terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Intocáveis e a alegria de viver


Se há cena que possa de alguma maneira resumir Intocáveis é a do senegalês Driss dançando Boogie Wonderland, do Earth, Wind & Fire, defronte a seu patrão, o tetraplégico Phillipe. Nos olhos marejados do homem branco, típico francês amante das artes, a emoção de quem constata no outro a fortuna de viver para além de todas as adversidades.

Driss é negro, pobre, mas mitiga as desventuras de seu cotidiano difícil com largos sorrisos e uma sede de viver que soa até ingênua ao cínico mundo de hoje, onde se julga depressão normal e felicidade over. Driss ainda mostra ao ricaço como devemos relativizar a arte. Claro, sua ignorância desbragada provoca risos (periga uns, mais radicais, até se irritarem com esse “desprezo” pelo erudito), mas tudo ali serve para comentar criticamente a sociedade francesa estereotipada como pedante. Os cineastas parecem dizer que à França falta viver mais e tentar menos parecer culturalmente superior.

A dupla de protagonistas pode ser vista, também, como símbolo da relação entre a França e suas antigas colônias. A imagem do “legítimo” francófono sendo empurrado pelo senegalês, metaforicamente mostra a terra da Torre Eiffel, sempre tão arredia aos estrangeiros, cada vez mais dependente dos filhos que outrora subjugou e ainda hoje renega.

Amado por muitos, indiferente para outros (algo a ver com o sucesso de público, segundo alguns, sinônimo de falta de qualidade?), Intocáveis é um filme que tem lá suas fragilidades, mas é apaixonante como poucos recentes, justo por não envergonhar-se de edificar relação baseada em amizade, humanismo e respeito, atributos hoje infelizmente meio fora de moda, eu sei. 

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Polaróides Urbanas


Certa feita, o crítico Paulo Emílio Salles Gomes proferiu: “O pior filme brasileiro diz mais de nós mesmos do que o melhor filme estrangeiro”. É claro, prestou-se à provocação, a chacoalhar intelectuais e pensadores, chamando-lhes a atenção para algo evidente: a função “espelho” de toda cinematografia. Mas, é óbvio, não há por que sermos condescendentes com o cinema brasileiro, em rompantes de nacionalismo exacerbado. Finda a introdução, vamos então sem complacência a Polaróides Urbanas, primeiro longa de Miguel Falabella como realizador. Um sub-Almodóvar, é de onde poderíamos partir na análise desse filme-coral de diversas historietas - ora comédia rasgada, ora drama pasteurizado.

Falabella leva ao cinema seu questionável gosto estético, este paradoxalmente amparado e sufocado pelo inegável talento que seu autor possui enquanto homem das palavras. Talvez Como Encher um Biquini Selvagem, sucesso dos palcos em que Polaróides Urbanas foi baseado, saia-se melhor na observação das muitas tramas que se imbricam na narrativa, não sei. Cinematograficamente, a resultante da mão frouxa de um diretor inexperiente, mas dotado de ampla bagagem noutros meios (provável causador do relaxamento com os signos estritamente cinemáticos) é um filme de sobreposições fajutas, onde os encontros são tão ou mais artificiais que a convivência desastrada entre a face cômica e trágica do filme.

De elenco robusto, Polaróides Urbanas carece, ainda, de coerência interna, pois abandona personagens com a mesma velocidade e inépcia com que erige outros às luzes da ribalta. A dona-de-casa frustrada, ciumenta da irmã escandalosa e viajante, o stripper suicida, a terapeuta com problemas familiares, a atriz consagrada em meio à crise de pânico, entre outros, partem de premissas interessantes, mas acabam meros títeres de uma entidade maior (o diretor) que vê graça em tornar todos meio bobos e banais, de maneira acrítica, é bom dizer. Ficamos alheios às dores e amores dos tipos que vem e vão deixando poucas pegadas.

Imagino Falabella se divertindo muito ao fazer Polaróides Urbanas, e esse sentimento, possivelmente ocasionado pela companhia de amigos e fieis colaboradores no set, é a única nota dissonante (portanto positiva e transparente) numa obra errática, anódina e completamente esquecível. Nem mesmo as presenças de Marília Pêra, Arlete Salles, Natália do Vale, Berta Loran, Lúcio Mauro, Marcos Caruso ou Otávio Augusto, só para citar alguns, salvam a estreia de Miguel Falabella como cineasta. Há certos filmes que crescem após a sessão, motivo pelo qual é recomendado não nos atirarmos às primeiras impressões, mas Polaróides Urbanas precisa melhorar um bocado para ser taxado de ruim.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

domingo, 20 de janeiro de 2013

Twixt


O novo filme de Francis Ford Coppola é estranho, para dizer o mínimo. Twixt começa pela apresentação de uma cidade interiorana, onde, assim como na localidade idealizada por David Lynch no seriado Twin Peaks, repousam mistérios e bizarrices. Falemos abertamente: Swan Valley é Twin Peaks genérica. E cabe ao narrador resumir com impostação vocal alusiva a seus colegas dos terrores B, as idiossincrasias desse lugar de aparências. Pronto, de início já sabemos o necessário sobre a urbe que abrigará, em breve, a sessão de autógrafos do outrora prestigiado escritor, então um reles autor de contos sobrenaturais (especialmente bruxaria), Hall Baltimore.

Baltimore logo conhece o xerife Bob LaGrange, oficial que lhe propõe escrever livro a quatro mãos sobre um caso de assassinato múltiplo ocorrido no passado. Chacina de crianças órfãs. Tragado pelo mistério, o escritor passa a vagar entre a realidade colorida e os sonhos desbotados. Nestes, é guiado por uma linda menina, Virgínia, e até mesmo por Edgar Allan Poe, o mestre dos contos de ficção policial com pitadas macabras. Como é do feitio de Coppola – e isso se observa bem na atual fase de financiamento dos próprios projetos, em Twixt temos diversos elementos narrativos que o descolam do estritamente concreto. É claro, a inclusão do onírico permite ao diretor polarizar ainda mais essa dicotomia real/irreal.

Twixt é um filme de mistério, com algo de gótico e que, aos poucos, vai descambando para o terror. As intervenções de Allan Poe visam iluminar a trama, e elas cumprem esse papel até de maneira incômoda, pois se entende como facilidade o personagem onisciente que entrega de bandeja, tanto ao protagonista quando ao espectador, as motivações da trama. A própria caracterização da cidade, pretensa a uma aura de instabilidade e segredo, fica tão e somente evidenciada nos tipos estranhos. Voltando ao paralelo, se Lynch conseguia fazer de Twin Peaks tão notável como seus moradores, Coppola acaba dependente da já citada narração inicial, insuficiente para o clima que busca (precisa) alcançar.

Em Twixt há, ainda, dados que chocam religiosidade, fanáticos e vampiros, sejam estes metafóricos ou, como queiram, literais. O filme guarda também uma pontinha de interesse na identificação entre as histórias de Baltimore e Virgínia. Mesmo com algumas inspirações na biografia de Coppola, a principal delas dizendo respeito a perda filial num acidente de barco, Twixt nunca alcança qualquer pessoalidade autêntica, a não ser aquela contida nas chamadas “curiosidades de produção”. Acaba refém da pequenez (no sentido pejorativo mesmo) e do acanhamento, soando preguiçoso. Poderíamos rotulá-lo “filme menor”, por falta de definição menos clichê e certa condescendência com seu brilhante autor. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

sábado, 12 de janeiro de 2013

A Irmã da Sua Irmã


Entre as distinções aplicáveis ao cinema norte-americano contemporâneo, a que o separa entre independente e comercial talvez seja a mais comum – tanto que existem premiações específicas para cada um dos grupos. Considerando tal universo, A Irmã de Sua Irmã (2012), de Lynn Shelton, é um filme majoritariamente independente, ainda que seja protagonizado por uma estrela já absorvida pelo mainstream, Emily Blunt. Shelton é uma das entusiastas do que se convencionou nomear mumblecore, movimento do cinema indie estadunidense que preza por produções de baixo orçamento com temas cotidianos, interpretações e diálogos naturalistas. Ainda que não sejam regras, uma vez que não existe um manifesto “à la Dogma 95” com o mumblecore, todos os itens supracitados fazem parte de seu mais novo filme.

Em seu quarto longa-metragem, Shelton basicamente trabalha com um ambiente e três personagens, interpretados por Blunt, Rosemarie DeWitt e Mark Duplass – ator/roteirista/cineasta também ligado ao mumblecore, mais conhecido pelo filme Cyrus (2010). A relação do trio nasce quando Iris (Blunt) convida Jack (Duplass) para passar um tempo em sua casa de campo e superar a morte de seu irmão – sem saber que sua própria irmã, Hannah (DeWitt), já está no local tentando esquecer o fim conturbado de um relacionamento. Depois de se conhecerem e dividirem muito mais que algumas doses de tequila, Jack e Hannah são surpreendidos por Iris, que chega ao local para criar o improvável triângulo que dá o tom de A Irmã da Sua Irmã.

Lynn Shelton, que assina roteiro e direção do filme, aborda o cômico da relação do trio de personagens com uma proximidade elogiável. O que pontua a ligação dos três é a omissão de importantes fatos que sempre unem dois deles e separa um terceiro – Iris tem um segredo com Hannah sobre Jack, que por sua vez divide algo com Hannah que Iris não pode saber, e assim por diante. Algumas situações muito divertidas – e embaraçosas para os envolvidos – são desenvolvidas a partir dessa dinâmica, que em dado momento se torna insustentável pela proximidade do trio.


Ainda que tenha algumas saídas criativas, o filme acaba caindo em convencionalismos dos romances que envolvem triângulos amorosos. No entanto, o principal problema de A Irmã de Sua Irmã seja sua teatralidade. Ainda que o naturalismo aplicado à narrativa tragicômica perpetue todo o filme, como em cultuados indies recentes – vide Pequena Miss Sunshine (2006) e Juno (2007) – o espaço diminuto e o excesso de diálogos imprimem tons teatrais ao filme, tornando-o por vezes maçante e repetitivo. O charme da trinca de protagonistas poderia fazer valer a sessão, porém a única atriz que consegue maior destaque é Rosemarie DeWitt, que tem um papel mais complexo para desenvolver. Blunt e Duplass fazem o que podem, mas não atingem a credibilidade necessária para tornar seus personagens mais interessantes.


Diferente de seu filme anterior, Humpday (2009), no qual dois amigos resolvem protagonizar um filme de arte homoerótica para ganhar dinheiro, Lynn Shelton não tem conteúdo suficiente para validar sua obra. Fica a sensação de que os 12 dias de produção em uma belíssima paisagem campestre fizeram valer o esforço dos envolvidos no filme, mas não são igualmente divertidos para garantir uma boa sessão aos seus espectadores. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Elefante Branco


Estamos em Buenos Aires, porém longe de Puerto Madero ou das ruas arborizadas em Palermo. Elefante Branco, mais recente filme do diretor Pablo Trapero, mantém-se numa paisagem que em nada lembra cartões postais ou catálogos turísticos: a Villa Virgem. Nesta terra dominada pelo narcotráfico e com os mesmos problemas das nossas tão conhecidas favelas, o único raio de esperança é a presença dos padres e de uma assistente social. Juntos, eles tentam trazer dignidade a famílias que moram sob precárias condições. Fosse brasileiro, Trapero seria acusado de inserir-se no filão favela-movie, termo pejorativo que pegou por aqui após a onda de filmes ambientados nas periferias das metrópoles.

Todo trabalho do padre Julián, interpretado pelo onipresente (e ótimo) Ricardo Darín, é um verdadeiro teste para os nervos e a fé de quem seja. Ele é ajudado por Luciana (Martina Gusman, esposa do diretor), mulher combativa que igualmente enfrenta intempéries no desempenho de sua função. Completando o trio fundamental, o padre Nicolás, personagem do ator Jérémie Renier, colaborador contumaz dos irmãos e cineastas Jean-Pierre e Luc Dardenne, aqui num registro pujante.  E o elefante branco do título? Carcaça do que seria o maior hospital da América Latina, edificação abandonada provavelmente como efeito da corrupção, então moradia de mais de 300 famílias e núcleo da Villa Virgem.

Trapero nos coloca nesse mundo doente de miséria com a câmera seguindo pessoas quase sempre de costas, trafegando por vielas, becos enlameados e bocas de fumo. Quando nos damos por conta, já estamos imersos na vizinhança, familiarizados com nativos e forasteiros, estes em missão. Ao ampliar as preocupações sociais de seu filme anterior, Abutres, o diretor mostra-se cada vez mais disposto a fazer do cinema uma testemunha das adversidades enfrentadas por muitos de seus conterrâneos. Ele arquiteta personagens, mesclando suas tragédias pessoais (doença e um amor proibido) com a realidade que buscam modificar. A desenvoltura narrativa permite ao filme passar longe de algo rançoso.

Em Elefante Branco os padres parecem única solução, pois suas atividades são avalizadas por moradores e traficantes. Não fossem os colarinhos clericais (por vezes a batina), e os párocos poderiam muito bem passar por voluntários sem qualquer ligação mais direta com Deus. A inserção dos sacerdotes na trama diz mais respeito à pontuação de uma constante em países religiosos, também alusão aos pastores bíblicos que zelam por seu rebanho, e menos a eventuais elogios à conduta da igreja. O amor surgido entre Luciana e Nicolás, percurso arriscado que poderia desvirtuar a história, serve para tumultuar ainda mais o homem em dúvida, sobretudo a respeito da passividade e da fé resignada, quase premissas de suas vestes e cargo. Filme-denúncia, sim, mas com gente de carne e osso, não pura representação ideológica.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

domingo, 6 de janeiro de 2013

Mansome: o masculino em questão

Morgan Spurlock ainda é reconhecido como o cara que desafiou o Mc Donald’s com o documentário indicado ao Oscar Super Size Me – A Dieta do Palhaço (2004). Nada estranho, uma vez que seu filme foi o responsável pela inclusão de opções saudáveis no cardápio da rede de fast food e provou os malefícios causados por uma dieta à base de hambúrgueres e batatas-fritas. Desde então, Spurlock segue uma fórmula dinâmica e ousada para atrair espectadores para suas produções, e seus temas não poderiam ser mais diversos – Osama Bin Laden, a economia norte-americana, a publicidade nos filmes e a feira de quadrinhos Comic-Con renderam histórias para alguns de seus documentários. Bigodes, pelos e homens preocupados com o visual também.

Mansome (2012) explora o crescente universo da metrossexualidade, termo que já caiu em desuso, mas ainda motiva companhias a desenvolverem uma série de produtos voltados ao homem contemporâneo. Já muito explorado e criticado por inúmeras outras mídias, o metrossexual apresentado no documentário de Spurlock é aquele caricato, que tem nos cuidados com a aparência o escape para uma vaidade excessiva. Os seus principais entrevistados são passíveis de ridicularização – como Ricky Manchanda, obcecado por cuidados estéticos, e Jack Passion, campeão mundial de barba natural. Os atores Jason Bateman e Will Arnett, que produzem o filme, tornam a caricaturização do metrossexual ainda pior, uma vez que participam do documentário opinando sobre o assunto (com um bastante humor questionável) enquanto desfrutam dos benefícios de um spa para homens.


Seguindo a fórmula que usou em Comic-Con Episode IV: A Fan's Hope (2011), Spurlock se debruça sobre alguns personagens principais e pincela a opinião de outros para dar maior dinâmica ao documentário. Alguns entrevistados fornecem opiniões muito interessantes, como Adam Garona, fundador do Movember – movimento para a prevenção do câncer de próstata – mas outros são inteiramente descartáveis, como o lutador Shawn Daivari, que aparece quase que exclusivamente para falar – e demonstrar - como depila todos os pelos do corpo.  Entre barbeiros e antropólogos, Spurlock ainda consegue espaço para aparecer em seu documentário. Quem acusa o cineasta de ser narcisista e egocêntrico não ficará feliz em saber que sua participação se resume a se barbear frente às câmeras.


Mansome, ainda que bem intencionado em seu propósito, não vai muito além de uma matéria digna de Fantástico, interessante para o final de um domingo. Spurlock, que já demonstrou ser um bom documentarista, talvez deva apenas ser mais feliz na escolha de seus temas – e se preocupar menos com a aparência de seus filmes. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

sábado, 5 de janeiro de 2013

Gotcha – Uma Arma do Barulho


É fato que certos filmes marcam infância e adolescência, ficando conosco numa espécie de sedimento afetivo/cinematográfico. Os da minha geração (nasci no início dos anos 1980) tendem a olhar para trás com carinho, sobretudo às clássicas sessões da tarde. Foi lá que conhecemos Ferris Bueller (Curtindo a Vida Adoidado), acompanhamos as aventuras dos meninos em Os Goonies, entre outras experiências definidoras. Lembro com especial saudosismo de Gotcha – Uma Arma do Barulho, longa protagonizado pelo ainda jovem Anthony Eduards (lembram de Plantão Médico?) e marcado pela beleza fulgurante de Linda Fiorentino.  Um dos meus favoritos daquela época imberbe, sem dúvida.

Nele, Jonathan é um rapaz impopular com as mulheres que desfruta a vida acadêmica entre as aulas e Gotcha (algo como “te peguei”), um emulador de espionagem no qual os competidores esgueiram-se pelo campus acertando seus “inimigos” com armas de paintball. Dos pais abastados ele ganha viagem pela Europa com seu amigo Manolo. Louco para fazer sexo, ver museus e nada mais, acaba envolvido com uma bela mulher numa trama de espionagem internacional. Jonathan precisa, então, utilizar suas habilidades no jogo para a atuação involuntária no mundo real dos agentes secretos, em óbvia metáfora sobre o crescimento, esta também evidenciada na concomitante descoberta sexual do protagonista.

Nos anos oitenta os americanos faziam bons filmes escapistas que entretinham de verdade, independente do absurdo em que eram calcados. Afinal de contas, um filhinho-de-papai que brinca de James Bond na universidade e esbarra durante a exploração do novo continente numa gata quase inalcançável, seu passaporte para um imbróglio dos demônios, é enredo bem nonsense, certo? Mas Gotcha – Uma Arma do Barulho busca tão e somente entreter, e consegue, mesmo os nem tão jovens e ingênuos assim. Claro, também há contra-indicações. Nas representações de cada papel (mocinhos, bandidos, etc.) reside um miolo revelador do pensamento preconceituoso americano a respeito da então geopolítica européia (num imaginário muito alimentado pelos anos de Guerra Fria).

O filme é uma obra de arte? Não, claro que não, tem momentos até bem deslocados, como quando Jonathan, em meio ao caos, resolve comer uma bela refeição americana, mistura de merchandising e patriotada bem vagabunda. Mas é divertido, leve e nem de longe aborrece, pois, mesmo nos momentos sérios, é permeado por aquele humor típico dos filmes americanos oitentistas feitos para consumo na puberdade. Com Gotcha – Uma Arma do Barulho aprendi inúmeras coisas, como, por exemplo, a nunca acreditar que uma linda mulher, com jeito e sotaque de espiã, possa se interessar por você apenas por não gostar de homens peludos. Óbvio, não é para levar a sério, mas a picardia remete ao tempo (nem tão longínquo assim) em que cinema de entretenimento para adolescentes e jovens adultos não era totalmente imbecilizante. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

De Paris a Manhattan


Em Sonhos de um Sedutor, dirigido por Herbert Ross nos idos de 1972, o personagem de Woody Allen, fã incondicional de Casablanca, colhe conselhos amorosos numa projeção de Humphrey Bogart. Bogie é verdadeiro símbolo da geração crescida ao som de As Time Goes By. Quarenta anos depois, o próprio cineasta nova-iorquino personifica o ideal de outrem, ou seja, surge como farol. No filme Paris-Manhattan, de Sophie Lellouche, Alice é a bonita farmacêutica que tateia o amor sob os ditames de seu ídolo Woody Allen. A arte se infiltra na vida e vice-versa.

Filme delicioso, Paris-Manhattan tem em sua própria estrutura algumas homenagens ao cinema do diretor de A Rosa Púrpura do Cairo (onde, aliás, também existe a interferência da ficção). A maior delas diz respeito aos dois principais homens que cortejam Alice: um é charmoso e apreciador de artes; o outro é um simples técnico de alarmes que parece muito mais conectado com a “verdade das coisas”. Quem conhece as obras de Allen sabe de sua ojeriza por tipos pedantes e/ou pseudo-intelectuais, e, com base nisso, já se pode imaginar para que lado penderá nossa simpatia no filme de Lellouche.

Construir e desconstruir ideais na constante busca por felicidade é um dos caminhos apontados por Paris-Manhattan, comédia romântica que se deixa ver bem, justamente pela sinceridade com a qual apresenta personagens e situações. Obra apropriada, sobretudo, aos enamorados e fãs de Woody Allen. Se os dois, melhor ainda.