Em 2006, quando Império dos Sonhos foi lançado, muita
gente se sentiu enganada, incluindo aí alguns fãs fervorosos de David Lynch. A
controvérsia gerada não é gratuita, afinal de contas dá para dizer: esse é um
dos filmes mais delirantes feitos nos últimos anos. Inclassificável,
indecifrável, fraude, engodo, o que seria Império
dos Sonhos? Para começar, ele radicaliza os processos narrativos de Cidade dos Sonhos, seu antecessor. Se na
trama iniciada nas sinuosas curvas da Mulhohand Drive o onírico carrega o drama
em dois tempos bastante distintos, cuja comunicação já se dá mais por meio dos vários
vieses interpretativos, do que por qualquer concretude, aqui a sensação de
confusão é bastante amplificada, pois, para começar, não são apenas duas
“realidades”, mas múltiplas camadas imbricadas, estas ora contradizendo, ora afirmando
umas as outras.
Algumas coisas soam gratuitas em Império dos Sonhos, dando insumos aos
detratores de Lynch para reforçar a ideia de engodo. Mas se mergulharmos nem
que seja um pouco no delírio do diretor, talvez consigamos pistas. A mulher que
acompanha os acontecimentos pela televisão pode ser nosso elo com a
“realidade”. A TV, quiçá veículo das projeções de seu inconsciente, é moldura
por onde vemos a personagem que supostamente “criou” para lhe representar num
mundo ideal, onde ela seria famosa, bem sucedida, disputada por dois homens
(inclusive o marido, zeloso ao extremo, diferente do seu “real”, estagnado), e
ainda as referências a um possível passado de prostituição na Polônia.
Hipóteses, apenas hipóteses.
Por sua vez, a famigerada sitcom
de coelhos parece figurar apenas como pontuação do ridículo, pois alude ao
cotidiano de uma família americana classe média, com jargões e seu respectivo “público”
pronto para gargalhar de qualquer coisa. Império
dos Sonhos é um filme difícil de ver, longo e pesado. Em meio a tanta
incerteza e falta de chão, fica o enigma por solucionar ou curtir sem ambicionar
a resolução. Claro, há também os que torcem quadro após quadro para o filme (e
o martírio) acabar.
Antes mesmo de Senhores
do Crime, o duo Viggo Mortensen/David Cronenberg já havia provado, em 2005,
que daria muito certo, com Marcas da Violência,
filme igualmente voltado à brutalidade dos homens, à capacidade do ser
humano de desvirtuar-se visando poder. Tão violentos quanto inteligentes, tão crus
quanto profundos, ambos os longas revelam a porção realista e convencional às
quais Cronenberg parece ter se rendido, é claro, sem deixar de lado o estilo
metafórico e biológico-humano.
Entre mistérios e paixões (sem trocadilhos), Senhores do Crime conta a história de
Anna, parteira que presencia a morte de uma jovem, justo durante trabalho de
parto. Ao revelar a noticia para a família, a moça acaba descobrindo o que acontecia
por trás de tudo aquilo, os meandros escusos sob o véu da aparente normalidade.
Ali, onde as leis do submundo emergem para dominar a superfície, ela conhece
Nikolai, homem misterioso e soturno que, aos poucos, se revela um típico
personagem cronenberguiano. Aliás, incrível
atuação de Viggo Mortensen!
Se com Império
dos Sonhos David Lynch polarizou opiniões, mesmo entre seus “seguidores”
mais xiitas, estes divididos entre as qualidades do longa e a presença excessiva
de elementos cifrados, Cronenberg com Senhores
do Crime não apenas apresentou um dos filmes mais incisivos e violentos de
sua carreira, mas também reafirmou a curva criativa iniciada com Marcas da Violência, assim angariando
novos públicos, além dos seus fãs afeitos a metamorfoses e às transformações
(físicas e psicológicas) antes apresentadas de maneira mais explícita.
A
respeito dos filmes e da relação dos mesmos com a obra de seus criadores, podemos
dizer que enquanto Cronenberg rumou ao amadurecimento, Lynch deu passos à
radicalização perigosa e restritiva de seu cinema.
Por Ana Carolina Grether e Marcelo Müller
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IMPÉRIO DOS SONHOS – Por Lai King Wu
Associe os coelhos que aparecem em Império dos Sonhos à ilusão, pois eles são animais utilizados em mágicas, aparecendo dentro das cartolas. Portanto, para mim, foi o filme mais difícil de ser decifrado e o único que me deu medo. Laura Dern está maravilhosa, o tempo todo é como se estivesse possuída por algum espirito. Obra-prima incompreensível, incoerente, um pesadelo onde os personagens se comunicam através de códigos, um labirinto caótico e cheio de espelhos. Eu digo espelhos, pois sinto que, no fundo, possuímos um filme do Lynch dentro de nós, havendo um reflexo nosso nas histórias distorcidas que são contadas.Império dos Sonhos foi o único filme que me fez ver também conferir os extras. Eu nunca vejo. E lembro que, em algum momento, comecei a confundir o filme com Cidade dos Sonhos. Ainda acho Império dos Sonhos bem mais complexo.
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SENHORES DO CRIME – Por Bianca Siqueira
David Cronenberg me fez lembrar os heróis de outrora, onde máscaras e disfarces davam conta da segurança da localidade. Eles se misturavam com a rotina das pessoas e ali podiam ver as mazelas sociais e afastá-las. Aqui, em Senhores do Crime, este personagem veste o disfarce e se mistura a máfia para desvendar seus domínios.
O roteiro de Cronenberg destaca uma adolescente em trabalho de parto e o nascimento da sua filha. A partir deste fato nos deparamos com a exploração sexual de menores e homicídios praticados por esta organização que detém poder econômico, e aparente harmonia familiar. Estes símbolos de projeção social desenham as bases do poder paralelo para um cotidiano perverso. As interações promovidas pela máfia se projetam e contaminam valores fundamentais da cultura local. O nascimento e a morte, por exemplo, são apenas estatísticas, pois o verdadeiro significado destes bens é ditado pelas necessidades desta organização.
Símbolos importantes para a igreja, como a cruz, a águia de duas cabeças, são apropriados pelos integrantes do grupo para que entre eles se faça a comunicação desejada. Outros símbolos bem mais sutis e bem, mais difíceis de serem retratados, também são cooptados e transmitidos de forma singular. É nesta dinâmica que Cronenberg nos permite um interlocutor infiltrado esclarecendo as articulações mantenedoras desse poder.
Já estou ansioso pela próxima temporada do "Doses".
ResponderExcluirGrande abraço.
Olá, Rafa
ResponderExcluirJá definimos o próximo diretor, é alguém cujo cinema é desconhecido tanto por mim, quanto pela Carol. Mas as recomendações são as melhores possíveis. Veremos.
Abração