quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Do sofrimento à arte


A beleza maior da vida reside nas surpresas que brotam não se sabe de onde nem por qual motivo. Uma exuberante orquídea assim sempre será, independente de sua origem. Quando provém de ambiente rico em água e nutrientes, tamanha formosura torna-se latente. Contudo, se a mesma flor nasce em região inóspita, sua beleza resplandece ainda mais. Além da estética inerente à ela, o entorno agrava e potencializa sua capacidade de encanto. Como explicar? Há coisas, como belos roteiros e obras da literatura nos mostram aos borbotões, que não precisam de razões concretas, muito menos definitivas. Pairam no ar feito mágica e atingem em cheio nossos corações atordoados pelo aparente equívoco. 

Faz algumas poucas semanas, assisti ao badalado 12 Anos de Escravidão (12 Years a Slave, 2013), postulante ao Oscar de Melhor Filme de 2013. Acusado de maniqueísta por alguns críticos, algo que segundo minhas percepções não o é, o filme possui carga emocional elevada, roteiro bem amarrado, além de interpretações homogêneas de ótimo nível. Mas, entre todos os componentes da obra, um teve maior saliência em minha audiência. Certas passagens retratam a erupção do blues, estilo musical com forte poder de influência no meio artístico e popular até os dias atuais. Nos campos de algodão, enquanto açoitados para aumentar a produtividade do fazendeiro, os escravos cantam lamúrias em coro, num ritmo cadenciado e bastante característico. Tomadas belíssimas reconstituem o berço do blues, onde, sem pai ou mãe, surge na condição de expressão da alma, cântico dos desafortunados. 

Como não se emocionar ao ver, em condições totalmente adversas, germinar tamanha consistência artística e cultural? O retrato de uma época. De um lado, os negros, os animais; do outro, os brancos, senhores de tudo, menos da razão. Assim, a orquídea mais bela é a menos provável de ser. Racismo e intolerância existem muito por aí, mas fica a esperança da sua franca extinção. Enquanto isso, fica a certeza de que seremos constantemente surpreendidos no alto da nossa arrogância.

Por Rafael Müller

Um comentário:

  1. Olá, Rafa

    Muito bom ler texto seu aqui no The Tramps, ainda mais quando é um tão bonito e pertinente como este. Confesso que não havia percebido essa gênese do blues que atravessa o filme.

    Valeu
    Abraços

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