Um homem bem-sucedido
profissionalmente, com um casamento estável, entra em parafuso ao hospedar-se
em uma cidade, não por acaso a mesma onde mora um amor do passado, na qual vai
dar palestra de negócios. O protagonista de ANOMALISA, esse grande filme de Charlie
Kaufman, está cercado de gente com a mesma voz e feições semelhantes. Todo
mundo é igual ao redor, a não ser Lisa, dona de uma voz singular, bem como de
um rosto que a destaca dos demais, não necessariamente pela beleza, mas, sobretudo,
por ser diferente. A animação é impressionante, os gestos de velocidade
descompassada da técnica ajudam a exprimir a situação em que o protagonista se
encontra, um estado de melancolia tamanho que o desespero começa a soar como
sinal de salvação. Uma noite de sexo, o timbre único da mulher em seus braços,
o fazem apaixonar-se instantaneamente por aquela até então estranha que sente
vergonha do próprio corpo e não dissimula a baixa autoestima. Tão depressa
quanto demonstrou apego, ele percebe que o problema não é o mundo, mas ele
próprio, pois não consegue conectar-se a alguém, sem achá-lo parte aborrecida e
redundante de algo que não o preenche. O personagem principal do filme de
Kaufman parece fadado a sofrer, por ser irremediavelmente oco.
TAXI TEERÃ é outro dos filmes
feitos de maneira um tanto clandestina por Jafar Panahi, em virtude da
proibição imposta pelo governo iraniano, que o impede de exercer seu ofício. O
diretor, então, instala câmeras num táxi e interage com os passageiros que
embarcam aleatoriamente. De tão insólitas e representativas das restrições
sociopolíticas enfrentadas pelo povo do Irã, as situações parecem até
combinadas, quando não encenadas. Um acidentado pede para o diretor filmar seu
testamento antes que ele morra; um vendedor de DVDs pirata proporciona
reflexões a respeito da circulação de bens culturais no país; duas senhoras e
seus peixes dourados representam as crenças do povo; além de outras ocasiões
que se interligam por falar a respeito de ladrões e de possíveis punições. Mas
o grande achado deste filme é a sobrinha do cineasta, sobretudo sua lista de
ressalvas, de ordem temática, à realização de um curta estudantil. Panahi fica
visivelmente incomodado com a tarefa escolar, algo compreensível já que aquilo
alude diretamente à punição por ele sofrida. A dinâmica imagética lembra 10, do conterrâneo Abbas Kiarostami, mas
o resultado é bastante distinto, salvo o fato de ambos refletirem em trânsito
uma sociedade há muito estagnada.
AMAR, BEBER E CANTAR, o
testamento de Alain Resnais, é um filme aparentemente leve, centrado em
cirandas amorosas ocasionadas por uma série de situações que ocorrem em meio aos
ensaios de uma peça teatral. Aliás, a arte dos palcos é reverenciada pelo
diretor francês, que opta por cenários mais afeitos, em princípio, a ela que ao
próprio cinema. Resnais experimentou até o fim, recusando-se a
permanecer demasiado numa zona de conforto. É um dos grandes exemplos de carreira
construída com doses generosas de risco. Neste filme, além de refutar
veementemente o naturalismo cênico, sem com isso abdicar de um registro algo
verista, sobretudo no que diz respeito às respostas dos personagens às
complexidades dos relacionamentos, ele confere ares de protagonista a alguém que nunca aparece em cena. O amigo de todos, que está beirando a
morte, desenganado pelos médicos que lhe dão não mais que seis meses de vida, é
uma figura quase onipresente que, inclusive, promove boa parte dos desencontros
com suas propostas insólitas às esposas dos amigos e até mesmo à mulher que
havia o deixado. Resnais nos convida a imaginar, a participar ativamente do
jogo de representação, no qual a ficção suspende nossa descrença, nos fazendo
dar mais valor ao fabulário que necessariamente à pretensa verdade inerente à
visão.
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