Roman Polanski é cineasta afeito
a espaços exíguos. Um superficial exame em sua filmografia já aponta para esta
predileção por ambientes restritivos, que não raro desempenham função dramática
específica. O apartamento é fundamental em O Bebê de Rosemary, assim como a moradia da
instável protagonista de Repulsa ao Sexo
e a residência que serve de cenário basilar para O Escritor Fantasma. Seguindo a linha, em Deus da Carnificina quase toda ação transcorre num pequeno apartamento, cuja força
delimitadora das ações e reações em eminente choque é significativa. É uma
jaula repleta de portas e janelas não transpostas.
Como base dos créditos iniciais, há
um plano revelador de certa celeuma ordinária entre garotos. Tal evento
desencadeia a necessidade de uma conversa conciliatória entre os responsáveis
pelos adolescentes. Michael e Penélope Longstreet (John C. Reilly e Jodie
Foster), pais do menino agredido, recebem em sua casa os progenitores do
agressor, Alan e Nancy Cowan (Christoph Waltz e Kate Winslet). À medida que as
gentilezas iniciais vão dando lugar a pequenas alfinetadas, a aparente calmaria
se transforma em repetidos ataques, que inevitavelmente abrem fissuras numa
relação até então bastante diplomática.
Em registro tragicômico, o verborrágico Deus da Carnificina esfrega na cara do espectador
constantemente “o que somos enquanto espécie”, e só não cede a quaisquer inclinações
moralistas porque preenche a instabilidade com um humor sutil, amplificando alguns
desdobramentos pela via do patético. O embate “casal vs casal”, motivado
inicialmente pela briga dos filhos, logo se vê menor ante expedientes mais,
digamos, reveladores, como a ética (ou a falta dela) de quem representa
infratores, o pseudo-engajamento de alguns preocupados com a situação africana,
a inércia de homens que escondem temperamento explosivo sob a aparente calma, e
mulheres que precisam de algumas doses para dizer o que pensam.
Em
Deus da Carnificina são evidentes as habilidades do roteiro e da montagem,
promotores de um fino equilíbrio no fluxo narrativo. Certamente um cineasta
menos competente sucumbiria à tentação de dar mais relevo a esta ou aquela
figura, e esta assertividade diretiva se observa igualmente na escolha nada
aleatória de dois americanos para interpretar um casal atolado em sua própria
mediocridade, e outros dois europeus para dar vida à dupla de bem sucedidos
profissionalmente e carentes de humanismo. Além de genuíno filme de ator -
rótulo possível graças ao desempenho brilhante dos quatro protagonistas -
Deus da Carnificina também deve muito à direção
coesa e incisiva de Polanski.
Ainda envolto em problemas
judiciais por conta de um crime cometido no passado, pelo qual não pode mais
pisar em solo americano, Roman Polanski parece cada vez mais arguto em suas
observações, ciente de que ao artista cabe refletir acerca da sociedade que o
circunda conforme seu ideário motriz. Ele conhece como ninguém os que lhe
apontam o dedo condenatório, guardadores de seus próprios pecados cotidianos a
sete chaves. O apego aos objetos (celular, bolsa, livros de arte, charutos e
bebidas) que os personagens de
Deus da Carnificina têm, por exemplo, evidencia aspectos definidores desta nossa sociedade
ensimesmada, viciada em projetar nos artefatos seu sustentáculo. Entre vomitar nas
tulipas da sala, largar um hamster à própria sorte, defender interesses escusos
ou esconder-se numa falácia, não há o que exaltar ou condenar, não há partidos
a tomar, pois a razão (ou a falta dela) habita todos.
Publicado originalmente no Papo de Cinema
Publicado originalmente no Papo de Cinema
Muito bacana seu texto Marcelo. Como já havia dito no: Papo de Cinema! Parabéns!
ResponderExcluirbjs
Olá, Celo!
ResponderExcluirExcelente texto, o que me fornece muita vontade de assistir alguns filmes de Polanski.
Abraçosssss