sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Os reconhecíveis Vampiros de Almas


Ao longo da história, artistas utilizaram - e continuam utilizando - tempos turbulentos como intenso combustível de obras dispostas a ponderar, justamente, sobre eras de inconstância. Os Estados Unidos viviam em ebulição no decorrer dos anos 1950: crises pós-Segunda Guerra Mundial, a sombra do comunismo, o ocaso do famigerado McCarthysmo, a Guerra Fria, etc. Don Siegel, um dos célebres mentores de Clint Eastwood, lançou então em 1956 a ficção científica Vampiros de Almas, um marco da cinematografia estadunidense engajada, e, sem dúvida, herdeira desta tradição de obras que falam a (ou de) seu tempo.

Em sucintos oitenta minutos, vê-se a paranoia crescente na pequena localidade de Santa Mira pelos olhos do médico, descobridor de um plano alienígena que consiste em substituir humanos por seres sem emoções, ocos internamente. Alegórico, Vampiros de Almas é espécime raro de cinema galgado na metáfora, no qual o subtexto emerge ao ponto de subjugar o que está num primeiro plano. É quase automática a associação entre a conjuntura político/social americana da época com este cenário de pânico instaurado diegeticamente. Incerteza e desconfiança generalizada surgem na tela aludindo à caça aos comunistas “comedores de criancinhas”. Seres sem vida e carentes de emoções, massificados, podem ser os que dão lugar à réplica extraterrestre, bem como aqueles que veem o país naufragar num cenário caótico e, mesmo assim, preferem alienar-se confortavelmente em suas posições neutras.

Don Siegel, artesão dos mais subestimados, cria um estado de histeria comunitária moldando o preciso roteiro de Daniel Mainwaring, Sam Peckinpah (ele mesmo) e Richard Collins, auxiliado pela belíssima fotografia em preto e branco de Ellsworth Fredericks (que, aliás, evidencia sobremaneira contrastes entre luz e sombra). Com estética de filme B, Vampiros de Almas não se presta ao superficial, já que por trás da fabulação e das artimanhas narrativas, residem desejos (não tão recônditos) de transmitir ao público a crítica travestida de ficção científica, gênero que em tempos áureos foi um dos principais veículos de metáforas acerca da sociedade que se prestava a refletir.


Publicado originalmente no Papo de Cinema 

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Deus da Carnificina: de longe todos são normais


Roman Polanski é cineasta afeito a espaços exíguos. Um superficial exame em sua filmografia já aponta para esta predileção por ambientes restritivos, que não raro desempenham função dramática específica. O apartamento é fundamental em O Bebê de Rosemary, assim como a moradia da instável protagonista de Repulsa ao Sexo e a residência que serve de cenário basilar para O Escritor Fantasma. Seguindo a linha, em Deus da Carnificina quase toda ação transcorre num pequeno apartamento, cuja força delimitadora das ações e reações em eminente choque é significativa. É uma jaula repleta de portas e janelas não transpostas.

Como base dos créditos iniciais, há um plano revelador de certa celeuma ordinária entre garotos. Tal evento desencadeia a necessidade de uma conversa conciliatória entre os responsáveis pelos adolescentes. Michael e Penélope Longstreet (John C. Reilly e Jodie Foster), pais do menino agredido, recebem em sua casa os progenitores do agressor, Alan e Nancy Cowan (Christoph Waltz e Kate Winslet). À medida que as gentilezas iniciais vão dando lugar a pequenas alfinetadas, a aparente calmaria se transforma em repetidos ataques, que inevitavelmente abrem fissuras numa relação até então bastante diplomática.

Em registro tragicômico, o verborrágico Deus da Carnificina  esfrega na cara do espectador constantemente “o que somos enquanto espécie”, e só não cede a quaisquer inclinações moralistas porque preenche a instabilidade com um humor sutil, amplificando alguns desdobramentos pela via do patético. O embate “casal vs casal”, motivado inicialmente pela briga dos filhos, logo se vê menor ante expedientes mais, digamos, reveladores, como a ética (ou a falta dela) de quem representa infratores, o pseudo-engajamento de alguns preocupados com a situação africana, a inércia de homens que escondem temperamento explosivo sob a aparente calma, e mulheres que precisam de algumas doses para dizer o que pensam.

Em  Deus da Carnificina  são evidentes as habilidades do roteiro e da montagem, promotores de um fino equilíbrio no fluxo narrativo. Certamente um cineasta menos competente sucumbiria à tentação de dar mais relevo a esta ou aquela figura, e esta assertividade diretiva se observa igualmente na escolha nada aleatória de dois americanos para interpretar um casal atolado em sua própria mediocridade, e outros dois europeus para dar vida à dupla de bem sucedidos profissionalmente e carentes de humanismo. Além de genuíno filme de ator - rótulo possível graças ao desempenho brilhante dos quatro protagonistas -  Deus da Carnificina  também deve muito à direção coesa e incisiva de Polanski.

Ainda envolto em problemas judiciais por conta de um crime cometido no passado, pelo qual não pode mais pisar em solo americano, Roman Polanski parece cada vez mais arguto em suas observações, ciente de que ao artista cabe refletir acerca da sociedade que o circunda conforme seu ideário motriz. Ele conhece como ninguém os que lhe apontam o dedo condenatório, guardadores de seus próprios pecados cotidianos a sete chaves. O apego aos objetos (celular, bolsa, livros de arte, charutos e bebidas) que os personagens de  Deus da Carnificina  têm, por exemplo, evidencia aspectos definidores desta nossa sociedade ensimesmada, viciada em projetar nos artefatos seu sustentáculo. Entre vomitar nas tulipas da sala, largar um hamster à própria sorte, defender interesses escusos ou esconder-se numa falácia, não há o que exaltar ou condenar, não há partidos a tomar, pois a razão (ou a falta dela) habita todos.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

sábado, 7 de janeiro de 2012

Precisamos Falar Sobre Precisamos Falar Sobre o Kevin

Adaptações literárias para o cinema sempre geram opiniões muito controversas. A primeira pedra a ser atirada geralmente se dá por meio do argumento ‘não é tão bom quanto o livro’. Quando assisto a um filme adaptado de um bom romance o faço com aquele receio fantasiado de decepção antecipada, ainda que eu seja daqueles que tenta suprimir quaisquer expectativas (sempre que possível) para conseguir uma experiência imparcial com a obra que for. Com Precisamos Falar Sobre o Kevin, um dos melhores livros que já li, ficou difícil sublimar qualquer esperança de um bom filme quando a adaptação foi anunciada. Hoje, fica difícil considerar alguma qualidade na mesma quando se olha o fracasso do todo.

Sim, acredito que existam obras inadaptáveis, enquanto outras servem praticamente de roteiro para um projeto cinematográfico. Foi assim com Paciente 67, livro de Dennis Lehane que ganhou uma versão quase literal com o olhar de Martin Scorsese no ótimo Ilha do Medo. Lehane inclusive já teve outros filmes extraídos de seus bons romances policiais, entre eles Sobre Meninos e Lobos, de Clint Eastwood, e Medo da Verdade, de Ben Affleck. José Saramago, por sua vez, por mais que tenha adorado o Ensaio Sobre a Cegueira de Fernando Meirelles, não viu o apreço de seus leitores quando estes encararam sua provável obra-prima no grande ecrã.

Precisamos Falar Sobre o Kevin possui um material muito complexo até mesmo para ser trabalhado na literatura – seja enquanto abordagem narrativa ou temática. Uma mãe rememora uma tragédia sem tamanho por meio de cartas enviadas para seu ex-marido, que nunca as responde. Lionel Shriver compõe seu romance com um êxito enorme, tempo correto e passagens de tirar o fôlego. A tarefa da escocesa Lynne Ramsay com tal adaptação já nasceu inglória: como gerar um bom filme de um livro narrado inteiramente em primeira pessoa, com grandes diálogos e composto quase que exclusivamente por ‘flashbacks’? Sua opção por suprimir o texto em imagens é válida, afinal cinema não é apenas diálogo/narração, porém ela faz isso da pior forma (e com a pior forma) possível, entregando uma obra que, mesmo dissociada de sua origem literária, continua sendo um filme ruim.

Lynne Ramsay tem uma atriz singular em outro papel que se encaixa perfeitamente ao seu perfil de interpretação: Tilda Swinton. A considero como Isabelle Hupert, que igualmente se transforma para qualquer papel de forma fantástica, desde que haja muito drama envolvido. Swinton é sem dúvida o maior trunfo de Precisamos Falar Sobre o Kevin, e uma indicação ao Oscar não seria estranha, porém um único ator não conseguiria salvar o filme que fosse. As más escolhas do roteiro, associadas a montagem esquizofrênica, conseguem por vezes soarem tão agressivas que atrapalham até mesmo o desempenho da magnífica atriz.


Por falar em roteiro, aqui desenvolvido pela própria Ramsay com o auxílio de Rory Kinnear, a sequência narrativa do mesmo parece tão absurda e irregular que toda a naturalidade com que a mesma é desenvolvida na obra de Lionel Shriver se perde. O filme já se inicia intensamente fragmentado por flashbacks que é impossível não se incomodar – e infelizmente de uma maneira não favorável ao filme. Grandes passagens que deveriam ter maior importância ganham cenas quase banais, que interferem até mesmo na empatia para com a protagonista – sentimento tão importante para uma boa experiência num filme como este.

Ramsay, que já tinha dado mostras de sua esquisitice imagética em Morvern Callar, não consegue causar impacto mesmo quando explicita tal intenção. A opção por uma fotografia bastante irregular para cada período em que se passa o filme o torna ainda mais errático, e o muito mencionado excesso da cor vermelha quase se perde em meio a tantos artifícios mal utilizados. Em suma, indico para aqueles que não tiveram o prazer de conhecer o excepcional Precisamos Falar Sobre o Kevin, que o façam por meio do livro de Shriver, e não por esta infeliz adaptação cinematográfica.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Irã: a arte surgida do caos?


Em prática que pretendo tornar corriqueira, postei no Facebook um questionamento cinematográfico com pontos abertos à discussão, inclusive sobre a validade do mesmo. Utilizei-me primeiro da rede social, pois ela agrega diferentes perfis e possibilita interação e disseminação mais rápidas. Replico por aqui para que a mesma ganhe perenidade e, quem sabe, suscite comentários que a amplifiquem. 
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Levando apenas em consideração os mais recentes filmes de Asghar Farhadi (A Separação) e de Abbas Kiarostami (Cópia Fiel), duas obras-primas, e todo movimento político/social causado pela complexa situação iraniana (que fez de Jafar Panahi e Mohsen Makhmalbaf seus mais conhecidos avatares do meio cinematográfico) dá para cravar que o Irã - e por extensão todo Oriente Médio -, acossado pelo próprio regime e por questões de ordem religiosa, é a “bola da vez” no cinema mundial, donde não deveríamos desviar o olhar? Emerge do caos a mais pungente arte?