Mesmo sem uma banda, ouve-se a
banda, pois tudo está gravado: clarinetes, trompetes, trombones e a voz da
intérprete que persiste mesmo após desmaio. No Clube Silêncio, Rebekah Del Rio
canta o amor sem volta, cuja herança é a lamúria de quem ficou a sofrer.
A história inicia nas curvas da
Mullhohand Drive, de onde se pode ver as luzes de Los Angeles, Hollywood.
Acidente automobilístico. Uma bela e desmemoriada morena acaba escondida junto
à Betty (Naomi Watts), esta recém-chegada à Meca do cinema, rumo ao sonho de
ser atriz. Betty fica extasiada com o mistério e se envolve gradativamente com a
curvilínea estranha. Paralelo à relação crescente e logo carnal das duas, um cineasta
é coagido por gângsteres, financiadores de seu próximo trabalho, a aceitar
Camila Rhodes como protagonista, dentre tantas atrizes melhores. Hollywood
ferve num lodo podre de escusa origem, onde a arte está sob o véu dos
interesses. Habituado a investigar as profundezas de pequenas localidades,
expondo o lado negro de logradouros onde reina a paz aparente, David Lynch
transfere seu olhar à cosmopolita Los Angeles, para, quem sabe, fazer uma das
obras mais brilhantes acerca do encanto doentio exercido pela terra do cinema.
Em meio a cowboys e mendigos
bizarros, um suspense de contornos tipicamente lynchinianos. Há pouca sustentação. Temos a sensação de vivenciar
quase epidermicamente o abstrato fascínio pelo cinema, aquele bom cinema que
nos transporta do real a outro lugar. Depois do Clube Silêncio, a escuridão transformadora
contida na caixa azul. Como se regurgitados do filme fôssemos, acabamos noutra
realidade (ou seria a mesma?), marcada por embaralhamento de papeis. Betty
agora é Diane, Rita é Camila, mortos reaparecem, figuras fantasmáticas
estabelecem novas conexões, e ficamos nós, não propriamente à deriva, mas
tateando ligações instauradas muito mais no plano conceitual do que no das
evidências tangíveis.
Cidade dos Sonhos foi originalmente concebido como piloto de série televisiva
que, infelizmente, não vingou. Sua
estrutura repleta de significações, entre as óbvias e as cifradas, estabelece ligações
com o restante da filmografia de Lynch. Fala a respeito da sétima das artes como
nenhum outro exemplar do diretor, investigando o nefasto residente nas
entranhas da fama. A artificialidade inerente às gravações, seja a música do
clube misterioso ou o próprio cinema, dá vida eterna, na maioria das vezes
estanque, a mitos e respectivos contornos. Cidade
dos Sonhos, por sua vez, se mostra diferente a cada audiência. Mesmo
gravado, ali, eternizado em película ou em digital, é arte que não para de
desdobrar-se. Ainda em silêncio, é um filme de inquieta e ruidosa genialidade.
Ralph Fiennes é o centro da
excelente trama cronenberguiana vista
em Spider – Desafie Sua Mente. Uma
das obras mais “formais” do cineasta, ela surge do emaranhado de questões
edípicas, oníricas e minimalistas. Prioriza o detalhe, a escuridão das
lembranças de Denis, a tristeza e a confusão mental do menino, parceiras
incômodas também do adulto repleto de traumas e fissuras. As imagens do passado
são requintadas e nos dão a perfeita sensação de ver o menino introspectivo,
problemático e possuidor da estranha mania de tecer fios pelo quarto, como que
exteriorizando o complexo entrelace de ideias que à sua (somente à sua) mente
faz todo sentido.
Os diálogos têm sua importância
diminuída se comparados ao impacto das imagens e dos sons, elementos estes imprescindíveis
à formulação das lembranças do menino apelidado “Spider”, base do adulto
perturbado. A tríade formada pelos atores Ralph Fiennes, Miranda Richardson (que
interpreta tanto a mãe quanto a amante) e Gabriel Byrne (o pai) é um dos muitos
acertos do diretor.
O drama apresentado é bastante
realístico se pensarmos na esquizofrenia, por exemplo, suas possíveis origens,
sintomas e desdobramentos. Parece que Cronenberg atirou no que viu e acertou no
que não viu. Ele aposta na trama dramática, na teia complexa que Spider constrói,
em suas lembranças mórbidas e na "poesia" que emana da narrativa
muito bem amarrada, seca e, por vezes, objetiva. Acerta em cheio quando
caracteriza Ralph Fiennes desde a infância até a idade adulta tal e qual um
sujeito amargurado, atormentado pela doença mental. Nenhum outro filme tratou esse
assunto tão bem, com tamanha propriedade, quanto Spider - Desafie Sua Mente.
Tanto em Cidade dos Sonhos quanto em Spider
– Desafie sua Mente há personagens cujo retorno às respectivas cidades pode
simbolizar, em última instância, a própria sobrevivência. No filme de Lynch, a
bela e desmemoriada Rita, escapa de um acidente de carro antes de voltar (?) a Los
Angeles. Já na trama urdida por Cronenberg, Dennis regressa a sua Londres
natal, após confinamento no hospital psiquiátrico, escapando assim de um
ambiente hostil e enlouquecedor no qual viveu.
Em Spider – Desafie Sua Mente todas as informações, mesmo as
lembranças, são passadas de forma coesa e, digamos, “real”, sem iludir
demasiado o espectador. Cidade dos Sonhos,
por sua vez, em algum sentido, promove embaralhamento por meio de fluxos
estranhos, imagens surreais/fantasiosas, ou seja, opera em outro nível da
percepção do espectador, aumentando assim a subjetividade da experiência.
Por Ana Carolina Grether e Marcelo Müller
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CIDADE
DOS SONHOS – Por Irene Grether
O filme Cidade
dos Sonhos é surpreendente, não só pela trama, mas também pela estrutura
narrativa que não segue uma linearidade esperada. Para evitar o risco de
revelar demais o enredo, poderíamos dizer apenas que o filme segue o mesmo
princípio da formação dos sonhos. Passado e presente não são apresentados
consecutivos um ao outro. David Lynch parece, ainda, se valer dos ditames
teóricos da psicanálise, uma vez que os personagens se condensam e se deslocam
obedecendo aos princípios de metáfora e metonímia identificados por Freud no
estudo dos sonhos, base para postular a existência do inconsciente.
As condições à figurabilidade são inerentes à
linguagem tanto dos sonhos, quanto do cinema. Cidade dos Sonhos coloca de forma exemplar os sonhos enquanto
realização de desejos inconscientes. Podemos citar como evidência disso a figura
ideal que a protagonista cria em boa parte do filme. A mistura de sonho e
delírio nos lança muitas dúvidas sobre o que se passa na linearidade aparente.
O autor nos leva além: mostra que sonhar, delirar, viver, tudo isso joga com
nossa percepção e memória. Pena que a tradução em português tenha sido tão
explícita ao apontar uma das chaves do enigma.
Afora a linguagem simbólica dos sonhos e do
inconsciente, alguns signos são utilizados pelo autor (a chave e a caixa azul)
como entrada nas diversas portas do tempo ou nas linhas de escape. É também
bastante reveladora de seu olhar teórico a utilização dos jogos de culpa e
reparação presentes em toda narrativa. O casal mais velho de turistas,
inicialmente "pais bons e acolhedores", é o mesmo que em outro
momento ri da protagonista, martirizando-a como uma instância superegoica. Este
é um dos fatores deflagradores do sonho, pois fragmento aparentemente sem
importância, mas que por sua carga emocional tem a possibilidade de explicitá-lo.
Assim como Freud identifica o umbigo do sonho, David
Lynch nos deixa alguns significantes soltos, como que apontando para esse
umbigo, sinal de alteridade, incompletude, impossibilidade de uma interpretação
totalizante. Aliás, para Foucault, Nietzsche e Freud, a interpretação é uma
tarefa infinita, não se atingem pontos ideais, uma vez que ela volta a si mesma.
Algo parecido com a experiência da loucura ou do silencio das palavras.
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SPIDER – DESAFIE SUA MENTE – Por Rafael Müller
Muitos alegam não ter medo. Medo
de nada, nem mesmo da ausência de tudo. Outros, por sua vez, se não temem tudo,
temem algo. De roedores a fantasmas, de concretude a ectoplasma.
Já havia assistido a Spider, contudo o tempo levou consigo
minhas lembranças, cá deixando apenas uma difusa sensação de prazer e
satisfação. Indubitavelmente, um filme pesado, cheio de nuances, evidenciado,
sobretudo, pela fotografia, onde sombras imperam e sugerem os recônditos da
mente. Nele, somos convidados a mergulhar no perturbado Sr. Dennis “Spider”
Cleg, magistralmente interpretado por Ralph Fiennes. Muito daquilo em tela vem
do processo neural do protagonista. Sendo assim, não podemos defini-la enquanto
realidade comum a todos.
Hoje, estamos permanentemente
conectados em rede, em teia; as barreiras foram quebradas e não existem mais
fronteiras. Paradoxalmente, Spider isola-se na teia, emaranha-se nela, assume
os papéis de predador e presa. A teia? Sua mente, que mente para a gente e para
si. Mentiras sinceras, realidades paralelas e independentes. Por isso, sensato
é o homem que teme. Aquele que teme sua mente carrega a sabedoria própria da
sensatez.