terça-feira, 28 de junho de 2011

Meia Noite em Paris

É meia noite na Paris de Woody Allen. Enquanto os sinos tocam, um universo fantástico ganha forma, cores e muita luz numa inebriante versão do passado, composta com tons nostálgicos e situações singulares. Um tempo em que a cidade recebia figuras como Hemingway, Buñuel, Dalí, Picasso, Fitzgerald e tantos outros ícones da arte que compartilhavam conversas, festas, bebidas, mulheres e, porque não, a curiosa companhia do roteirista e pretenso romancista Gil. Não sabe quem é Gil? Lembre-se de que estamos falando da Paris de Woody Allen.

Gil é um roteirista de sucesso que deseja escrever seu primeiro romance. Em Paris com a futura esposa e os pais desta, Gil se divide entre roteiros turísticos e o deslumbramento pela cidade luz, que lhe parece cada vez mais adequada ao seu novo projeto de vida. Em meio a tudo isso, numa de suas caminhadas noturnas, é capturado por um misterioso carro que o transporta para 1920 e o coloca ao lado dos maiores artistas da época.

“Meia Noite em Paris” marca o retorno de Woody Allen à sua melhor forma, sublimando os erros com algumas produções descartáveis que o diretor entregou nos últimos anos. O filme, que se enquadra no modelo de comédia afiada e inteligente que se transformou em gênero pelas mãos do diretor norte-americano, possui uma infinidade de características comuns aos melhores exemplares da filmografia do cineasta. O toque especial da vez está na multiplicidade de referências neste filme que, se fosse resumido em um único frame, certamente serviria como cartão postal à capital francesa.

Gil e Zelda Fitzgerald curtem uma balada juntos.

Darius Khondji, diretor de fotografia dos esteticamente belíssimos “Um Beijo Roubado”, de Wong Kar-Wai e “Seven”, de David Fincher, entrega um trabalho magistral, beneficiado pela direção de arte de Anne Seibel – que recria magistralmente os diferentes períodos históricos do filme.

O elenco, afinadíssimo, justifica o desinteresse de Woody Allen em dirigir atores. Até mesmo Owen Wilson, que incorpora o arquétipo do neurótico de tantos outros filmes de Allen, não compromete a produção. Marion Cottilard está deslumbrante (o que parece cada vez mais redundante), Carla Bruni é Carla Bruni (o que basta como um grande elogio) e Léa Seydoux encanta mesmo em sua pequena participação.

Em seu tema principal, “Meia Noite em Paris” questiona se a vida cultural de hoje é melhor do que a de outrora. A resposta no filme fica evidente e mostra a inutilidade na busca da resposta, uma vez que cada período tem seu valor. É como questionar quem é melhor: Woody Allen ou Ingmar Bergman?

domingo, 26 de junho de 2011

Morro do Céu e uma ilha temporal.

Ouvi John Ford?
Gustavo Spolidoro é um dos maiores talentos gaúchos que o cinema nos apresentou, ao analisarmos os últimos anos idos. Arrisco-me mais, um dos maiores talentos brasileiros. Uma visão de mundo mesclada à apurada técnica em prol de uma obra peculiar, onde suas personas agregam-se mutuamente a situações peculiares tais como elas. A fluência narrativa é possível apenas pelos meandros do cotidiano, representado por roteiros de fortes amarras e coesão exemplar.

As palavras anteriores e posteriores deste pequeno escrito são devidas pela estreia nacional no último dia 24 (sexta-feira), em algumas das principais capitais tupiniquins, do documentário Morro do Céu, de Gustavo Spolidoro (Ainda Orangotangos, 2007). Integrante do projeto de documentários DocTV Brasil, financiado e exibido pela TVE, o filme recebeu nova edição, com minutos adicionais, quase 20, a fim de viajar por algumas salas da sétima das artes no Brasil. A câmera guiada de maneira solitária pelo diretor e “faz tudo”, segue alguns meses da vida interiorana de dois primos adolescentes de uma pequenina localidade denominada Morro do Céu, na cidade de Cotiporã - RS, Joel, mas velho e Bruno, ambos Storti.

Tive a oportunidade de participar da exibição no último dia 19 em Caxias do Sul - RS, com a participação do diretor e dos primos, agora, passados dois anos da feitura da obra, maiores e estudantes de teatro. Houve espaço, por exemplo, para certos esclarecimentos sobre a intervenção do diretor quanto a cenas não documentadas de fato, e sim dirigidas, contudo exatamente como ocorreram.

A primeira cena causou um impacto excêntrico em mim: má interpretada. Mas, calma aí, Rafael. É um documentário. Má impressão sem justificativa. Ah, já sei, logo refleti. É o sotaque carregado pela tradição e colonização italiana, típicas da região, as quais promovem diversos momentos engraçados, que nos parecem artificiais na tela. O português utópico, costumeiramente aplicado, não é utilizado, bem como outras maquiagens.

A narrativa é simples, mas é exatamente sobre ela que há a grande atração desta obra. O filme é indubitavelmente documentário, todavia de narrativa ficcional. Spolidoro abre mão da linguagem tipicamente documental, ou seja, câmera na mão, imagem tremida. Não. Aqui as imagens são geralmente estáticas, com câmera no tripé, ou mesmo apoiada em alguma superfície, emulando um personagem em terceira pessoa. A montagem brinca com cronologias, aproveita momentos de encaixe narrativos, é a engrenagem mestra do entendimento da história.

Spolidoro munido de seu dom utiliza de sofisticadas ferramentas para contar uma faceta da história de pessoas que vivem no interior, com 27 famílias ao todo, no caso específico do primos, de uma mecânica montada por autodidatismo e colheita de uva, sem grades ou sistemas sofisticados de proteção, vivendo, não melhor ou pior que nós, tidos civilizados, mas forma diferente. É de conhecimento comum que o ser humano possui necessidade de encenação, de representar personagens, talvez mesmo o seu, e o jovem cineasta a captura com maestria.



terça-feira, 21 de junho de 2011

mp3 no banheiro e DVD's


Falta de tempo é um problema global, as 24 horas do dia não mais parecem suficientes para fazer tudo que o cotidiano exige. Trabalho, universidade, atividades paralelas, leituras, atualizações, filmes, futebolzinho na televisão, um tempo com a família, com a namorada, e lá se vão semanas como se fossem horas. Minha escassez de tempo fez com que se tornassem raros momentos antes corriqueiros, como quando ligava o som e ficava simplesmente ouvindo música, curtindo as velharias que me agradam ou mesmo tentando achar em sonoridades novas, algo que me fizesse parar e prestar atenção. Ouço muito menos canções do que há, por exemplo, cinco anos. Hoje em dia, o único momento em que me deleito com música é no banho, munido de meu celular, e sua bem-vinda função de reprodução de mp3. Sinal dos tempos.
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Nesta semana, com a compra do DVD do filme Chaplin, de Richard Attenborough, cheguei à marca de 300 DVD’s em minha coleção particular, todos originais, sem disquinhos comprados no camelô a “treis real”. Independente de qualquer coisa, meu orgulho advém menos da quantidade e mais da importância que cada um destes 300 possui para mim. Antes que alguém pergunte: não empresto. Podem me taxar de chato, ou qualquer outra coisa, mas prefiro a pecha de “mala” a meus filmes prediletos (e alguns até em DVD’s de edições esgotadas) indo e voltando danificados ou, pior, nem encontrando mais o caminho de casa. Eu sei, muita gente tem cuidado, mas, como sempre, os bons acabam pagando pelos maus. Adoro compartilhar, por isso convido as pessoas a assistirem os filmes em minha casa, ou providencio cópias, com o maior prazer.

domingo, 19 de junho de 2011

Toda juventude tem um quê de transviada


Dia destes, revendo Juventude Transviada, o cult de Nicholas Ray que eternizou a figura desgovernada de James Dean, fiquei pensando na quantidade de filmes que provavelmente beberam de sua fonte, alguns o homenageando, outros tantos plagiando signos seus, como se fossem novos. È certo que não teria como listar todos estes exemplares, que devem ser muitos, mas dois prontamente vieram a mim durante a sessão: o primeiro por conta de um detalhe, e o segundo pela grande proximidade de seu mote com o do filme estrelado por Dean.

Pois bem, em Juventude Transviada, o protagonista odeia que o chamem de “galinha”, isto por que lhe causa ojeriza qualquer paralelo com o pai, um homem submisso, capacho da esposa dominadora. É isso, chamou Jim de “galinha”, ele se descontrola e parte para a porrada mesmo. Quem mais na história do cinema é tal e qual? Marty McFly, da trilogia De Volta para o Futuro. Marty também odeia a sujeição do pai, o trepidante George. Quando Marty é chamado de “galinha”, igualmente é acionada uma ignição que o faz perder as estribeiras, e aí é confusão na certa (como diriam os textos das vinhetas de antigamente da Sessão da Tarde). Citação (homenagem?) descarada de Robert Zemeckis.

Outro filme que adoro e que também “paga pau” violentamente para Juventude Transviada é Footloose - Ritmo Louco. Jovem novo na cidade e com cara de bad boy é recebido com hostilidade, atrai encrenca, aceita o desafio para um “duelo motorizado de vida e morte”, apaixona-se pela namorada de seu rival e ainda tem um amigo meio escanteado pela maioria. Juventude Transviada ou Footloose - Ritmo Louco? Os dois. As semelhanças são incríveis. É certo que a forma e a articulação dos elementos cinematográficos de cada um os difere muito, mas não há como negar as diversas aproximações (certamente não coincidências) no que diz respeito à história, ao que é contado.

Não à toa Juventude Transviada virou referência, pois expressa com muita profundidade a fúria efervescente dos hormônios e conflitos juvenis, temas atemporais e sempre em voga. A questão é: homenagear ou copiar? Mero detalhe de julgamento subjetivo e sem relevância maior, se a obra que busca tais referências não for simples espelho torto, se tiver vida e pulsão próprias. Felizmente é o caso destes dois exemplos, que devem algo a Juventude Transviada, e que o citam, seja nas entrelinhas ou descaradamente.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Sofia faz de Um Lugar Qualquer, um lugar especial


Sofia Coppola poderia ter se recolhido confortavelmente à sombra do pai, Francis Ford Coppola, um dos mais importantes diretores de cinema da história. Também poderia ter se rendido perante as críticas negativas de sua atuação em O Poderoso Chefão 3, e decidido nunca mais pisar num set de filmagem. Mas não, ela quis ser diretora e ainda ostentar o sobrenome famoso. Tem se saído muito bem desde então, salvo um que outro equívoco, algo natural na carreira de qualquer um. Seu mais recente filme, Um Lugar Qualquer, iniciou carreira internacional de maneira controversa: venceu o Festival de Veneza, que na ocasião tinha como presidente do júri o ex-namorado de Sofia, Quentin Tarantino. Teria havido favorecimento a ela? Mais uma vez a cineasta teve de conviver com sugestões de que sua exitosa carreira está mais ligada aos grandes nomes que a circundam, do que necessariamente ao seu talento. Bobagem, Sofia tem brilho próprio.

Em Um Lugar Qualquer, Stephen Dorff interpreta Johnny Marco, um ator que vive no mítico Chatêau Marmont, hotel em que são permitidas as extravagâncias a que os astros de cinema e outros artistas são afeitos. Sua vida parece vazia, ele passa seus dias fazendo o que seus agentes orientam, indo a encontros cansativos, a festas chatas e andando aborrecido com sua Ferrari pelas avenidas de Los Angeles. Ele cansou, tem tudo e não precisa de nada, vive num estado em que seus desejos são prontamente atendidos, e isso tende a fazer com que, pelo menos a longo prazo, as coisas percam valor. A entrada de sua filha, interpretada pela carismática e talentosa Elle Fanning, de mansinho acende uma luz para Johnny, mas isto não é investigado de forma marcante por Sofia, ficando todas as emoções e transformações que os personagens sofrem ao longo do filme no sempre bem-vindo campo das sutilezas. Menos é mais, Sofia Coppola sabe e aplica bem isto. 

Tratado por seus detratores como uma tentativa canhestra de mesclar cinema independente americano com um tipo de narrativa mais européia (aliás, ataque constante dos que não gostam do cinema de Sofia), Um Lugar Qualquer é belo exemplar de um cinema que investiga personagens de dentro para fora, que aposta em tempos mortos e situações desprovidas de um sentido de “evento” para tratar suas figuras com mais humanismo, não cobrando delas ações e reações constantes. Sofia Coppola possivelmente terá de ouvir comparações e gracinhas durante toda vida, mas não há dúvida que seu cinema tenha vigor muito particular, que sua autoralidade seja fruto do talento que de fato possui, e não do sobrenome que carrega, de vez em quando certamente como um fardo que, mais do que lhe abrir portas,  constantemente cega os que não conseguem perceber sua pessoal e relevante visão artística. Sofia não é apenas filha de Francis, é uma Coppola por seus próprios méritos.

domingo, 12 de junho de 2011

O cinema americano Na Mira da Morte


Na Mira da Morte, estreia do aclamado crítico e teórico Peter Bogdanovich como realizador, nos agora longínquos anos sessenta, não poderia ter sido mais promissora. Peter era um dos diretores que amava (acredito que ainda ama) acima de tudo o cinema americano, em oposição à alguns de seus contemporâneos que, provavelmente pela ânsia em modificar a qualquer custo o status quo da então falida produção cinematográfica do país, cometeram pecados, especialmente no que diz respeito ao rebaixamento do cinema estadunidense. Este debute é uma homenagem aos gêneros que provavelmente povoavam seu imaginário cinéfilo, além de crítica expressiva ao público que, ele sim, segundo o ponto de vista do cineasta, estava provocando a modificação do cinema americano.

Boris Karloff, mítico intérprete, na época vítima do ostracismo, faz o protagonista de Na Mira da Morte, Byron Orlok, um ator dos idos tempos de ouro do cinema de terror que, não vendo mais propósito em atuar, opta pela aposentadoria, sob os protestos dos produtores que provavelmente faziam algum dinheiro com filmes ruins, apenas por que eram protagonizados pela legendária figura. Qualquer semelhança entre realidade e ficção não é mera coincidência. Em paralelo, desenrola-se a trajetória de Bobby, o arquétipo do americano médio, de vida confortável, fã de armas de fogo, parte de uma família que mais parece a Dor-Ré-Mi, ou seja, um cidadão acima de qualquer suspeita, mas que começa a ter ideias estranhas (segundo definição própria) e sai matando para aplacar uma ânsia que possivelmente nem ele consegue explicar.

O filme é uma vigorosa representação dos procedimentos e figuras cinemáticas considerados anacrônicos e que se esfacelaram perante o ímpeto da audiência por novidades. É uma bela homenagem ao clássico cinema de gênero americano e a uma de suas figuras mais emblemáticas, acondicionada nesta visão pessimista da fração mais importante para que o cinema, ou qualquer outra forma de arte, sobreviva: o público e sua capacidade de entrega. Peter Bogdanovich parecer dizer que poderiam mudar tudo na indústria de cinema americano, desde os nomes, a política de estúdios e o star system, elementos que sempre guiaram esta verdadeira instituição cultural ianque, porém mudar a visão do público e seu crescente desinteresse e apatia seria o maior obstáculo, provavelmente intransponível. Uma das últimas cenas, em que representação e realidade se encontram para sublinhar a importância do imaginário na fruição do espetáculo, é das mais simbólicas, nesta tentativa de mostrar à audiência que havia algo mais no cinema, e que sem ele, o público, e sua disposição de entrega à magia da sétima das artes, a tela seria somente um espaço branco preenchido de luz, pronto para ser utilizado "mortalmente" por algum maníaco qualquer.

sábado, 11 de junho de 2011

Filmes de, e para enamorados

Porventura do Dia dos Namorados, resolvemos indicar filmes alusivos à data, mas não aqueles exatamente para ver juntinho com seu amor (porém que servem também para isto, é bom que se diga). O intento é, pelo pretexto da celebração dos enamorados, apontar filmes que versem prioritariamente sobre o sentimento multifacetado e poderoso que, em tese, é a força motriz do namoro: o amor.

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Indicação de Conrado Heoli: Blue Valentine
Derek Cianfrance compreende o amor. Longe do ideário com o qual o sentimento é visto, o amor do senso comum, Cianfrance pinta a história de um casal em tons azuis, frios e realistas em “Blue Valentine”. O drama, que estreia com o inadequado título “Namorados Para Sempre” no inadequado fim de semana do dia dos namorados, é contraindicado para o casal que procura ver impressa em película a plenitude que espera ter em seu relacionamento. Dean e Cindy, interpretados maravilhosamente por Ryan Gosling e Michelle Williams, são vistos em dois espaços de tempo de uma narrativa não-linear: quando passam a se envolver e quando o casamento de ambos parece se esfacelar.

Não há em “Blue Valentine” a velha fórmula que transformou o gênero romance em programa para mulheres – como a própria indústria classifica. Numa estética que prioriza a verdade frente à filtros, luzes e outros artifícios que glamurizam atores e cenários, Cianfrance desenvolve seu filme com o propósito de mostrar o amor como ele é. Não digo que o amor ideal não exista ou que o “felizes para sempre” seja impossível, mas em tempos onde tais ditas verdades são vendidas – e compradas – aos montes, através de uma infinidade de produções banais, prefiro ficar com a verdade de “Blue Valentine”.

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Indicação de Marcelo Müller: Amor à Flor da Pele
São poucos os filmes que conseguem, com tanta beleza poética, traduzir o sufocamento do amor, o represar de um sentimento tão intenso que, mesmo não cabendo mais em seu nascedouro, teima em não se consumar.

Primeiro a culpa dos que se julgam traídos, depois o afeto infiltrado pelas vielas da dor, e temos uma das mais belas histórias de amor que o cinema já mostrou. É romântico ao seu modo e sutilmente doloroso, uma obra-prima na qual os olhares falam mais que as bocas ansiosas uma pela outra.

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Indicação de Rafael Müller: Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças
Raiva, não aquela costumeira movida pelas engrenagens do ódio. Raiva de amor. Por sua vez, também serve de combustível ao ímpeto que transcende a razão, movendo o corpo e a mente a um local obscuro, talvez de acesso sempre disponível, todavia nunca efetivo. Lembrança boa, ruim, indiferente. A ignorância em certas oportunidades veste manto sagrado. O que tem mais valia, uma lembrança que por motivo específico nos incomoda, mesmo não tendo conhecimento de sua motivação, ou a completa e solitária indiferença? E os momentos que valeram à pena? Afinal, tal degrade sentimental não auxilia na formação do que somos hoje e do que seremos amanhã? Pois é, o ímpeto, movido pela raiva, que é extraída de nosso ser pelo ódio, irmão de mesmo pai e mãe do amor, opera, não milagres, ações e reações do tipo obscuro.

Nada mais belo do que o apego pela lembrança há pouco destinada ao abismo do esquecimento. Porque com ela, vão-se os sentimentos, esses nossos velhos amigos, conselheiros e nossos combustíveis vitais.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

...a gente quer comida, diversão e arte.


Morar no interior é bom, tem a calmaria, a praticidade do deslocamento, alguns locais em que ainda se pode ver o verde natural, entre outras tantas particularidades que fazem das cidades menos atrolhadas, boa opção quando buscamos qualidade de vida. Eu gosto e, mesmo tentado pelos grandes centros, não me imagino transitando cotidianamente numa selva de pedra, cheia de congestionamentos e dificuldades mil. Enfim, questão de preferências e prioridades. Caxias do Sul, onde moro, está em franca expansão, o que a coloca num meio termo interessante entre a grande e a pequena cidade. Mas tem horas que dá uma inveja dos que residem nas capitais, principalmente no que diz respeito à questão cinematográfica.

Quando leio notícias das grandes mostras, retrospectivas e ciclos, palestras e cursos, que ocorrem em São Paulo e Rio de Janeiro, para ficar apenas com os exemplos mais significativos, me sinto um Jeca Tatu cercado de atraso por todos os lados. Imaginem se algum dia cogitou-se trazer ao interior gaúcho a mostra mastodôntica de John Ford, que foi vista recentemente nas duas cidades supracitadas, ou mesmo a retrospectiva completa de Alfred Hitchcock que no momento toma de assalto o Centro Cultural Banco do Brasil, na terra dos cariocas. 

Aqui, quando ocorrem iniciativas como a recente Mostra 1959 – o Ano Mágico do Cinema Francês, o público acaba não fazendo sua parte, o que certamente é um dos fatores que inviabilizam novas e mais ousadas ações deste tipo. Certo, eu sei, não há como comparar o interior com as grandes capitais, muito mais populosas e diversificadas, portanto aptas a programações mais setorizadas. Não vou também ficar resmungando, não é de meu feitio, até por que sou daquela opinião “resmunga e não faz nada para (se) mudar? Melhor calar a boca”. Mas custava um milagre vir de onde quer que venha, e sermos nós, simples camponeses de interior (pausa dramática), contemplados com uma programação cinematográfica e cultural mais diversa? Afinal, a gente não quer só comida.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Tolas Escravas da Vaidade


Na sociedade obcecada pela imagem em que vivemos, são abundantes os exemplos de pessoas que chegam aos extremos para manter a aparência de outrora, que a inevitável passagem do tempo teima em modificar. De quando em quando, aparecem casos de gente que, em busca de uma fonte da juventude particular, apela exageradamente para métodos reconhecidos pela comunidade médica, e outras artimanhas menos lícitas para driblar rugas e marcas de expressão. É triste esta desenfreada procura pela jovialidade eterna, pois ela expõe as feridas de uma coletividade que confere valor apenas ao que é bonito, presumindo-se aí, com uma boa dose de preconceito, que só há beleza na aurora dos verdes anos.

Escravas da Vaidade (parabéns à distribuidora, que “belo” título em português), do chinês Fruit Chan, fala exatamente desta doentia corrida contra o tempo, praticada aqui por uma atriz crente que seus problemas afetivos, as puladas de cerca do marido, e sua baixa auto-estima, são culpa de seu envelhecimento, mesmo que necessitemos apenas de uma olhadela para notá-la como bela mulher, certamente cega ao que o espelho lhe mostra. Os atores, estes seres muitas vezes egóicos, parecem afetados particularmente por esta síndrome da não aceitação do natural transcorrer do tempo, e, numa rápida pesquisa pela memória, encontrarmos diversos exemplos deste comportamento no métier. Neste tocante, Fruit Chan não poderia ter escolhido profissão melhor para sua protagonista.

Qing, esta atriz que se contorce de um saudosismo doentio sempre que vê reprises da novela que participou no início de sua vida adulta, busca a ajuda da Tia Mei, exótica mulher que prepara bolinhos ainda mais excêntricos que prometem, além do estancamento dos efeitos do tempo, um retrocesso aos primórdios do físico da mocidade. O grande choque é dado pelos ingredientes com que Tia Mei prepara a iguaria milagrosa, uma pancada para os mais sensíveis ou para as gestantes (?), como previne a capa do DVD nacional. Não convém ir além para que não se estrague a experiência dos que ainda não viram.

Título certamente condenado às prateleiras mais escuras das locadoras, ou ao limbo dos lugares menos privilegiados dos sebos, Escravas da Vaidade é um filme bastante original em seu enfoque, e mordaz por conta do nível desta discussão acerca das práticas a que as pessoas estão dispostas pelo retorno da efêmera juventude. Originalmente parte integrante do coletivo de médias Três Extremos, que propunha filmes de horror (ótimos por sinal) vistos através das lentes orientais, Escravas da Vaidade funciona ainda mais na versão estendida, por ter amplificada sua visão particular deste entorno que valida apenas os mais tenros e joviais, e por permitir que o diretor Fruit Chan exiba, com ainda mais elegância, tanto seus movimentos de câmera, quanto sua doce inclinação pela exposição do sangue e da crueza do nosso comportamento selvagem em busca de aceitação. Ou alguém ainda duvida que tenha gente (homens e mulheres) disposta a tudo, a literalmente tudo, para rejuvenescer uns bons anos?