sábado, 28 de junho de 2014

Doses Homeopáticas #22


PULP FICTION talvez ainda seja o melhor filme de Quentin Tarantino. Há ali, nas conversas aparentemente banais que precedem atos de violência, uma vontade de justamente expor a onipresença e o caráter ordinário da violência. Os personagens divagam sobre qualquer coisa antes de matar, de se drogar, de cobrar uma dívida à força, como se o que está prestes a acontecer, ou seja, o ato violento, não fosse mais que um elemento qualquer do dia. Há muita ironia em PULP FICTION, fato sublinhado em grande parte pela trilha sonora repleta de músicas famosas (e muito boas), que, não raro, com suas melodias e letras românticas, embalam atos de pura barbárie. 


Alex DeLarge e seus droogs vagueiam cheios de moloko com drencrom pela cidade, tomados pela velha ultraviolência, batendo em bêbados, acossando umas devotchkas por aí com o velho entra-e-sai entra-e-sai forçado, pilhando casas e matando por diversão horrorshow. LARANJA MECÂNICA, a visão de Stanley Kubrick para o romance de Anthony Burgess, é uma obra-prima quase incontestável. Vê-la no cinema, em tela grande, é uma experiência e tanto. O protagonista, cobaia de uma experiência que busca extirpar impulsos agressivos de sua natureza, é até hoje um dos maiores personagens do cinema. DeLarge é um agente do próprio caos, cujo comportamento irascível é apenas o sintoma mais evidente de um distúrbio (social) maior.


O DESPERTAR DE UMA PAIXÃO se passa nos anos 1920, nos quais era normal uma mulher casar apenas para sair da casa dos pais. A traição que motiva a ruptura emocional, já quando o casal protagonista está na China, é o de menos, pois apenas um indício. O amor dá lugar à indiferença, à punição cotidiana, isso em meio a uma severa epidemia de cólera no interior. O que é pior (claro, metaforicamente falando), a enfermidade física ou a cólera despejada sobre o outro? Nesse cenário de desolação, o improvável acontece, e o amor antes imposto ameaça surgir genuíno, contra todas as probabilidades. O DESPERTAR DE UMA PAIXÃO é um filme sóbrio sobre sentimentos violentos.   


WOODY ALLEN: UM DOCUMENTÁRIO dá uma boa ideia da carreira desse artista que começou como escritor, passou a apresentar-se em palcos de stand-up comedy até construir uma sólida carreira no cinema. O diretor Robert B. Weide enfileira depoimentos de artistas que trabalharam com Woddy Allen, críticos de cinema, entre outros profissionais, analisando cronologicamente a trajetória – e por conseguinte os filmes - desse que é um dos grandes cineastas americanos (por mais que ele mesmo não se considere digno de pertencer a esse seleto clube). O documentário é “quadrado”, basicamente expositivo, e tem óbvio viés de fã. Nada que comprometa, ainda mais se você for também um fã de Woody Allen.


Diriam uns: “É só mais uma animação”. Pode até ser que neste primeiro momento, com a sessão recém-terminada, COMO TREINAR O SEU DRAGÃO 2 seja para mim mais do que fato ele é. Mas, ainda assim, sem medo da precipitação, digo que o achei um dos melhores filmes do ano (sobretudo se o colocarmos na conta dos blockbusters). A rebeldia do protagonista contra o destino imposto pelo pai, o amadurecimento das relações, a quase simbiose com o amigo de estimação, a descoberta inesperada da mãe, a tragédia que logo vem montada na arrogância de um vilão caricatural e clichê (vá lá), e a liderança natural contra a tirania, são elementos responsáveis por construir uma narrativa cuja profundidade, a meu ver, não se esvai em meio às belas imagens e ao ritmo da aventura.

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Nebraska


Nebraska, filme do americano Alexander Payne, começa e termina com tomadas de estrada. O primeiro movimento é de aproximação entre o idoso Woody (Bruce Dern) e os espectadores, pois ele literalmente vem ao nosso encontro. Já no último, o deslocamento é contrário, ou seja, de afastamento, ainda que, paradoxalmente, ali estejamos mais próximos tanto dele quanto dos seus. Após receber por correio uma daquelas maliciosas peças de certo marketing charlatão contemporâneo, o homem se põe em deslocamento para, quem sabe, afirmar uma lógica de vida baseada na crença, contrapondo-se, assim, à dominante desconfiança a que somos condicionados desde muito cedo.

Percorrer as estradas americanas em busca de prêmio falso é desculpa do diretor Alexander Payne para fazer emergir a complexidade que rege relações de amizade e, principalmente, as familiares. Como que para abrandar a própria mediocridade, o filho David (Will Forte) se junta ao pai, descobrindo mais a respeito do velho homem tachado de alcoólatra e ausente. O retorno à cidade natal de Woody é providencial para o surgimento de pistas, entre as sutis e as nem tanto, a respeito dos elementos formadores de sua personalidade calada e um tanto auto-alienada. Nesse lugarejo, onde o ritmo dos idosos reflete (ou dita) o fluxo arrastado do tempo, o pai reencontrará o passado e, por meio dele, se fará mais visível no presente, mesmo raramente deixando-se levar por lamentos saudosistas. 

Num elenco de desempenhos irrepreensíveis, elogios à parte para Bruce Dern, cuja interpretação é notável. Seu personagem pode ser ideologicamente comparado a Alvin, protagonista de História Real, de David Lynch. Ambos, movidos por impulsos sólidos, fazem viagens improváveis, isso frente ao entorno cínico e carente de valores. Outro ponto imprescindível ao filme é a bela fotografia em preto e branco de Phedon Papamichael, algo conexa à vista em A Última Sessão de Cinema, de Peter Bogdanovich. Tal aproximação não reside exatamente (ou apenas) no plano visual, mas, e principalmente, no que ambas estéticas legam aos filmes enquanto componentes deflagradores do estado das coisas no interior americano longe da badalação própria aos grandes centros, onde realidades paralelas parecem desenvolver-se.

Repleto de passagens bem-humoradas, contrapontos da melancolia vigente, Nebraska discute ligações sentimentais em termos intrincados, sem abdicar do direito de brincar com certos lugares-comuns acerca de relacionamentos parentais e amorosos, o que resulta numa narrativa com boa dose de leveza. O roteiro de Bob Nelson permite ao espectador surpreender-se com as atitudes dos personagens naquilo que as revela mais humanas e ordinárias. Percorremos junto dos mesmos um caminho sinuoso e transcendente, entre a solidão da autocomplacência e a comunhão nos instantes que nos definem enquanto seres tortuosos, complicados e, portanto, singulares por natureza.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

quinta-feira, 19 de junho de 2014

2001 - Uma Odisseia no Espaço


No começo reina a selvageria. Homens pré-históricos dão os primeiros passos rumo à evolução fundada na dominação do mais fraco e na conquista territorial, ambas tão caras a nossa espécie. O osso, fragmento do animal morto para saciar a necessidade do alimento, transforma-se em arma ao prolongar o corpo do agressor que mata o semelhante para mostrar superioridade. É a lei do mais forte. Numa das grandes transições do cinema, Stanley Kubrick transforma o fêmur numa nave, elipse responsável por nos jogar da aurora do homem à era dos descobrimentos extra-atmosféricos. O futuro está no espaço, nas estações repletas de inovações, no desvendamento do cosmos e de seus mistérios.  2001 – Uma Odisseia no Espaço aborda o universo, desde os primórdios até a primazia tecnológica, utilizando viés metafísico.

O futuro de Kubrick soa avançado atualmente. Parece que, embora progridamos ancorados nos saberes oriundos da ciência, há certas questões indecifráveis como, por exemplo, o monolito negro, espécie de enigma à mercê da subjetividade, pois destituído de valor objetivo. Tratado tal indício de vida inteligente fora da Terra, o objeto emite fortes sinais de rádio, ondas de comunicação entre estações tão distantes fisicamente quanto próximas numa dimensão desconhecida. Já que o mesmo surge também aos primatas no início, talvez simbolize ponte entre realidades temporalmente distintas, cujas interfaces estão justamente naquilo que nos define, isso para além de mero instrumento de propagação.

Hall 9000, inteligência artificial à frente de missão ao planeta vermelho, investe contra seus colegas de trabalho ao sentir-se ameaçado, vítima de conspiração. Por ser inumano e, mais ainda, cria nossa, esperamos dele submissão. O computador ataca, é vencido e sente medo (ou não) ante a morte. Não sabemos se ele possui emoções genuínas ou apenas respostas a uma programação prévia. O forte sentido de sobrevivência do ser inorgânico pode muito bem relacionar-se com nossa necessidade primal de evitar a falência por meio da subjugação do outro. Dentro dessa lógica, matamos simplesmente para não morrer, ou seja, a crueldade seria algo inerente à raça, bem como aos derivados que nos mimetizam. Hall 9000 agoniza, primeiro porque o homem lhe incutiu o medo da finitude e segundo por fenecer justo nas mãos do homem. O “Deus” da máquina não aceita rivais, por isso pune com a morte.

A obsessão de Kubrick, o centro como ponto de convergência, atinge ápice em 2001 – Uma Odisseia no Espaço. O visual bastante particular confere ao longa estabilidade conceitual, esta, paradoxalmente, minada pela encenação. Dentro do mundo harmônico de Kubrick, da imagem inequívoca e controlada, abundam questões de cunho filosófico/existencial que lançam tudo num breu proposital, onde as perguntas buscam validade em si, prescindindo das respostas, ou melhor, de definições taxativas. Provavelmente não há filme empenhado na mesma medida em investigar a essência como 2001 – Uma Odisseia no Espaço, levando em consideração, para isso, desde o remoto passado da irracionalidade, do instinto enquanto conduto de ações, até a era da razão, das inovações de uma civilização tão ignorante sobre a complexidade do “ser”, quanto eram seus ancestrais primatas. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Doses Homeopáticas #21

Karin Aïnouz é atualmente nosso melhor diretor, e isso fica mais fácil de dizer quando nos deparamos com algo do porte de PRAIA DO FUTURO, seu mais recente filme. Ainda que nas duas primeiras partes as lacunas se estendam aqui e ali, às vezes um pouco além da conta - o que não ocorre na milimétrica fração derradeira, na qual os irmãos se reencontram na gélida Berlim - é impressionante o controle narrativo que o diretor tem, sua capacidade de moldar o tempo em prol na sensação almejada. É um cinema de interpretações (aqui, graças a Wagner Moura e Jesuíta Barbosa, principalmente), mas, sobretudo de imagens, aliás as mais belas que nosso cinema viu recentemente. PRAIA DO FUTURO é criação de gente grande, que não precisa desculpar-se de sua origem para fazer sentido, que corre o mundo como quem anda descalço pelo quintal.       


Baseado num caso verídico, O MASSACRE DA SERRA ELÉTRICA é um filme que não tem culpa de seus derivados. Este clássico de 1974, no qual jovens são brutalmente assassinados durante a exploração do interior americano bizarro, na vizinhança de um matadouro, onde a desolação parece corroer tudo, das casas às sanidades, rendeu uma série de sequências e subprodutos. Letherface, o assassino da motosserra, cuja máscara é feita de pele humana, entrou no imaginário coletivo e foi utilizado à exaustão em realizações muito abaixo desta. A câmera de Tobe Hopper captura ângulos inusitados que contribuem para uma sensação continua de estranhamento, enquanto os sons completam a tensão. Artesania rara, ainda que hoje algumas coisas soem datadas, um tanto toscas.     


X-MEN: DIAS DE UM FUTURO ESQUECIDO é um bom filme, além de uma engenhosa jogada de mercado. Enquanto cinema, é um exemplar que, se não tem lá tantas partes empolgantes, mantém o foco na história e nos personagens do anterior, X-Men: A Primeira Classe. As figuras se desenvolvem entre o futuro sem perspectiva para os mutantes, de onde Wolverine se desloca para tentar consertar as coisas, e o passado no qual as coisas ainda podem ser consertadas. Há boas cenas de ação e uma sobriedade que não se vê, por exemplo, nos filmes da Marvel. Agora, a jogada de mercado está em fundir numa só linha de tempo a antiga e a nova cronologia, ainda (SPOILERS) ressuscitando para os próximos filmes alguns personagens sacrificados anteriormente, cujos carismas fazem muito bem à franquia.


A reexibição de clássicos no cinema deveria ser prevista em lei, assim como é a cota de tela, por exemplo. TÁXI DRIVER adquire ainda mais grandeza se visto nas condições merecidas. Travis, veterano da Guerra do Vietnã, vaga insone em seu taxi por uma Nova Iorque corrompida até a última alameda repleta de miséria humana. Tentativas de normatizar sua rotina não faltam, mas esse outsider falha e resolver salvar para ser minimamente salvo. Um cowboy urbano que, de alguma maneira, remete a Ethan Edwards, clássico personagem de John Wayne em Rastros de Ódio, e que vira herói por fazer justiça com as próprias mãos. A câmera de Scorsese deforma a paisagem para justamente extrair o que ela tem de verdadeiro. O trabalho impressionante de Robert De Niro faz de Travis um dos grandes protagonistas do cinema. TÁXI DRIVER já era obrigatório, na tela grande, então, torna-se essencial. 


Por que Abbas Kiarostami desloca pouco a câmera em DEZ, fazendo a imagem refém de sua imobilidade, no mais das vezes? Por que, da mesma forma, em cada diálogo dos segmentos que compõem o longa, geralmente apenas um dos interlocutores é mostrado, e justo aquele que está no papel de “censor” do drama contado no banco (do carro) ao lado? Suponho que essas escolhas estão longe do acaso, pois elas amplificam os conflitos verbais, estes sempre alusivos à situação da mulher no Irã. Desde o filho (homem) que recrimina a mãe por ela ter se separado do pai, até as reprimendas dessa própria mãe (uma mulher moderna para os padrões locais) à prostituta para quem dá carona, tudo converge para formar um painel complexo da posição feminina no país. DEZ é um daqueles filmes que deflagram a genialidade de seu diretor, pois amplo e complexo nas suas aparentes simplicidade e aleatoriedade.