segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

TOP 10 - Filmes 2013


Segue, conforme tradição do The Tramps, minha lista dos melhores filmes de 2013. Aproveito para desejar um Feliz 2014 aos leitores e aos colaboradores que ajudam a enriquecer o conteúdo por aqui.
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Violência originária da bestialidade dos homens.

A busca pela beleza, em meio ao vazio ruidoso de Roma.

03 - CÉSAR DEVE MORRER
Tragédia shakespeariana ressignificada no cárcere.

O Brasil classe-média encontra ecos no coronelismo do passado.

05 - O MESTRE
Fanatismo e promessas vazias de salvação.

06 - TABU
Prosa e poesia mediando o diálogo entre colonizador e colonizado.

Obsessão por um sorriso inventado (?).

08 - DENTRO DA CASA
A criação movendo relações e interesses.

09 - DJANGO LIVRE
Catarse antirracista manchando de vermelho o Sul norte-americano

Os auto-excluídos (o quanto podem) do nosso mundo de regras cartesianas.

domingo, 29 de dezembro de 2013

CINEMA A DOIS | Nothing's All Bad (Smukke mennesker)


A solidão elevada à máxima potência. Assim como li em uma crítica, acredito que Nothing's All Bad (Smukke mennesker) guarde pequenas semelhanças com Felicidade, de Todd Solondz, mas no dinamarquês não há complementariedade viável nos dramas vividos pelos personagens, diferente do visto em Felicidade. Em Nothing's All Bad (Smukke mennesker) o autor não nos deixa saída para felicidade, para uma solução. Sem esperança alguma, o filme vai tomando seu rumo. Tudo está acabado desde o princípio.

A solidão é avassaladora e sem limites. Em um ambiente hostil e frio, em todos os sentidos, a degradação humana vai tomando conta das cenas, da vida dos personagens e ainda quando nos últimos minutos surge uma luz, bem de longe, como se dali pudesse haver transformação, o que fica para nós é uma sutil acomodação da dor, do sofrimento, daquilo que restou e agora pode ser processado, como uma espécie de redução de dano.

Grandes atuações que sobrevivem às cenas e ao roteiro, estes não tão bons quanto.
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Provavelmente, o cinema escandinavo é aquele em que mais aflora o desconforto brutal do ser humano, seja frente a seus fantasmas ou mesmo à angústia de viver em comunidade. Nothing's All Bad (Smukke mennesker) é uma realização de 2010, e não foge dessa vocação de buscar nas extremidades, na sordidez, a chave para a deterioração geral.

Em Nothing's All Bad (Smukke mennesker) o sexo é imprescindível, pois via pela qual desaguam tanto o desejo, quanto a falência dos personagens. As pessoas transam para aplacar a solidão, para esquecer um problema, para aceitar seu corpo, para ganhar a vida, mas dificilmente por amor ou puro prazer. Nesse mundo onde a volúpia se aproxima da morte, sexo e afeto são quase insociáveis. Por sua vez, as relações de sangue parecem apenas servir como expositoras de hereditariedade, mas não no que diz respeito a algo do código genético, e sim ao seu equivalente emocional.
   
Se o filme força algumas coincidências, elas são justificadas em parte pelo impacto do final, dado numa sequência meio ridícula, desajeitada no princípio, mas, logo percebida como fechamento agridoce e, em certa medida, esperançoso, para pessoas cujos caminhos pareciam irremediavelmente longe de qualquer felicidade. 


Por Ana Carolina Grether e Marcelo Müller

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Doses Homeopáticas #12


Após um antecessor enrolado, eis que O HOBBIT: A DESOLAÇÃO DE SMAUG surpreende. A continuação das aventuras de Bilbo e dos anões liderados por Gandalf é dinâmica e faz uma ótima ponte com os eventos mostrados na trilogia O Senhor dos Anéis. Até mesmo a elfa Tauriel, personagem inexistente no livro, funciona muito bem. Mas, claro, todos esperavam a aparição de Smaug, o terrível, e não é que Peter Jackson – e sua equipe de efeitos especiais - conseguiu fazer o dragão tão ameaçador como ele é descrito nas páginas de Tolkien? Enfim, não dá para reclamar tanto de O HOBBIT: A DESOLAÇÃO DE SMAUG, a não ser pela fidelidade de Jackson à mania chata de acabar o filme num momento crucial, daqueles que clamam pela sequência. Enfim, pelo menos há o que comemorar, pois voltamos em grande estilo à Terra Média.


O cineasta Hong Sang-soo é frequentemente comparado a Eric Rohmer. Afora essa aproximação que, a despeito do visível talento do oriental, tende a lhe desfavorecer, pois o coloca lado a lado com um grande artista francês, vejamos seus filmes pelo que representam, não apenas individualmente, mas em conjunto. Pois, como li por aí, o cinema de Sang-soo se repete por procedimento, não vitimado pela escassez de ideias. Em FILHA DE NINGUÉM temos a jovem adulta Haewon, às voltas com a mudança da mãe para o Canadá e com o relacionamento mantido com um professor casado. Seu cotidiano de incertezas é povoado de dilemas existenciais apresentados no que eles têm de mais cotidiano. Nada parece acontecer, mas é nessa aparente inércia que se aloja a força dramática de FILHA DE NINGUÉM.


A GRANDE BELEZA, de Paolo Sorrentino, faz bonito frente à tradição grandiosa do cinema italiano, feita dos trabalhos de Fellini, De Sica, Visconti, Antonioni, Monicelli, entre tantos outros. Que grande filme esse protagonizado por um jornalista habituado a festas tão vazias quanto excêntricas, que reflete sobre a vida em meio à burguesia e as particularidades de uma Roma próxima (porém, atualizada) daquela registrada por Fellini em A Doce Vida.  Que imagens exuberantes: a da girafa, a do transatlântico naufragado, a da religiosa centenária subindo uma escada de joelhos, a da notícia inesperada da morte de alguém importante do passado, etc. Que trilha sonora, que fluidez visual feita de travelings e outras concepções que dão à imagem o status e a função merecidos. Até onde lembro, poucas vezes o cinema recente se aproximou com tanta habilidade da “magia” que parecia perdida lá pelos anos sessenta. Que filme, que filme.


As quatro histórias que formam UM TOQUE DE PECADO são interligadas pela violência, não raro último recurso dos personagens para lidar com um mundo desonesto, inescrupuloso e avesso às soluções diplomáticas. Jia Zhang Ke mostra a China longe daquele modelo de desenvolvimento que nos é vendido, bem distante da imagem ascendente da nação superpopulosa, tida por especialistas como exemplo de soberania e crescimento. Essa “denúncia” surge banhada em sangue, cujo pigmento evidencia por saturação a catarse de gente que não suporta mais sobreviver ao invés de viver. As intenções são as melhores possíveis, e não me pareceu que a violência seja exacerbada ou destituída de propósito. Contudo, UM TOQUE DE PECADO me soou um tanto cansativo, longo e vítima da reiteração.



Assistir ESQUECERAM DE MIM no Natal faz todo sentido, pois, afinal de contas, é justo na véspera da data mais famosa de dezembro que a família McAllister, de viagem a Paris, esquece o filho mais novo. Como desgraça pouca é bobagem, além de estar sozinho, Kevin precisa lidar com uma dupla de ladrões que resolve depenar a casa. Mal imaginavam eles que o garoto deixaria o medo de lado e armaria uma série de arapucas para defender o lar de sua família. Com grandes nomes envolvidos (John Williams na trilha sonora, John Hughes no roteiro, Joe Pesci no elenco), ESQUECERAM DE MIM é um filme divertido para caramba, ainda mais quando entra naquela etapa onde cada tentativa de arrombamento dos ladrões resulta numa punição digna dos desenhos animados. Além disso, guarda uma mensagem bonita para o fim, onde a superação do medo do garoto encontra ecos na reconciliação do vizinho misterioso com sua própria família.    

sábado, 21 de dezembro de 2013

O Que Traz Boas Novas


Não há construção de sociedades sólidas sem comprometimento com os meios educacionais. Nas salas de aula, sobretudo nas de formação básica, molda-se o futuro cidadão, para o bem ou para o mal. Nesse contexto, a figura do professor é muito importante, afinal por ela passa o direcionamento não só intelectual, mas também moral, dos avessos a deveres e ditados de ocasião. São inúmeros os filmes que centralizam o educador, lançando luz sobre seu valor. Some a esse filão o recente O Que Traz Boas Novas, longa canadense que concorreu ao Oscar de Filme em Língua Estrangeira.

Estamos em Quebec, logo após o suicídio por enforcamento da professora encontrada suspensa em plena sala de aula. Comoção geral: pais atentos ao trauma dos filhos, crianças estarrecidas e a diretiva ocupada com o restante do ano letivo. Cabe ao Sr. Bachir Lazhar, imigrante argelino, a missão de substituir na prática e no campo psicológico aquela que, involuntariamente, fez da morte uma dura lição aos pequenos. Para ele e para todos os demais o início é trôpego, e como, oras, poderia ser diferente? Os alunos estão arredios, estranhos aos métodos na certa “ultrapassados” de alguém que cita Balzac na contramão da conduta professoral contemporânea. O novo mestre sente o golpe e precisará administrá-lo enquanto vê seu passado bater à porta.

Ainda que se possa extrair de O Que Traz Boas Novas observações acerca da coletividade, nenhuma delas realmente ganha fôlego norteador. Do que trata o filme? A rigor, da jornada particular de um homem, para além de qualquer matiz enriquecedor. O acúmulo de mensagens ligeiras (imigração, morte, aprendizado moderno, etc) acaba tirando do filme possibilidades de expansão. Então, o maior pecado de O Que Traz Boas Novas é ater-se puramente à trama, sem incentivar subtextos ao protagonismo. Dessa maneira, navegamos em maré mansa, na qual seguimos tranqüilos, sem ondas ou virações maiores.

Contudo, seria injusto negar que o filme possui olhar maduro, preocupado com questões de ordem educacional e humana. Assim, bem-intencionado, o diretor escorrega mesmo na submissão à exposição, atendo-se pouco à conexão entre a instabilidade interna do mestre (atormentado pela dura situação social de seu país) e as particularidades diárias que fazem do âmbito escolar um dos mais relevantes. Sem esses cuidados de carpintaria, o longa de Philippe Falardeau acaba como trajetória (anêmica) pessoal e bonita homenagem à relação aluno/professor, aliás, de cerne semelhante a outras vistas por aí.  


Publicado originalmente no Papo de Cinema

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Faroeste Caboclo


Quem não conhece a história de João de Santo Cristo? Os quase 10 minutos da canção Faroeste Caboclo, um dos emblemas da Legião Urbana de Renato Russo, gravaram em nosso imaginário a trajetória desse personagem marginalizado que sai do Nordeste e vai para Brasília encontrar amor e danação. Era apenas questão de tempo até que alguém enfrentasse a tarefa de levar às telas essa melodia nascida com vocação cinematográfica. Portanto, repleto de expectativa, chega ao circuito o primeiro longa do diretor René Sampaio, prometendo não a ilustração da música, mas a expansão de sua trama com a adição de novos personagens e fatos.

João de Santo Cristo (Fabrício Boliveira) parte de sua cidade natal, encontra Pablo (César Troncoso), Maria Lúcia (Ísis Valverde), Jeremias (Felipe Abib) e mais uma série de tipos que tornam limítrofe sua experiência no cerrado. Desde o início fica clara a escolha do amor como conduto do enredo: por ele João lutará, ganhará dinheiro, deixará o crime e, depois, pegará em armas novamente. Isso não afasta outros elementos, como o êxodo, a luta social, discriminação, diferença de classes, etc. Aliás, interessante notar, o roteiro consegue contrapor muito bem as realidades de Brasília. A periferia empobrecida (feita muito de trabalhadores braçais que construíram a cidade) invade o ambiente urbano de adolescentes burgueses embalados pelo díptico drogas/rock.

As inconstâncias e excessos inerentes ao primeiro trabalho diretivo aparecem vez ou outra, num maneirismo aqui, outro acolá. A própria referência ao spaghetti western surge tal fetiche de fã e passa do ponto algumas vezes, sobretudo na sequência final (logo volto a ela). Por outro lado, René se esmera na construção de um clima violento, onde também o sexo não é visto com puritanismo. Faroeste Caboclo passa longe de ser videoclipe, é realmente filme com ritmo e pegada de cinema. Há tradução de certas alegorias e liberdades poéticas da música para linguagem próxima do real, dentre outras adaptações necessárias (e felizes) que dotam o longa de identidade própria, longe de eventual e perigosa reverência exacerbada à matriz.

No campo das concessões (quase intrínsecas a projetos dessa envergadura e apelo popular), há pelo menos duas que enfraquecem ideologicamente Faroeste Caboclo, porque buscam justificar moralmente atos dúbios dos protagonistas. João mata um policial a sangue frio, e o ato é seguido pela exposição da motivação “nobre”. Da mesma maneira, lá para o fim, Maria Lúcia (como todos sabem) casa com Jeremias, não sem antes ficarmos cientes da dignidade contida na “entrega”.  Faroeste Caboclo tem um pé no risco e outro na facilidade, morde e assopra, pois visual e dramaturgicamente forte, enquanto ligeiramente paternalista com suas figuras.

O final, duelo na Ceilândia em frente ao Lote 14, é homenagem aberta a Três Homens em Conflito, de Sérgio Leone, tanto no que diz respeito aos enquadramentos quanto à sua dinâmica triangular. Pena o interesse residir apenas na alusão, já que como sequência em si é bem menos impactante do que se poderia esperar (rápida e ligeiramente anticlimática). René Sampaio simplifica tudo em prol da realidade (excelente opção), excluindo plateia, televisão e bandeirinhas, mas, a meu ver, peca por quase banalizar o embate. Falta pathos no encerramento desse filme que 9,5 entre 10 fãs da Legião Urbana quiseram realizado. Faroeste Caboclo está lá, finalmente na tela, passa e diverte, faz pensar, às vezes, mas pode soar um tanto decepcionante caso se espere o mesmo impacto causado pela composição de Renato Russo. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

sábado, 14 de dezembro de 2013

Doses Homeopáticas #11


CINE HOLLIÚDY é um filme joiado, como diriam os cearenses. O diretor Halder Gomes mostra algo verdadeiramente popular, não popularesco tal as globochanchadas. Recheia sua trama de personagens carismáticos e arquetípicos, comenta a própria luta do cinema para sobreviver ante as novas tecnologias (e em 1970, época na qual se passa, a TV era sua grande ameaça), e se apoia no idealismo de Francisgleydisson, exibidor de filmes, apaixonado tanto por artes marciais, quanto por contar histórias. Falado em “cearencês”, com expressões bastante locais (por isso as legendas), CINE HOLLIÚDY faz rir sem apelar tanto e parece repleto da memória afetiva de seu criador. Além disso, Edmilson Filho, intérprete do protagonista, é uma descoberta das boas. CINE HOLLIÚDY aproxima o cinema e o povo nordestino, já que ambos são, antes de tudo, uns fortes.


PAIXÃO E ACASO é precário, para dizer o mínimo. Na trama adaptada de uma peça do e pelo próprio Domingos Oliveira, certa psicanalista recebe visitas de um ente querido morto (vestido como Humphrey Bogart) e, seguindo conselhos do além, acaba se apaixonando por pai e filho ao mesmo tempo. Uma confusão amorosa sem graça, com piadas e situações forçadas, atuações discutíveis e um desleixo estético típico de alguns longas de Domingos, mas aqui sem, pelo menos, o apoio de um bom texto. Fica difícil achar qualquer passagem interessante. Os pacientes da protagonista, e suas respectivas sessões, a intrusão de um narrador inútil e de “fantasmas” idem, tudo soa amontoado e liquefeito em meio a diálogos repletos de auto importância injustificada pelo conteúdo raso. Enfim, esquecível.


Já PRIMEIRO DIA DE UM ANO QUALQUER, do mesmo Domingos Oliveira, merece alguns bons elogios. Pode não estar no nível de SEPARAÇÕES, ou de TODAS AS MULHERES DO MUNDO, (neste caso, se quisermos tornar a comparação quase covarde), mas tem boas passagens sobre aquilo que o cineasta parece mais apreciar: pessoas e os infortúnios de certos relacionamentos. Na história, várias pessoas passam o primeiro dia do ano numa propriedade fluminense afastada do centro. Todos ricos e bem sucedidos, ou quase todos, eles, contudo, não são imunes a desilusões amorosas, decepções, infidelidades, rancores e outros pesares. Por mais que haja exposição de uma boa parcela de problemas, PRIMEIRO DIA DE UM ANO QUALQUER é um filme otimista, que transborda a paixão de seu criador pela complexidade humana, paixão esta tão bem verbalizada em dado momento pelo personagem interpretado por ele próprio.


Lá do início da carreira do argentino Gaspar Noé, vem CARNE, média-metragem com muitos dos elementos recorrentes nos posteriores filmes do cineasta. Abre com a morte e o esquartejamento de um cavalo, evento seguido de parto registrado quase em close da genitália feminina. Morte e vida irmanadas na carne que sangra. O protagonista é um açougueiro irascível e obcecado pela filha. Em dado momento, ele agride violentamente um inocente por suspeitar dele como abusador da menina. A crueza da imagem combina muito bem com a aridez emocional desse personagem principal. A montagem é dinâmica, algumas transições provocam desconforto (proposital) e auxiliam na criação de uma atmosfera muito particular, onde explode a barbárie constatada muito mais nos atos e pensamentos do açougueiro, do que propriamente na sua rotina de abater animais e fazer deles alimento.



Os 179 minutos de AZUL É A COR MAIS QUENTE passam que a gente nem sente. Abdellatif Kechiche mostra, mais uma vez, sua capacidade quase irrepreensível de naturalizar o que o cinema tende a transformar em espetáculo quase por vocação. O amor entre as duas garotas, a jovem Adèle e a calejada Emma, surge à primeira vista e avança como qualquer outro. As cenas de sexo são fortes e bastante excitantes, mas fiquei com a impressão de que a reiteração delas não acrescenta muito ao todo. AZUL É A COR MAIS QUENTE é sobre a educação sentimental de Adèle, seu crescimento pessoal mediado por um grande amor. Antes que eu esqueça, assim como em O SEGREDO DO GRÃO, Kechiche utiliza exemplarmente a comida como alusão à herança familiar. Há muito mais o que falar do filme, inclusive certas relativizações, mas o espaço é curto. Independente dos superlativos utilizados para defini-lo (a meu ver, alguns muito justificados, outros nem tanto), AZUL É A COR MAIS QUENTE é obrigatório dentre os filmes em cartaz. Já dá até vontade de rever.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Avante, Manoel


"O cinema só trata daquilo que existe, não daquilo que poderia existir. Mesmo quando mostra fantasia, o cinema agarra-se a coisas concretas. O realizador não é criador, é criatura" 

Manoel de Oliveira


Manoel de Oliveira completa hoje 105 anos. Não costumo registrar aqui no blog os aniversários, contudo é incontornável a longevidade e, mais que isso, a lucidez criativa desse cineasta cuja carreira começou em 1931, com o curta-metragem Douro, Faina Fluvial.

De seus filmes, vi apenas quatro. Não gosto de Um Filme Falado, essencialmente uma aula de geografia/história cansativa, e de Sempre Bela, sequência um tanto solene demais de A Bela da Tarde, de Buñuel. Gosto muito de O Estranho Caso de Angélica e de Singularidades de Uma Rapariga Loura. Aliás, duas obras-primas.

De qualquer maneira, há de se celebrar, tanto a expressiva idade de Manoel, quanto a incessante vitalidade de seu ímpeto criador.

domingo, 8 de dezembro de 2013

Contrastes Humanos


Em busca de contrastes, o diretor John Sullivam parte numa jornada de conhecimento, despindo-se de vestes caras para enrolar-se em panos velhos que denotam pobreza. O filme de Preston Sturges, Contrastes Humanos, tem, então, como figura central esse diretor de cinema, homem à procura da realidade moradora longe dos palacetes aos quais está habituado. Ele quer fazer um filme engajado que mostre todas as mazelas do povo americano atingido pela grande depressão. Claro, consegue aval do estúdio empregador apenas com a condição de revestir tal jornada com a lona do circo midiático.

Não demora e notamos a “dificuldade” de levar tal intento a cabo, justo porque ele é seguido de perto pela caravana que documenta a viagem lhe oferecendo conforto quando bem entender. Numa lanchonete, com apenas 10 centavos no bolso, Sullivam recebe ajuda de uma desgostosa aspirante a atriz, que, tão logo ciente do segredo daquele falso mendigo, passa a o acompanhar, igualmente maltrapilha. Por mais que o casal tente continuar seu périplo quase franciscano pelo interior estadunidense, sempre acabam no trailer ou mesmo na mansão dele. Há algo os tragando para fora de toda encenação empreendida, o que acaba trazendo inevitável artificialismo à experiência. Os pobres de verdade não têm escape, já os ricos passando-se por eles podem parar quando cansarem da brincadeira.

Chegamos quase à seara do filme-tese em Contrastes Humanos, pois ele é conduzido por um viés crítico específico, julgamento não tão velado assim de artistas pseudo-engajados sem vivências que fundamentem e legitimem eventuais investigações das classes menos favorecidas. Essa “hipocrisia” emerge nas voltas de Sullivam ao aconchego e na “verdade” que alcançará tão e somente depois de viver situação limite, daquelas definidoras de uma vida. Ali ocorre a edificação do novo homem e, por que não, de um entendedor dos inúmeros caminhos percorridos por sua arte para alcançar relevância. O final solar não é apenas convenção, mas, sobretudo, recompensa ao protagonista por transpassar a fase essencial de aprendizado.

Relativamente bem-humorado (algumas gags soam desajeitadas), Contrastes Humanos propõe-se ilustrar uma visão ofertada pelo posicionamento nada indulgente de Sturges frente a seu próprio ofício e colegas de profissão. Como todo bom cinema, apresenta ideias, ainda que peque pela falta de sutileza ao induzir o desfecho feliz. Fica a cargo do espectador mais ligado estabelecer ou não concordância com as opiniões defendidas no filme. Mesmo assim, Contrastes Humanos traz relevante contribuição para o diálogo entre artistas e formas de construção cinematográfica, bem como às possibilidades de ressonância do cinema no público, tudo isso embalado numa narrativa clássica, ritmada bem à moda das boas tramas do cinemão americano de antigamente.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

domingo, 1 de dezembro de 2013

De Olhos Bem Fechados


De Olhos Bem Fechados (1999) é o testamento cinematográfico de Stanley Kubrick, ele que foi um dos mais importantes diretores da história. Recebido na época com desconfiança, sinal de declínio para muitos, todavia o longa é bastante afinado com as obsessões recursivas de seu criador, homem crente, por exemplo, na exaustão como caminho para algo próximo do perfeito. O protagonista, incialmente do conto Traumnovelle, de Arthur Schnitzler, no qual o filme foi baseado, é Bill (Tom Cruise), bem-sucedido médico nova-iorquino. Após festa onde tanto ele quanto a esposa, Alice (Nicole Kidman), flertam entre a inocência e o perigo com pretendentes aleatórios, fato a princípio sem maiores danos, Bill se vê confrontado pela quebra da confiança na mulher, onde alicerçava a segurança de sua vida.

Alice não traiu seu marido, não dormiu com alguém, apenas admitiu, sob o efeito da erva, ter idealizado relação com desconhecido marinheiro numa das viagens do casal. Ora, sabemos, a fantasia passa muitas vezes ao largo da vontade/necessidade de concretização, mas para Bill tal “confissão” surge como indicativo da força sexual da esposa, com a qual não parece lidar muito bem. Passa, então, a ser atormentado frente a ideia de Alice ser possuída por outro no terreno entre a lascívia e a imoralidade. Assim, abalado, ele sai para atender chamado profissional na madrugada (véspera de Natal) em que será cortejado pela filha do paciente recém-falecido, quase consumará sexo com prostituta e acabará, antes de voltar para casa, num ritual misterioso. Para Bill, só é permitido entrar nas vertentes de seu próprio desejo a partir do instante em que constata a suposta independência sexual de Alice. Se ela pode, ele não? Vendeta pura.

Como num pesadelo repleto de estágios, mais real e ordinário que nós mesmos podemos conceber num primeiro momento, Bill adentra na tal cerimônia orgiástica em meio a pessoas fantasiadas e mulheres submissas ao prazer alheio. A atmosfera onírica proposta por Kubrick é calcada na construção imagética e no expressivo aporte dramático da trilha sonora, elementos que nos transportam - assim como ao protagonista - quase à realidade paralela onde o desejo não vê barreiras e manifesta-se de maneira primitiva. Bill presencia cenas de sexo desobedientes dos códigos sociais vigorantes, homens e mulheres ocultos deliciando-se ao ver ou “consumir” vestais igualmente mascaradas. Algo mais libertador que dar vazão aos anseios recônditos sem qualquer culpa, pois na ignorância?

De Olhos Bem Fechados é digno do gênio responsável por outras obras inesquecíveis como 2001 – Uma Odisseia no Espaço, Laranja Mecânica, Nascido para Matar, Glória feita de Sangue, etc. Investindo fundo na psicologia de seus personagens, Kubrick subverte, também, o papel da celebridade ao escalar para seu derradeiro filme o casal queridinho da época, trazendo suas figuras (diegéticas ou não) para o espectro comum. Assim sendo, não são nada aleatórias as cenas iniciais (Kidman inclusive urina banalmente de porta aberta) atentas à “humanidade” longe da idealização sobre abastados da Big Apple e astros de cinema. Especulações acerca da inspiração maçônica para o ritual visto no filme ficam em segundo plano quando se percebe a real intenção de Kubrick: explorar as complexas vias pelas quais o desejo escoa do nascedouro até a superfície. No final, a culpa evidenciada por meio do choque entre o objeto do “pecado” e o da paixão serve como desculpa para o homem confessar suas falhas em busca de absolvição. Bill e Alice seguem em frente, não sem sequelas, mas saltando pactualmente sobre neuroses e obsessões, uma vez conscientes de sua primal fragilidade. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema