontuam o simples preparo de um jantar, a cumplicidade que vai se adensado no ritmo do pessimismo dele e da alegria quase inocente dela. Aos poucos, porém, o amor arrefece e vai perdendo terreno para as desilusões cotidianas, as diferenças que crescem na medida em que a tolerância rareia. Os personagens falam com o expectador, interagem com transeuntes como se eles fossem conselheiros sentimentais, há as tiradas afiadas de Allen, com uma fartura poucas vezes vista, além da evidente cumplicidade entre o cineasta/ator e Diane Keaton, quiçá sua parceira de cena mais marcante. A abordagem dos sentimentos e, principalmente, dos relacionamentos que deles decorrem é destituída de falsos ideais de romantismo ou de fórmulas prontas. O amor, que antes parecia eterno, acaba porque as coisas mudam, nos diz essa obra que aponta à maturidade de um artista cujos talentos vão muito além da capacidade de fazer rir.


Ainda sob o jugo da ditadura militar no Brasil, um grupo de artistas performáticos, liderados pelo personagem de Irandhir Santos, desafia com irreverência as convenções e a carolice imperativa. Seus números iconoclastas no palco do Chão de Estrelas apostam na força, na sensualidade e na naturalidade dos corpos. Em meio a isso, o protagonista se envolve com um soldado, ou seja, alguém lotado no extremo aposto dessa luta na qual ele se vale da poesia, da música, enfim, da arte, a fim de fazer valer os direitos de existir sem restrições. Em TATUAGEM, primeiro longa-metragem de Hilton Lacerda como diretor, os números musicais/poéticos entrecortam as e se fundem organicamente às demais camadas, com a história propriamente dita. Irandhir e Jesuíta Barbosa, intérpretes do envolvimento amoroso/sexual que personifica a transgressão defendida pelos componentes da trupe, merecem todo reconhecimento em virtude do excepcional trabalho, que funciona tanto no registro mais expressivo e desbragado quanto no que diz respeito às evidências surgidas nos não ditos e nos olhares enviesados. Lacerda choca a sedimentada tradição e os intentos de revolução nesse excelente filme que faz jus com folga aos prêmios recebidos.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Doses Homeopáticas #67



Marco-zero da nouvelle vague francesa, NAS GARRAS DO VÍCIO mostra um jovem que volta à cidade interiorana onde cresceu, a fim de recuperar-se de uma doença que quase o matou. Lá ele encontra um espaço parado no tempo, em que a arquitetura não mudou tanto, diferentemente das pessoas de seu passado, que agora são outras, não raro oprimidas pelas dificuldades que o isolamento e a falta de perspectiva impõem. O diretor Claude Chabrol filma esse regresso amargo com liberdade para tocar em temas-tabu, tais como o incesto. O protagonista se ressente de não poder fazer muito por seu amigo de infância, um sujeito infeliz que trata mal a esposa grávida, vive bêbado e flerta com a cunhada mais nova. Serge é extremamente autodestrutivo, um homem ressentido pelas oportunidades que a vida lhe negou, por ter criado raízes num local em que seus sonhos de crescimento não encontram ressonância nem possibilidade. Os personagens, bem como as relações que os unem, são construídos de maneira orgânica, sobretudo no que tange aos sentimentos e contradições, combinando, assim, com o despojamento e o frescor apregoados pela encenação.


ORAÇÃO DO AMOR SELVAGEM, do cineasta catarinense Chico Faganello, é um filme repleto de pequenos problemas, como na primeira parte, em que o protagonista, interpretado com muita competência por Chico Diaz, perde a esposa e passa um período numa comunidade pautada pela religiosidade. Contudo, a trama que enfoca contendas motivadas pela intolerância religiosa e os ótimos desempenhos do elenco garantem o saldo positivo. Enredado pela irmã do pastor vivido por Ivo Müller, Thiago precisa lutar contra um entorno que lhe vê com olhos desconfiados. A comunidade é arredia ao diferente, a quem não frequenta a missa e reza pela cartilha do homem que brada sermões e invoca Deus, muitas vezes, para cobrir as próprias falhas. A filha de Thiago é um emblema de pureza nesse entorno degradado, tacanho e com mentalidade enferrujada. Embora os homens sejam aparentemente mandatários, são as mulheres que definem as coisas. O desejo paira no ar, principalmente o do pastor pela própria irmã, ou mesmo o dela pelo forasteiro. Fosse um pouco menos pudico no que diz respeito às cenas mais quentes, Faganello poderia ter potencializado o sexo enquanto elemento de combustão daquele lugar. Ainda assim, um filme com muito a dizer, que não se furta, inclusive, de um final muito bonito, em que a poesia é precedida da barbárie, da violência extrema.  



Considerado o primeiro longa-metragem norte-americano, O CASAMENTO DE CARLITOS não é protagonizado pelo personagem icônico de Charles Chaplin, o vagabundo de chapéu-coco, mas pelo pilantra que se envolve com uma menina do campo a fim de ficar com o dinheiro do pai. A atriz Marie Dressler é o grande destaque do filme, interpretando essa interiorana atrapalhada e corpulenta que, depois de ser passada para trás, se vê trabalhando como garçonete para, mais tarde, tornar-se a única herdeira do tio que sofre um acidente praticando montanhismo. Embora dividido em seis capítulos, o longa dirigido por Mack Sennett, chefão da Keystone, não soa episódico, como se fosse um apanhando de curtas-metragens enfileirados para dar conta da duração maior. Se em boa parte da trama temos a dinâmica triangular entre Carlitos, a herdeira e sua mulher anterior (que também espera lucrar alguma coisa em virtude da ingenuidade alheia), a parte final exibe as principais características das produções da Keystone, como ação tresloucada, os Keystone Cops mais atrapalhando que ajudando e as coisas se resolvendo no âmbito da gag.   

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Doses Homeopáticas #66

Dirigido por Howard Hawks, EL DORADO é protagonizado por John Wayne e Robert Mitchum. O primeiro interpreta um lobo solitário, aqueles tipos que vagueavam pelo velho oeste sem eira nem beira, aceitando os trabalhos mais diversos, desde que eles incluíssem o uso de sua arma. O segundo é o xerife da cidade que dá nome ao filme, homem que precisa de ajuda para mediar um conflito entre dois fazendeiros, principalmente depois que uma desilusão amorosa o faz mergulhar pesado no álcool. Os dois são amigos, até mesmo por isso o personagem de Wayne volta para ajudar o de Mitchum quando as coisas parecem insolúveis pelas vias diplomáticas. Auxiliando eles, um jovem que não sabe atirar e um idoso que se autoproclama matador de índios. Assim como na obra-prima Onde Começa o Inferno, Hawks privilegia os momentos de espera, mais importantes, de fato, que os tiroteios responsáveis por pontuar os desdobramentos da contenda. Há humor, uma boa dose de romance, mas, sobretudo, a valorização da amizade, algo visto tanto na proximidade dos dois protagonistas quanto na trajetória do novato que passou dois anos caçando os responsáveis pela morte de um velho amigo de quem herdou o chapéu estranho.


AUDAZES E MALDITOS é um faroeste vanguardista, no qual John Ford discute o preconceito racial. A culpa de um crime bárbaro (estupro seguido de duplo homicídio) é imputada ao sargento Rutledge, membro respeitado e exemplar do exército norte-americano. Ele é negro e sabe muito bem que a cor de sua pele pode determinar o veredito da corte marcial. Quase sem esperanças, Rutledge não se pronuncia sobre o caso, pelo menos até o julgamento em que é defendido pelo colega e amigo Tom Cantrell (Jeffrey Hunter). Os eventos anteriores e posteriores ao assassinato da adolescente e de seu pai, também um oficial do exército, surgem nos depoimentos das testemunhas do processo que decide o futuro de Rutlege. Embora não estenda a questão aos indígenas, vistos no filme apenas como antagonistas sanguinários capazes das maiores atrocidades e, portanto, indignos de nossa simpatia, esta realização de John Ford abraça o combate à discriminação, primeiro, mostrando toda opressão que achata o homem de honra ilibada, tachado criminoso muito mais por conta de sua raça que propriamente em virtude dos indícios, e segundo, mostrando-o como uma figura heroica, alguém que ainda se sente escravo, dada a conjuntura social que hipocritamente diz-se igualitária, mas que, na verdade, rebaixa e repele todos que não são brancos e endinheirados.


Embora esteja sempre acompanhado na jornada para levar um bandido à cidade onde lhe pagarão pelo serviço de captura, o protagonista de O HOMEM QUE LUTA SÓ é essencialmente solitário, alguém que interage em virtude da necessidade, sobretudo por estar focado numa questão muito particular. O personagem interpretado por Randolph Scott convive com ameaças, dos índios que querem esposar uma de suas acompanhantes de viagem, do irmão do sacripantas que ele escolta até a forca e de um companheiro de estrada que deixa clara a intenção de lhe matar para poder usufruir do benefício da anistia, concedido como recompensa. As cenas de ação, muito bem filmadas, evidenciam a relação do homem do velho oeste com a natureza que o circunda. Contudo, o diretor Budd Boetticher privilegia a exposição das motivações. Cada personagem possui uma intenção muito bem definida, pela qual luta, não importando o esforço e/ou a consequência. Vingança e luto se mesclam no final redentor, no qual o fogo consome o totem da dor de quem já viu de tudo nos descampados do oeste selvagem. 

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Doses Homeopáticas #65


O primeiro grande acerto de MACBETH: AMBIÇÃO E GUERRA é tratar o protagonista e os personagens mais próximos como forças da natureza. Isso é evidenciado pela imagem, aliás, pela belíssima construção visual a cargo do diretor de fotografia Adam Arkapaw. Os méritos prosseguem na excelente direção de arte, entre outros detalhes, como o estado deplorável dos guerreiros no campo de batalha, ou seja, a maquiagem também se destaca. Mas, fora os quesitos técnicos (que, claro, também podem ser considerados artísticos), o que mais salta aos olhos neste corajoso e brutal filme de Justin Kurzel são as interpretações de Michael Fassbender e Marion Cotillard. Ela consegue transparecer todo ardil do qual se vale para insuflar o espirito guerreiro do marido na direção do trono da Escócia. Já ele, em princípio transmitindo a virulência de um homem dominado com facilidade pelos joguetes da esposa, aos poucos evidencia a loucura de Macbeth, a ira sem fim que faz desta trama um transcorrer repleto de som e fúria. Um grande trabalho dos atores, coroado com uma produção esmerada e suntuosa, sem nunca transparecer ostentação ou gratuidade. Numa temporada de prêmios como o Oscar, é de se lamentar este filme não concorrer nas principais categorias.


Perder-se é um risco sério em meio ao ritmo frenético de A GRANDE APOSTA, afinal de contas o filme se vale de diversas expressões idiomáticas do mercado financeiro, ininteligíveis para muitos de nós. Contudo, o diretor Adam McKay contorna essa dificuldade com explicações, entre as contidas nos diálogos e algumas brincadeiras, como as protagonizadas por celebridades que destrincham verbetes enquanto fazem qualquer outra coisa. O grupo de homens que anteviu a crise imobiliária responsável por devastar a economia em 2008 é heterogêneo. Seus membros se aproximam apenas no que diz respeito à clarividência de enxergar um mercado sustentado por títulos quase sem valor. O filme aponta o dedo condenatório aos bancos, mostrando-os como os principais responsáveis pela quebradeira que deixou milhões desabrigados e desempregados nos Estados Unidos. O andamento acelerado, a montagem inteligente, o roteiro esperto, são atributos de um ótimo filme, que dá conta de comentar criticamente a conjuntura sobre a qual o capitalismo estadunidense foi construído e mostrar a singularidade dos personagens que tiveram suas razões para apostar pesado contra algo que todos achavam sólido demais.


SPOTLIGTH: SEGREDOS REVELADOS é um drama jornalístico orquestrado de maneira tão inteligente que não é preciso muito tempo para estarmos completamente absortos na investigação da equipe especial do jornal Boston Globe sobre crimes de pedofilia cometidos por padres. O diretor Tom McCarthy nos coloca em contato íntimo com a rotina da redação, com as etapas necessárias para que uma boa história vire reportagem e possa, de alguma maneira, influenciar positivamente a sociedade. Os personagens são muito bem construídos, tendo contempladas suas singularidades – o que os torna gente acima de jornalistas – sem, contudo, que o foco da apuração seja desviado para suas dificuldades. São pessoas de carne a osso, com anseios muito próprios e motivações, da mesma forma, bastante particulares, que dividem uma gana pela verdade, por fazer do jornalismo um instrumento efetivo. Os bastidores da notícia são expostos como uma zona cinzenta à qual geralmente os leitores não têm acesso, repleta de pressões e outros impeditivos para que as coisas sejam impressas da maneira como aconteceram. Há um crescendo de emoção e adrenalina que acompanha a progressão da trama, o que evidencia a tensão inerente a um trabalho complexo como o empreendido pelos jornalistas do Globe, fazendo deste filme um êxito contundente, tanto no que diz respeito à forma quanto ao conteúdo.
  

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Doses Homeopáticas #64



O brasileiro Alberto Cavalcanti é um dos diretores do inglês NA SOLIDÃO DA NOITE, filme que maquia com muita perspicácia sua estrutura essencialmente episódica. Um arquiteto reconhece os presentes numa casa estranha como protagonistas de pesadelos recorrentes que ele vem tendo. Intrigados pelo inusitado, os presentes, até mesmo para convencerem um cético psiquiatra que não acredita no sobrenatural, começam, um a um, a contar casos estranhos acontecidos consigo próprios ou mesmo com pessoas próximas. O clima de terror/horror é quebrado por uma trama engraçadinha, movimento inteligente que nos convida a ficar mais atentos à encenação, já que tudo decorre de relatos e, por certo, é passível de distorções, quando não de invenções. Entre um causo e outro, o arquiteto se convence de que algo muito grave vai acontecer, que aquele dia estranho não vai acabar bem, algo sinalizado pela confirmação, na prática, do que ele havia presenciado apenas durante o sono. As tramas são interessantes uniformemente, ou seja, não há um sensível desiquilíbrio, como de costume em filmes feitos de fragmentos.


A NOITE DO DEMÔNIO é Jacques Tourneur em grande forma. O filme contrapõe ceticismo e ocultismo, no qual o segundo acaba se sobressaindo, principalmente, pela presença marcante do demônio que surge em meio à fumaça para aniquilar aqueles que foram presenteados com pergaminhos amaldiçoados. O protagonista não aceita a existência do sobrenatural, buscando explicações científicas e racionais para fenômenos estranhos. O demônio é uma figura ameaçadora, fruto da trucagem que dá conta de transmitir o temor decorrente dessa presença. Embora Tourneur fosse terminantemente contra a aparição literal, preferindo que os espectadores, assim como os personagens, ficassem na dúvida se viram mesmo algo extraordinário, ela funciona muito bem. Perdida a queda de braço para os produtores, temos o mostro na tela, elemento que extirpa qualquer ambiguidade e deflagra a existência inconteste de forças bizarras que regem o entorno.  Ainda assim, o filme nos ganha pela atmosfera que oprime num crescendo de horror eficiente, pois construído com inteligência ao largo das discussões suscitadas e do romance que surge.


A ALDEIA DOS AMALDIÇOADOS é um filme curto, que consegue em seus sintéticos 77 minutos estabelecer um clima de horror genuíno, baseado nas tensões despertadas por fenômenos inexplicáveis. Primeiro o apagão geral numa cidadezinha inglesa. Os habitantes desmaiam e acordam horas depois, como se nada tivesse acontecido. A herança de tal ocorrência é a gravidez de todas as mulheres férteis do lugar, a gestação acelerada e o nascimento, no mesmo dia, de um bando de crianças loiras, com olhos estranhos e uma concepção física e intelectual extraordinárias. Os pequenos crescem rápido, expondo poderes cada vez mais ameaçadores. Não se sabe qual a origem deles, embora haja uma teoria que os relacione a seres extraterrestres. Tudo funciona muito bem nesta realização de Wolf Rilla, em que os vilões, filhos apenas de mães, estão dispostos a qualquer coisa para sobreviver, até mesmo a matar entes próximos (não queridos, já que eles são destituídos de emoções). Apreensão e medo caminham juntos, um alimentando o outro, constantemente.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Doses Homeopáticas #63


Um homem bem-sucedido profissionalmente, com um casamento estável, entra em parafuso ao hospedar-se em uma cidade, não por acaso a mesma onde mora um amor do passado, na qual vai dar palestra de negócios. O protagonista de ANOMALISA, esse grande filme de Charlie Kaufman, está cercado de gente com a mesma voz e feições semelhantes. Todo mundo é igual ao redor, a não ser Lisa, dona de uma voz singular, bem como de um rosto que a destaca dos demais, não necessariamente pela beleza, mas, sobretudo, por ser diferente. A animação é impressionante, os gestos de velocidade descompassada da técnica ajudam a exprimir a situação em que o protagonista se encontra, um estado de melancolia tamanho que o desespero começa a soar como sinal de salvação. Uma noite de sexo, o timbre único da mulher em seus braços, o fazem apaixonar-se instantaneamente por aquela até então estranha que sente vergonha do próprio corpo e não dissimula a baixa autoestima. Tão depressa quanto demonstrou apego, ele percebe que o problema não é o mundo, mas ele próprio, pois não consegue conectar-se a alguém, sem achá-lo parte aborrecida e redundante de algo que não o preenche. O personagem principal do filme de Kaufman parece fadado a sofrer, por ser irremediavelmente oco.


TAXI TEERÃ é outro dos filmes feitos de maneira um tanto clandestina por Jafar Panahi, em virtude da proibição imposta pelo governo iraniano, que o impede de exercer seu ofício. O diretor, então, instala câmeras num táxi e interage com os passageiros que embarcam aleatoriamente. De tão insólitas e representativas das restrições sociopolíticas enfrentadas pelo povo do Irã, as situações parecem até combinadas, quando não encenadas. Um acidentado pede para o diretor filmar seu testamento antes que ele morra; um vendedor de DVDs pirata proporciona reflexões a respeito da circulação de bens culturais no país; duas senhoras e seus peixes dourados representam as crenças do povo; além de outras ocasiões que se interligam por falar a respeito de ladrões e de possíveis punições. Mas o grande achado deste filme é a sobrinha do cineasta, sobretudo sua lista de ressalvas, de ordem temática, à realização de um curta estudantil. Panahi fica visivelmente incomodado com a tarefa escolar, algo compreensível já que aquilo alude diretamente à punição por ele sofrida. A dinâmica imagética lembra 10, do conterrâneo Abbas Kiarostami, mas o resultado é bastante distinto, salvo o fato de ambos refletirem em trânsito uma sociedade há muito estagnada.


AMAR, BEBER E CANTAR, o testamento de Alain Resnais, é um filme aparentemente leve, centrado em cirandas amorosas ocasionadas por uma série de situações que ocorrem em meio aos ensaios de uma peça teatral. Aliás, a arte dos palcos é reverenciada pelo diretor francês, que opta por cenários mais afeitos, em princípio, a ela que ao próprio cinema. Resnais experimentou até o fim, recusando-se a permanecer demasiado numa zona de conforto. É um dos grandes exemplos de carreira construída com doses generosas de risco. Neste filme, além de refutar veementemente o naturalismo cênico, sem com isso abdicar de um registro algo verista, sobretudo no que diz respeito às respostas dos personagens às complexidades dos relacionamentos, ele confere ares de protagonista a alguém que nunca aparece em cena. O amigo de todos, que está beirando a morte, desenganado pelos médicos que lhe dão não mais que seis meses de vida, é uma figura quase onipresente que, inclusive, promove boa parte dos desencontros com suas propostas insólitas às esposas dos amigos e até mesmo à mulher que havia o deixado. Resnais nos convida a imaginar, a participar ativamente do jogo de representação, no qual a ficção suspende nossa descrença, nos fazendo dar mais valor ao fabulário que necessariamente à pretensa verdade inerente à visão. 

domingo, 24 de janeiro de 2016

Doses Homeopáticas #62



O estaleiro prestes a fechar deixará para trás um manancial de desempregados. A praga das vespas ameaça a existência das abelhas e, por conseguinte, o ganha-pão dos apicultores. O cineasta diz não saber muito bem como combinar os registros do filme que pretende fazer. AS MIL E UMA NOITES: O INQUIETO, primeira parte da trilogia dirigida pelo português Miguel Gomes, é um filme de linguagem vigorosa, com múltiplos vieses, que trafega com segurança pela linha que separa ficção e documentário, não fazendo muita distinção entre ambos. As histórias que Xerazade conta se conectam mais ou menos explicitamente, mas se conectam, com a difícil situação político-social que Portugal enfrenta. Burocratas e políticos acometidos por uma ereção intermitente aludem às negociatas de bastidores que, não raro, prejudicam o povo; um galo é processado por cantar à noite, demonstrando mais tarde antever o abismo como nenhum humano em cena; e o autoexplicativo banho catártico dos sem trabalho nas águas gélidas do primeiro dia de 2014, com direito à cena passada dentro de uma baleia. Os segmentos se comunicam num nível nevrálgico, cativando tanto pela singularidade de suas abordagens e focos quanto pelo painel que formam, um conjunto de insuspeita e pungente unidade que celebra a fábula sem descolar-se da realidade.


Em 45 ANOS sobressaem-se os trabalhos de Charlotte Rampling e Tom Courtenay, dois atores que dominam as nuances responsáveis por tornar seus personagens tão humanos e profundos. Casados há quase 50 anos, prestes a celebrar a longevidade da união, ele recebe a notícia insólita de que encontraram o corpo congelado de uma amada do passado. A notícia abala a ele, que passa a se recordar da mulher perdida em condições trágicas, e também a ela, que experimenta o sofrimento do ciúme e da insegurança. O filme do diretor Andrew Haigh vai mostrando aos poucos a vida conjugal sendo posta em xeque, com desconfortos surgindo numa convivência que parecia mais que solidificada, tanto em virtude do tempo quanto da força o sentimento que a propicia. Embora Haigh algumas vezes perca o rumo, deixando a trama navegar em águas calmas demais, o filme consegue exprimir as sutilezas que deflagram a fragilidade e o caráter quebradiço dos relacionamentos, instituições cuja solidez não está garantida, a despeito das aparências. Rampling e Courtenay dão conta de expressar muito bem essa tempestade que assola o casamento de seus personagens.


Uma casa misteriosa à beira-mar. Padres e uma freira vivem em clausura, às voltas com o treinamento de um cão de corrida que lhes permite vencer apostas. A chegada de um novo morador e a sequente tragédia expõem feridas da igreja católica, pois traz à tona a polêmica questão dos sacerdotes pedófilos. Um emissário do Vaticano vai até lá para resolver a questão. Assim, dois homens estranhos, três se contarmos aquele que circunda a casa vociferando a mágoa de ter sido estuprado quando pequeno, alteram a rotina desses serventes de Deus encerrados nos muros que representam punição. O CLUBE é um filme cinzento. O tom predominante oprime a beleza natural do cenário, denotando a atmosfera da casa em que os párocos convivem, numa dinâmica muito própria. Aos poucos, as intrusões se impõem, inclusive as da burocracia de uma instituição que prefere varrer para os porões do esquecimento, disfarçados convenientemente de local de penitência, os crimes cometidos pelos seus. Mas o diretor Pablo Larraín não fica somente no âmbito da denúncia, mostrando os pequenos dramas de todos que ali são acometidos, com mais ou menos violência, pela repressão de instintos e vontades. No fim, um cordeiro é escolhido para purificar os pecados do entorno, movimento que utiliza a simbologia religiosa para ressaltar a violência e a agressividade dos próprios procedimentos da igreja.  

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Doses Homeopáticas #61


Em OLMO E A GAIVOTA as diretoras borram com gosto os limites entre ficção e documentário, confundindo os registros para criar um filme que não se apoia apenas na linguagem, já que o conteúdo é de extrema relevância. A maternidade, estado celebrado ao longo dos tempos como ápice do sublime feminino, afinal de contas está a se gerar uma vida, é vista sem condescendência, despida totalmente da aura de santidade com a qual sempre foi revestida. A atriz que pensava poder conciliar apresentações e gravidez se vê enclausurada por meses a fio em virtude de um problema que pode ocasionar aborto. Antes eufórica por ser mãe, ela vai experimentando a angústia e certa solidão, ainda que o marido seja tão presente quanto possível. Ela divaga sobre a dificuldade de doar partes de si mesma a outra pessoa, não com isso expondo falta de sensibilidade, pelo contrário. Cena se desenrolando e ouvimos a voz de alguém pedindo para que a dinâmica do casal assuma outro tom. Documentário ou ficção? Há um hibridismo muito interessante, discreto, que não grita pela nossa atenção, justamente para que paulatinamente a diferença entre verdade e encenação passe a ser irrelevante, diante da intensidade dramática (forjada ou não) com que se aborda um tema tão complexo.


Em 007 SKYFALL, a obsolescência está à espreita. As relevâncias de James Bond, de M, do MI6, são postas em xeque pelos novos tempos dos terroristas virtuais, das grandes negociações conduzidas e, muitas vezes, seladas online. Após um acidente, Bond não parece o mesmo. O tempo é implacável e enquanto sua chefa defende a permanência do serviço secreto na ativa, ele parte em busca do inimigo escondido nas sombras, melhor dizendo, atrás da tela do computador. Sam Mendes faz um 007 com muita ação, entre outros elementos canônicos do personagem que possui licença para matar. Na medida em que a trama avança, torna-se urgente uma volta ao passado. É a chance que o diretor tem de fazer uma série de homenagens à franquia derivada dos livros de Ian Fleming, sendo uma delas a aparição do clássico Aston Martin utilizado pelo Bond de Seann Connery em 007 Contra Goldeney, entre alusões a outros filmes. A sequência na propriedade Skyfall é um dos pontos altos de toda a série, momento que permite a Daniel Craig mostrar as qualidades dramáticas que fazem do seu Bond um dos mais multifacetados e complexos de todos.



007 CONTRA SPECTRE é um filme morno, nem ruim, nem bom, apenas meio insosso. Muito embora as perseguições, as explosões, os flertes e a ameaça verdadeira à segurança mundial estejam presentes, nada é de fato aprofundado. Após Skyfall e toda aquela reflexão sobre o tempo, o obsoleto, que conferia camadas de profundidade tanto à narrativa quanto ao protagonista, aqui as coisas acontecem sem o devido peso dramático. Bond se depara com a iminente extinção do programa 00, encara um vilão com potencial para ser o mais significativo da era Daniel Craig, mas o resultado é um 007 banalizado pelo boicote constante de momentos pouco expressivos. Christoph Waltz decepciona, e bastante, como antagonista. Monica Bellucci é uma mera figura de decoração, lhe deram um papel insignificante, aquém de sua fama e talento. Léa Seydoux até que se sai muito bem como par romântico do personagem interpretado mais uma vez com competência por Craig, ator que consegue equilibrar força bruta e fragilidade. O problema maior é o roteiro, que desperdiça situações, ora as estendendo para além do necessário, ora se detendo menos do que deveria em passagens de muita relevância ao todo. O final é menos ambíguo do que pode parecer, não apontando realmente se teremos adiante uma nova era ou continuidade, bem ao gosto dos produtores que, assim, mantém o suspense e a marca em evidência.

domingo, 3 de janeiro de 2016

Doses Homeopáticas #60


(500) DIAS COM ELA tem The Smiths na trilha sonora, um roteiro esperto que utiliza muito bem o vai e vem temporal, Zooey Deschanel e Joseph Gordon-Levitt ótimos como o casal cujo relacionamento nasce, cresce e morre na nossa frente, referências ao cinema europeu (Godard, Bergman, etc), entre outras qualidades. Acompanhamos o entusiasmo de Tom quando ele conhece Summer, garota que, desde o começo, diz não acreditar em relacionamentos. O sexo é bom, a convivência é legal, ele a faz rir, então porque cargas d’água Summer não aceita ficar junto, assumir namoro, fazer, quem sabe, planos para casamento? É justo ao lançar essas questões e tornar as respostas, ou melhor, as não respostas, tão naturais, que o filme de Marc Webb se diferencia de muitos congêneres. Os sentimentos em voga não são tratados como respostas óbvias e formatadas a certos comportamentos, mas sim condicionados a uma série de questões, bloqueios e anseios muito particulares, que nem sempre evanescem na vida a dois. A cena da tela dividida entre as expectativas e a realidade em determinado encontro dos protagonistas é um dos grandes achados do filme, bem como a sequência musical responsável por denotar a felicidade extrema do rapaz que acabou de passar a noite com a mulher amada.  


O jovem acordado cedo pela mãe afetuosa, uma típica matrona italiana, é o protagonista de O EMPREGO, segundo filme de Ermanno Olmi. A vocação neorrealista se vê na maneira como a câmera perscruta criticamente a Itália empobrecida. O menino passa por uma série de testes até conseguir a ocupação numa grande empresa. Tímido, ele se enrabicha por uma colega. A paixão e o primeiro trabalho marcam, a um só tempo, o crescimento desse rapaz constantemente trajado com um sobretudo, cuja voz claudicante é relativamente pouco ouvida em todo filme. Os demais funcionários da empresa demonstram os ambientes laborais viciados, a opressão à qual o homem se submete em busca de subsistência. A miséria vista em filmes italianos anteriores aqui aparece nas entrelinhas, como uma herança cuja maldição só será parcialmente quebrada com a penhora do suor em favor do crescimento econômico, ou seja, em prol do capital e seus ditames. O olhar do garoto expõe perplexidade e curiosidade em contato com a necessidade de crescer e assumir seu lugar de adulto numa Europa efervescente e voltada ao progresso, nem que para isso precise privilegiar uma realidade em que o lazer é exceção e o trabalho é valorizado como dádiva.  


VIVER É FÁCIL COM OS OLHOS FECHADOS é o tipo de filme que nos arranca facilmente sorrisos. Protagonista cativante, personagens secundários com luz própria, história muito bem contada, registro visual bonito, atores aparentemente bastante à vontade em seus papeis, humor na medida e certa dose de melancolia para não deixar tudo adocicado demais. O professor interpretado por Javier Cámara empreende uma viagem para conhecer seu ídolo, John Lennon. No caminho, dá carona a dois jovens que se tornaram amigos, e mais, parceiros nessa jornada. A singularidade das pessoas em cena é bem trabalhada pelo roteiro, assim como são precisas as viradas que vez ou outra dão uma chacoalhada na missão principal, evidenciado que há dramas humanos latentes nesse grupo que parte em busca do Beatle. Talvez seja essa precisão que ateste ligeiramente contra o filme, a sensação de conferirmos algo milimetricamente construído, sem espaço para arestas ou outros “detritos” que poderiam injetar organicidade à trama, enfraquecendo assim o engessamento do qual ela padece. Ainda assim, a realização de David Trueba tem a capacidade de emocionar, sem apelações, de nos prender na tela e nos fazer torcer para tudo dar certo.