quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

CINEMA A DOIS | DENYS ARCAND – As Invasões Bárbaras (2003)


Quinze anos depois, Denys Arcand reúne novamente os personagens de O Declínio do Império Americano, agora em As Invasões Bárbaras, até então seu trabalho mais sutil e simples (no melhor sentido da palavra). Arcand comove ao abordar temas atuais e pertinentes, sem forçar a barra ou apelar ao dramalhão, pelo contrário, aliás, como é comum ao seu estilo, equilibrando as cargas de emoção e razão. A relação de Rémy (personagem principal) com o filho marca as passagens mais importantes do filme, nas quais são expostas dificuldades afetivas antigas. Anos depois, o pai, também mais maduro, sofre a ausência do filho e dos amigos.

Arcand “remonta” ou recoloca esses personagens: os amigos de Rémy, o filho, a ex-mulher e aquela que será fundamental ao desfecho do drama. Todos se movimentam a partir da notícia do estado terminal do protagonista. As Invasões Bárbaras consegue conciliar o micro e o macro, partindo de um ponto comum. O drama vivido pelos personagens, o imbricamento entre os mesmos e os fatores sócio-políticos se auto-pertencem, como que fazendo parte de um grande sistema. O mais bonito do filme é a harmonia obtida por Arcand entre o que ficou no passado condenado e o que se tem no presente. Uma espécie de acerto de contas que, como na vida real, só é possível ao amadurecermos e estarmos dispostos a enfrentar nossos próprios fantasmas.  Tá pra nascer um filme tão bom!!!!
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Em O Declínio do Império Americano os personagens celebravam a beleza das contradições, os amores entremeados por traições ocasionais, lembravam saudosos de histórias transgressivas e de engajamento. Nas conversas, o sexo assumia o protagonismo devido, isso numa entorno que teimava (e ainda teima) em lhe marginalizar. Já em As Invasões Bárbaras, a sequência, o assunto é quase unicamente a morte, a falência do material humano bem como de certo projeto de sociedade. A relação complexa e conturbada entre pais e filhos surge nesse panorama como indicativo da dificuldade de coexistir e de, muitas vezes, deixar de repetir determinados padrões antes recriminados.

Rémy está morrendo. Não exibe mais a vitalidade de antes e o apetite sexual que lhe garantiu notoriedade no meio dos amigos intelectuais, entre eles algumas de suas amantes. À espera da morte, reencontra o filho e passa a limpo seu passado, expõe o medo de desaparecer sem deixar qualquer marca relevante, invadido sem possível resistência por uma doença incurável. As Invasões Bárbaras é um filme sentimental, não por apelar deliberadamente aos nossos sentimentos, mas por se utilizar deles a fim de amplificar – tonando humano, portanto próximo de nós – o decreto de uma derrocada. Com Rémy não se foi apenas o próprio, mas toda uma geração. 


 Por Ana Carolina Grether e Marcelo Müller

sábado, 22 de fevereiro de 2014

O Cavaleiro Solitário


O Cavaleiro Solitário é baseado na famosa criação de George Washington Trendle, desenvolvida em idos tempos pelo escritor Frank Striker para rádio, cinema e televisão. As aventuras do Ranger John Reid (Armie Hammer) e de seu fiel escudeiro, o comanche Tonto (Johnny Depp), retornam agora sob a batuta da Disney, do produtor Jerry Bruckheimer e do diretor Gore Verbinski. Tais assinaturas juntas sinalizam o tipo de filme a esperar: sério candidato a blockbuster da temporada, com o carimbo “para toda a família” inerente à maioria das realizações da casa de Mickey. A ação se passa nos Estados Unidos, fim do século XIX, época em que muitos americanos andavam armados e lutavam contra os nativos por espaço.  A civilização necessita de progresso e ele parece vir sobre os trilhos da malha ferroviária que começa a ser construída para interligar o país.

Na viagem que o traz de volta à pequena cidade natal, onde moram o irmão, a cunhada e o sobrinho, John Reid testemunha o escape do bandido Butch Cavendish (William Fichtner), a quem as autoridades traziam sob custódia para enforcamento. Também ali o filho-pródigo conhece Tonto, seu futuro parceiro no encalço do fugitivo. Apelidado Kemosabe (irmão errado), esse homem, crente no poder da lei para além da força bruta, pegará em armas buscando justiça e vingança. Já o cúmplice selvagem o ajudará por acreditar que ele ressurgiu dos mortos. Ainda há o cavalo espiritual, provavelmente o melhor coadjuvante do filme, centro das cenas mais engraçadas, ao menos.

Johnny Depp inclui outra figura à sua galeria de tipos insólitos, na prateleira bem ao lado de Jack Sparrow, com quem seu índio parece irmanar-se em matéria de esperteza. Aliás, como a história é contada por Tonto a um garoto nos tempos atuais, e levando em consideração a inclinação do personagem ao exagero, deve haver bom tanto de lorota na dramatização do passado de glórias onde ele supostamente ajudou a derrotar os gananciosos que queriam fazer da novidade um elemento de poder. Já Armie Hammer, o virtual protagonista, soa burocrático, seja por não conseguir transitar com sutileza entre iniciais convicções pacifistas e posteriores impulsos vingativos, ou por simplesmente acabar eclipsado pelo carisma e talento de Depp.

A duração do longa (149min) não se deixa sentir pelo ritmo que mescla ação e humor de maneira eficiente. Aliás, “eficiência” parece mesmo a expressão definidora de O Cavaleiro Solitário, peça de estúdio milimetricamente construída para edificar uma nova franquia, sem tantas preocupações com estilo e profundidade. Contudo, justiça seja feita, esse é o propósito pelo qual o filme de Verbinski merece tanto ser visto quanto analisado. O Cavaleiro Solitário é divertido, ainda que trate subtextos (ganância, amor, culpa, senso de dever, entre outros) apenas como escada para grandiloquência e comédia. Obras como essa evitam o erro como o diabo foge da cruz, enquanto outras não hesitam arriscar-se. Mas não sejamos ranzinzas, que há mal em, de vez em quando, a aventura pela aventura?

O Cavaleiro Solitário de alguma maneira resgata o western como gênero para o grande público. Não convém colocá-lo no mesmo patamar dos faroestes de outrora, mas ao menos ele explora corretamente (repito, dentro do intento) esse território sacralizado pelo cinema. Sem solavancos, passamos de personagem em personagem, de situação em situação, satisfeitos se atentos à sessão e não às ressonâncias pós-audiência. O menino vestido de cowboy que ouve tudo do velho Tonto nos representa. Ele se empolga com mocinhos e bandidos, honradez e vilania, assim como reagimos no lado de cá da tela ao seguir o ritmo frenético dos acontecimentos, tal se voltássemos à infância, onde éramos menos exigentes e fisgados por histórias escapistas do bem contra o mal. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Doses Homeopáticas #15


Não é arbitrário em PAIS E FILHOS o cineasta Hirokazu Koreeda voltar as principais atenções a um dos pais das crianças trocadas na maternidade, o homem jovem que devota boa parte do tempo ao trabalho. No filme, muito se discute o valor do sangue, da tradição, da herança deixada de uma geração para a outra. Esse pai workaholic e sua mulher passiva não são apenas visivelmente menos amorosos do que o outro casal, mas vítimas/signatários do legado da geração pós-Segunda Guerra que precisou baixar a cabeça e trabalhar para a reconstrução do país. A alta exigência – da educação à conduta profissional - foi um mal necessário, mas deixou como espólio à cultura nipônica a obsessão pelo eficiente à custa de asfixiar o bom e velho contato humano. Lá pelas tantas, o pai rico diz quando pressionado a ficar mais junto do filho: “ninguém pode me substituir no trabalho”.  Logo após, o mais pobre responde: “ninguém pode lhe substituir como pai de seu filho”. Mais do que representantes de esferas sociais distintas (e se assim estritamente o fossem, o filme seria raso), eles representam visões de mundo opostas nesse excelente filme de Koreeda.


Primeiro longa de Tom Hanks como diretor, THE WONDERS – O SONHO NÃO ACABOU é um daqueles filmes que deixam a gente de alto astral. Se passa na década de 60, quando 09 entre 10 jovens americanos queriam  ser astros de rock. A banda The Wonders, feita de garotos do interior, experimenta num curto espaço de tempo as fases de muitos grupos de verdade, ou seja, o sucesso repentino (neste caso, embalado pelo ritmo contagiante de That Thing You Do!), a euforia dos primeiros shows, um eventual fracasso, o pico e o início dos problemas incontornáveis. A reconstrução de época é um dos pontos altos do filme, assim como a alusão a coisas que hoje nos parecem quase estranhas, como certo fascínio romântico das pessoas pela TV (naquela época ainda um meio de comunicação relativamente novo), uma ingenuidade que permeava as relações e um resquício de fé no outro. Enfim, THE WONDERS – O SONHO NÃO ACABOU é para ver com sorriso no rosto.


Se há uma coisa que falta no Brasil é cinema de gênero. Portanto, de antemão, é de se comemorar uma iniciativa como a do cineasta Marco Dutra, o seu QUANDO EU ERA VIVO. Se no primeiro longa de Marco (co-dirigido com Juliana Rojas), TRABALHAR CANSA, o horror era um ingrediente, aqui ele passa a prato principal. O homem que volta para a casa do pai após a separação encontra seu antigo lar sem qualquer lembrança da mãe morta. Aos poucos, resgata as peças antigas, recoloca quadros, escurece a casa, ou seja, a torna como antes, para desespero do pai que vê o passado retornar. Tudo gira em torno desse adulto ligado à figura da mãe mais por força demoníaca do que necessariamente por saudade. Ainda que seja um filme admirável sob certos aspectos, sobretudo no que diz respeito às ótimas atuações e ao desenho de som engenhoso, QUANDO EU ERA VIVO se ressente da falta de um ponto alto, parece naufragado numa atmosfera bem construída, é verdade, mas que não evolui para além de armadilhas que ele mesmo constrói.


A covardia surge já nas primeiras cenas, filmadas com celulares. Policiais interceptam violentamente jovens numa estação de metrô, até que um deles atira à queima roupa. Retrocesso temporal da imagem amadora para o dia anterior, o último do rapaz que morre por conta do desprepara emocional da polícia. Numa linguagem que busca o tom cotidiano até onde é possível, FRUITVALE STATION – A ÚLTIMA ESTAÇÃO trata de exumar a vida desse rapaz, tomando por base suas últimas 24 horas, mostrando dificuldades familiares, profissionais, o passado criminal, ou seja, tratando de construir uma figura complexa, sem muitos sinais de condescendência, ainda assim vítima da brutalidade desmedida. O diretor Ryan Coogler foge de paternalismos, mas, ao mesmo tempo, lança um olhar fraterno a esse rapaz que buscava começar do zero, reavendo o amor da namorada e cultivando relação próxima com a filha. Em tempos de discussão sobre a validade dos chamados “rolezinhos”, é imprescindível assistir a um filme como FRUITVALE STATION – A ÚLTIMA ESTAÇÃO.


Mais um privilégio: assistir ERA UMA VEZ EM TÓQUIO em tela grande, numa cópia restaurada. O clássico de Yasujiro Ozu é certamente uma obra-prima, se trata de um dos grandes filmes ancorados na família, na dificuldade da relação entre pais, filhos e demais parentes. O casal que vai a Tóquio visitar os filhos é recebido com uma alegria aparente que logo se transforma em desconforto. Para as “crianças” o trabalho sempre é prioridade, as atividades cotidianas não podem cessar, e os pais ficam meio à deriva, jogados de um lado para o outro, encontrando alento apenas na companhia da esposa do filho que provavelmente morreu na Guerra. A capital japonesa não é aquele oásis que os idosos imaginavam, tampouco os filhos estão bem estabelecidos como faziam crer de longe. Ozu registra tanto a família quanto a cidade sem condescendência, ainda que de maneira generosa e acolhedora. ERA UMA VEZ EM TÓQUIO contempla com viés crítico, carregado ainda de doses de melancolia.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

CINEMA A DOIS | DENYS ARCAND – Amor e Restos Humanos (1993)


Os anos 1990 são muito bem representados e retratados por Denys Arcand em Amor e Restos Humanos, filme de 1993, aliás, seu primeiro realizado na língua inglesa. Recheado de obsessões, histerias e perversões, quase todas elas voltadas para o cenário sexual, o longa contextualiza uma sociedade egoísta, assolada pela solidão, pela dificuldade de viver os afetos e demonstrar sentimentos, repleta de fraquezas.

Os personagens são a própria representação dos tais “restos humanos”, o que sobrou da busca do amor ideal, da definição da sexualidade a partir de padrões rígidos, moralistas e, até certo ponto, irreais. Surgem crises existenciais de todo tipo, concomitantes ao inconsciente coletivo também perturbado socialmente e devastado pelo início da AIDS. Arcand parece renovar seu estilo em Amor e Restos Humanos. Menos organizado, pouco filosófico, mais prático e dinâmico, exatamente como os anos 1990 na América.
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Não importa o gênero, a orientação sexual, as taras, todos em Amor e Restos Humanos tateiam desorientados procurando algo a mais, uma satisfação que parece improvável em meio à dificuldade dos relacionamentos ou mesmo frente aos perigos à espreita, sejam eles virais ou humanos. O primeiro filme em inglês de Denys Arcand se foca nas patologias típicas de uma urbanidade caótica, onde convivem personagens essencialmente soturnos e noturnos à caça de algo que dê suporte às suas vidas repletas de frustrações, desgostos, de um vazio mais geracional do que particular.

A televisão é sintomática da desordem. Cada troca de canal expõe uma desgraça diferente, mostra um mundo fraturado em sua ordem social. O sexo é a via pela qual trafegam as mais diversas pulsões, isso visto não apenas na figura da dominatrix (e sensitiva) que realiza as fantasias alheias, mas também no serial killer, no garoto fascinado pelo protagonista e, sobretudo, no próprio, alguém que parece vagar mais do que qualquer outro, a despeito da aparente segurança. Amor e Restos Humanos radiografa muito bem o início dos anos 1990 e seus insones em busca de afeto entre o que restou.


Por Ana Carolina Grether e Marcelo Müller

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Do sofrimento à arte


A beleza maior da vida reside nas surpresas que brotam não se sabe de onde nem por qual motivo. Uma exuberante orquídea assim sempre será, independente de sua origem. Quando provém de ambiente rico em água e nutrientes, tamanha formosura torna-se latente. Contudo, se a mesma flor nasce em região inóspita, sua beleza resplandece ainda mais. Além da estética inerente à ela, o entorno agrava e potencializa sua capacidade de encanto. Como explicar? Há coisas, como belos roteiros e obras da literatura nos mostram aos borbotões, que não precisam de razões concretas, muito menos definitivas. Pairam no ar feito mágica e atingem em cheio nossos corações atordoados pelo aparente equívoco. 

Faz algumas poucas semanas, assisti ao badalado 12 Anos de Escravidão (12 Years a Slave, 2013), postulante ao Oscar de Melhor Filme de 2013. Acusado de maniqueísta por alguns críticos, algo que segundo minhas percepções não o é, o filme possui carga emocional elevada, roteiro bem amarrado, além de interpretações homogêneas de ótimo nível. Mas, entre todos os componentes da obra, um teve maior saliência em minha audiência. Certas passagens retratam a erupção do blues, estilo musical com forte poder de influência no meio artístico e popular até os dias atuais. Nos campos de algodão, enquanto açoitados para aumentar a produtividade do fazendeiro, os escravos cantam lamúrias em coro, num ritmo cadenciado e bastante característico. Tomadas belíssimas reconstituem o berço do blues, onde, sem pai ou mãe, surge na condição de expressão da alma, cântico dos desafortunados. 

Como não se emocionar ao ver, em condições totalmente adversas, germinar tamanha consistência artística e cultural? O retrato de uma época. De um lado, os negros, os animais; do outro, os brancos, senhores de tudo, menos da razão. Assim, a orquídea mais bela é a menos provável de ser. Racismo e intolerância existem muito por aí, mas fica a esperança da sua franca extinção. Enquanto isso, fica a certeza de que seremos constantemente surpreendidos no alto da nossa arrogância.

Por Rafael Müller

domingo, 9 de fevereiro de 2014

CINEMA A DOIS | DENYS ARCAND – Jesus de Montreal (1989)


Tive a impressão de Jesus de Montreal ser um dos filmes mais dramáticos de Denys Arcand, isso não só por que Daniel Coulombe, o protagonista, interpreta Jesus durante o martírio da Paixão, mas também por conta dos componentes não teatrais que reforçam essa dramaticidade fora da encenação propriamente dita. Embora o Jesus apresentado por Arcand seja moderno, dotado de características bastante humanas, e o próprio discurso questione os valores religiosos na atualidade, ainda assim o filme carrega a doutrina cristã por excelência e nos convoca a refletir sobre a perda da fé na humanidade, a compaixão, a solidariedade etc.

Além da renovação da figura de Jesus e a defesa dos valores religiosos, Denys Arcand reafirma em Jesus de Montreal uma crítica ao consumismo, à redução do feminino a objeto de desejo e nada mais, entre outros posicionamentos mais ou menos evidentes. A meu ver, mesmo sem grandes atuações, exceção feita ao intérprete de Daniel, o filme se desenvolve de maneira agradável, ainda que sem grandes surpresas. Os atores cumprem com eficiência seus papéis, mas nesse quesito não há muito destaque. No entanto, o bom roteiro funciona como base à direção sempre competente de Denys Arcand.  Ao que se propõe, o filme funciona e, principalmente, suas ideias estão em total consonância com o que vivemos fora dele, na vida real.
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Para modernizar a Paixão de Cristo é preciso adicionar humanidade ao mito. Jesus de Montreal, segundo longa de Denys Arcand, confronta o dogma, mas não a figura central. Nele, um grupo de atores lida com as restrições da diocese para fazer valer uma visão artística repleta de contradições, dúvidas, preocupações existenciais, sem, contudo, macular a imagem de Cristo. Na verdade, escandalizada fica a Igreja quando contradita em qualquer nível, cega diante do trabalho que, de alguma maneira, renova os ideais apregoados pelo profeta, o dito filho de Deus. Portanto, no filme se questionam os fatos, os caminhos, mas se reafirma positivamente a finalidade da doutrina cristã (acredite-se nela ou não).

Jesus de Montreal poderia apelar menos às obviedades no que diz respeito à influência da trajetória do messias na vida dos atores. A expulsão dos vendilhões do tempo ganha roupagem contemporânea num confronto com a publicidade e a tentação do demônio surge nas palavras sedutoras do advogado que quer transformar arte em mercadoria, por exemplo. Nesse tocante, mais eficiente é a alusão final à ressureição por meio dos “milagres” promovidos pelo homem comum. Morte vira vida, não para si, mas ao outro. É como diz um dos atores: “Afinal, a vida é bem simples, só parece insuportável quando pensa unicamente em você mesmo. Se esquecer-se de você, e se perguntar como ajudar os demais, a vida se faz perfeitamente simples.” Jesus de Montreal peca por excesso, mas não por omissão.


Por Ana Carolina Grether e Marcelo Müller

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

O Homem de Aço


Esqueçamos brevemente que O Homem de Aço é um dos longas mais caros da história, com custo de produção estimado em US$ 225 milhões. Da mesma maneira, não veem ao caso as projeções de bilheteria e outras questões aliadas ao marketing. A nova aventura do super-herói mais conhecido do planeta é a tentativa da DC Comics de emplacar outro sucesso (se possível de público e crítica como na trilogia Batman), claro, dessa maneira fazendo frente à concorrência da Marvel. Dito isso, atenhamo-nos ao cinema, àquilo que merece atenção para além dos números. Grande ou pequeno, um filme merece ser analisado por suas características cinematográficas, simplesmente porque bilheterias fartas ou parcas não necessariamente apontam para direções qualitativas.

Baseado no argumento de Christopher Nolan e David S. Goyer, o diretor Zack Snyder tomou para si o desafio de moldar Superman aos novos tempos. Não há como negar: O Homem de Aço é reboot, tentativa de ressuscitar uma franquia. Vemos o planeta Krypton morrer enquanto forças militares chefiadas por Zod (Michael Shannon) apelam ao golpe e o cientista Jor-El (Russell Crowe) deposita em seu filho Kal-El (Henry Cavill) a esperança de toda raça. Estamos carecas de conhecer a tragédia, entretanto agora a visualizamos em toda sua “beleza”. As sequências são grandiosas, tanto plástica quanto dramaticamente e, ainda que ancoradas nos efeitos especiais, repletas de conteúdo. Partindo dessa gênese, os dois sobreviventes principais estão ligados em irremediável rota de colisão. 

O “humano” Clark Kent é um “fantasma”.  Muda-se constantemente, vai e vem sem deixar rastros ao passo em que recorda a angústia de crescer diferente, à margem, mesmo amparado pelo amor dos pais adotivos. Essas idas e vindas temporais são, quem sabe, a melhor sacada do roteiro, pois intercalam os anos de formação e as aflições persistentes na fase adulta, onde Clark continua outsider. Não há lugar na Terra para alguém cuja existência responde a velha indagação: “estamos sozinhos no universo?”. A relação com Jonathan e Marta, a rememoração da juventude conturbada, a proximidade da verdade, os custos para guardar seu segredo, são elementos que enriquecem a edificação do protagonista, figura complexa e nuançada.

Eis que Clark encontra sua origem num polo glacial, junto com Lois Lane (Amy Adams). Assume, então, a missão de proteger os terráqueos da ambição megalômana dos kryptonianos insurgentes que sobreviveram à Zona Fantasma. A partir daí, O Homem de Aço ganha em tamanho, contudo perde em consistência. Clark escanteia suas fraquezas “terrenas”, tão bem exploradas antes como substrato, para se tornar o messias impávido que está entre nós para livrar-nos do mal. O que era visto num âmbito micro (família, colegas, ligações emocionais) passa ao macro, com lentes de aumento. Óbvio, não há como, por exemplo, colocar dois seres extraordinários lutando no centro de Metrópolis sem destruição em larga escala, mas será necessário gastar tanto tempo para triturar vidro e concreto? Problema de cunho cinematográfico ou dificuldade de transposição inerente à natureza fantástica da criação de Joe Shuster e Jerry Siegel?

O ator Henry Cavill surpreende ao sustentar com personalidade o uniforme imortalizado outrora por Christopher Reeve. Já Michael Shannon atribui ao General Zod, alguém destinado à guerra, equilíbrio entre obstinação e loucura. Ainda acerca das atuações, vale destacar Russel Crowe, como o pai determinado a salvaguardar seu filho e Amy Adams, talento a serviço de uma Lois Lane forte e decisiva. Justiça seja feita, até Kevin Costner e Diane Lane, respectivamente Jonathan e Martha Kent, cumprem muito bem seus papeis, mesmo com pouco tempo de tela.

Enfim, entre méritos e deméritos, O Homem de Aço é bom restart para a franquia Superman. Empolga ao delinear/desenvolver os personagens e decepciona ao reduzi-los posteriormente à coadjuvância da destruição desenfreada. Pode não ser o suprassumo “vendido” pelos trailers, mas estabelece interessante abordagem que alinha Kal-El às plateias não mais dispostas a ingenuidades e/ou artifícios tais como cuecas sobre as calças.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

domingo, 2 de fevereiro de 2014

CINEMA A DOIS | DENYS ARCAND – O Declínio do Império Americano (1986)


Quatro homens e quatro mulheres imersos em intelectualismos e crises existenciais figuram este tragicômico filme de Denys Arcand, que se passa em 1986. Arcand faz questão de dividir bem esse grupo e, não à toa, adota um estilo sexista para ilustrar os dramas vividos pelos gêneros, ambos em sua máxima potência de caricaturas. O filme começa com os homens preparando um jantar e divagando sobre necessidade sexual, aludindo a filósofos e suas teorias, enquanto as mulheres, na cidade praticando exercícios, também divagam sobre sexo, desejo reprimido e, hipocritamente, desdenham de filósofos e teóricos, pois praticam exatamente aquilo que rechaçam.

O filme é marcado basicamente por diálogos sobre sexo, teorias filosóficas, política de esquerda e aspirações pessoais. Algumas pessoas podem achar essa narrativa enfadonha, uma vez que o foco é bem específico e retrata uma geração. Sem grandes apelos, e talvez daí venha o encanto do filme, Denys Arcand denuncia um momento histórico, político e social que está para acontecer, que está estourando e, diante dessa expectativa, das dúvidas, incertezas e instabilidades, ele nos mostra a angústia e apreensão dos personagens que procuram suas posições nesse contexto, sem deixar de refletir pelo que passam de maneira sofrida e questionadora. Um excelente filme que trata da forma mais elucidativa possível sobre as questões existenciais frente a um cenário real político-social.
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O Declínio do Império Americano (1986) fala estritamente a respeito de crises. Colapsos históricos citados, querelas de foro íntimo, a situação instável da época, tudo entremeado pelo sexo. Afinal de contas, os intelectuais, a maioria professores universitários, discorrem boa parte do filme sobre aventuras extraconjugais, experiências, taras e fetiches. Os homens de um lado, preparando a comida, vangloriam seus casos, festejam a “diversificação” como maneira de sustentar um casamento feliz, enquanto elas, na academia, não deixam por menos, mostrando que já se ia o tempo da fêmea submissa. Transar ou não transar, eis a questão, até onde é possível, bem resolvida por todos que ali estão.

Denys Arcand estreou no fim dos anos oitenta com esse filme verborrágico, no qual o sexo desempenha o papel de fundamentar relações. Nas entrelinhas, o desconforto inerente à busca por uma inalcançável felicidade duradoura. Quando todos juntos, as revelações antes recebidas com bom humor se tornam amargas, pois delas surgem constrangimentos, falsetes, mentiras e outros expedientes utilizados para manter status. O incômodo logo vai passar, afinal de contas a vida é mesmo feita de enlaces e rupturas, independente do entorno social, da moeda vigente, do sistema de governo, da moral e dos bons costumes. Num filme tão (bem) falado assim, a imagem final se impõe como símbolo de mudança, sinal de uma transitoriedade inexorável que afeta da mesma maneira o clima, as conexões humanas e a constituição dos impérios.   

Por Ana Carolina Grether e Marcelo Müller