domingo, 17 de novembro de 2013

CINEMA A DOIS | OS DAVIDS - Cidade dos Sonhos e Spider - Desafie Sua Mente


Mesmo sem uma banda, ouve-se a banda, pois tudo está gravado: clarinetes, trompetes, trombones e a voz da intérprete que persiste mesmo após desmaio. No Clube Silêncio, Rebekah Del Rio canta o amor sem volta, cuja herança é a lamúria de quem ficou a sofrer.

A história inicia nas curvas da Mullhohand Drive, de onde se pode ver as luzes de Los Angeles, Hollywood. Acidente automobilístico. Uma bela e desmemoriada morena acaba escondida junto à Betty (Naomi Watts), esta recém-chegada à Meca do cinema, rumo ao sonho de ser atriz. Betty fica extasiada com o mistério e se envolve gradativamente com a curvilínea estranha. Paralelo à relação crescente e logo carnal das duas, um cineasta é coagido por gângsteres, financiadores de seu próximo trabalho, a aceitar Camila Rhodes como protagonista, dentre tantas atrizes melhores. Hollywood ferve num lodo podre de escusa origem, onde a arte está sob o véu dos interesses. Habituado a investigar as profundezas de pequenas localidades, expondo o lado negro de logradouros onde reina a paz aparente, David Lynch transfere seu olhar à cosmopolita Los Angeles, para, quem sabe, fazer uma das obras mais brilhantes acerca do encanto doentio exercido pela terra do cinema.

Em meio a cowboys e mendigos bizarros, um suspense de contornos tipicamente lynchinianos. Há pouca sustentação. Temos a sensação de vivenciar quase epidermicamente o abstrato fascínio pelo cinema, aquele bom cinema que nos transporta do real a outro lugar. Depois do Clube Silêncio, a escuridão transformadora contida na caixa azul. Como se regurgitados do filme fôssemos, acabamos noutra realidade (ou seria a mesma?), marcada por embaralhamento de papeis. Betty agora é Diane, Rita é Camila, mortos reaparecem, figuras fantasmáticas estabelecem novas conexões, e ficamos nós, não propriamente à deriva, mas tateando ligações instauradas muito mais no plano conceitual do que no das evidências tangíveis.

Cidade dos Sonhos foi originalmente concebido como piloto de série televisiva que, infelizmente, não vingou.  Sua estrutura repleta de significações, entre as óbvias e as cifradas, estabelece ligações com o restante da filmografia de Lynch. Fala a respeito da sétima das artes como nenhum outro exemplar do diretor, investigando o nefasto residente nas entranhas da fama. A artificialidade inerente às gravações, seja a música do clube misterioso ou o próprio cinema, dá vida eterna, na maioria das vezes estanque, a mitos e respectivos contornos. Cidade dos Sonhos, por sua vez, se mostra diferente a cada audiência. Mesmo gravado, ali, eternizado em película ou em digital, é arte que não para de desdobrar-se. Ainda em silêncio, é um filme de inquieta e ruidosa genialidade.

Ralph Fiennes é o centro da excelente trama cronenberguiana vista em Spider – Desafie Sua Mente. Uma das obras mais “formais” do cineasta, ela surge do emaranhado de questões edípicas, oníricas e minimalistas. Prioriza o detalhe, a escuridão das lembranças de Denis, a tristeza e a confusão mental do menino, parceiras incômodas também do adulto repleto de traumas e fissuras. As imagens do passado são requintadas e nos dão a perfeita sensação de ver o menino introspectivo, problemático e possuidor da estranha mania de tecer fios pelo quarto, como que exteriorizando o complexo entrelace de ideias que à sua (somente à sua) mente faz todo sentido.

Os diálogos têm sua importância diminuída se comparados ao impacto das imagens e dos sons, elementos estes imprescindíveis à formulação das lembranças do menino apelidado “Spider”, base do adulto perturbado. A tríade formada pelos atores Ralph Fiennes, Miranda Richardson (que interpreta tanto a mãe quanto a amante) e Gabriel Byrne (o pai) é um dos muitos acertos do diretor.

O drama apresentado é bastante realístico se pensarmos na esquizofrenia, por exemplo, suas possíveis origens, sintomas e desdobramentos. Parece que Cronenberg atirou no que viu e acertou no que não viu. Ele aposta na trama dramática, na teia complexa que Spider constrói, em suas lembranças mórbidas e na "poesia" que emana da narrativa muito bem amarrada, seca e, por vezes, objetiva. Acerta em cheio quando caracteriza Ralph Fiennes desde a infância até a idade adulta tal e qual um sujeito amargurado, atormentado pela doença mental. Nenhum outro filme tratou esse assunto tão bem, com tamanha propriedade, quanto Spider - Desafie Sua Mente.

Tanto em Cidade dos Sonhos quanto em Spider – Desafie sua Mente há personagens cujo retorno às respectivas cidades pode simbolizar, em última instância, a própria sobrevivência. No filme de Lynch, a bela e desmemoriada Rita, escapa de um acidente de carro antes de voltar (?) a Los Angeles. Já na trama urdida por Cronenberg, Dennis regressa a sua Londres natal, após confinamento no hospital psiquiátrico, escapando assim de um ambiente hostil e enlouquecedor no qual viveu.

Em Spider – Desafie Sua Mente todas as informações, mesmo as lembranças, são passadas de forma coesa e, digamos, “real”, sem iludir demasiado o espectador. Cidade dos Sonhos, por sua vez, em algum sentido, promove embaralhamento por meio de fluxos estranhos, imagens surreais/fantasiosas, ou seja, opera em outro nível da percepção do espectador, aumentando assim a subjetividade da experiência.

Por Ana Carolina Grether e Marcelo Müller

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CIDADE DOS SONHOS – Por Irene Grether 
O filme Cidade dos Sonhos é surpreendente, não só pela trama, mas também pela estrutura narrativa que não segue uma linearidade esperada. Para evitar o risco de revelar demais o enredo, poderíamos dizer apenas que o filme segue o mesmo princípio da formação dos sonhos. Passado e presente não são apresentados consecutivos um ao outro. David Lynch parece, ainda, se valer dos ditames teóricos da psicanálise, uma vez que os personagens se condensam e se deslocam obedecendo aos princípios de metáfora e metonímia identificados por Freud no estudo dos sonhos, base para postular a existência do inconsciente. 
As condições à figurabilidade são inerentes à linguagem tanto dos sonhos, quanto do cinema. Cidade dos Sonhos coloca de forma exemplar os sonhos enquanto realização de desejos inconscientes. Podemos citar como evidência disso a figura ideal que a protagonista cria em boa parte do filme. A mistura de sonho e delírio nos lança muitas dúvidas sobre o que se passa na linearidade aparente. O autor nos leva além: mostra que sonhar, delirar, viver, tudo isso joga com nossa percepção e memória. Pena que a tradução em português tenha sido tão explícita ao apontar uma das chaves do enigma. 
Afora a linguagem simbólica dos sonhos e do inconsciente, alguns signos são utilizados pelo autor (a chave e a caixa azul) como entrada nas diversas portas do tempo ou nas linhas de escape. É também bastante reveladora de seu olhar teórico a utilização dos jogos de culpa e reparação presentes em toda narrativa. O casal mais velho de turistas, inicialmente "pais bons e acolhedores", é o mesmo que em outro momento ri da protagonista, martirizando-a como uma instância superegoica. Este é um dos fatores deflagradores do sonho, pois fragmento aparentemente sem importância, mas que por sua carga emocional tem a possibilidade de explicitá-lo. 
Assim como Freud identifica o umbigo do sonho, David Lynch nos deixa alguns significantes soltos, como que apontando para esse umbigo, sinal de alteridade, incompletude, impossibilidade de uma interpretação totalizante. Aliás, para Foucault, Nietzsche e Freud, a interpretação é uma tarefa infinita, não se atingem pontos ideais, uma vez que ela volta a si mesma. Algo parecido com a experiência da loucura ou do silencio das palavras.

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SPIDER – DESAFIE SUA MENTE – Por Rafael Müller 
Muitos alegam não ter medo. Medo de nada, nem mesmo da ausência de tudo. Outros, por sua vez, se não temem tudo, temem algo. De roedores a fantasmas, de concretude a ectoplasma. 
Já havia assistido a Spider, contudo o tempo levou consigo minhas lembranças, cá deixando apenas uma difusa sensação de prazer e satisfação. Indubitavelmente, um filme pesado, cheio de nuances, evidenciado, sobretudo, pela fotografia, onde sombras imperam e sugerem os recônditos da mente. Nele, somos convidados a mergulhar no perturbado Sr. Dennis “Spider” Cleg, magistralmente interpretado por Ralph Fiennes. Muito daquilo em tela vem do processo neural do protagonista. Sendo assim, não podemos defini-la enquanto realidade comum a todos. 
Hoje, estamos permanentemente conectados em rede, em teia; as barreiras foram quebradas e não existem mais fronteiras. Paradoxalmente, Spider isola-se na teia, emaranha-se nela, assume os papéis de predador e presa. A teia? Sua mente, que mente para a gente e para si. Mentiras sinceras, realidades paralelas e independentes. Por isso, sensato é o homem que teme. Aquele que teme sua mente carrega a sabedoria própria da sensatez.

5 comentários:

  1. Que textos densos e certeiros!

    Parabéns! Chegaram ao final das parcerias no mais alto nível :)

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  2. Gente, É só sucesso essa parceria inusitada de Irene e Rafael hehe. Demais os dois textos e quase complementares. Concordo com a Mana, alto nível!!!

    Marcelo também arrebentando na edição, pra variar :)
    Muito legal o resultado final. bjs

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  3. Já está dando saudade desse CINEMA A DOIS | OS DAVIDS. Acho que é o mais legal que eu a Carol já fizemos, muito pela participação do pessoal com textos de alto nível.

    E neste, em especial, Irene e Rafael mandaram muito bem.

    Carol, obrigado pela parceria, fazer o CINEMA A DOIS contigo é um prazer.

    Beijos

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  4. Adorei a parceria. Quando precisarem, basta um toque \o/

    Grande abraço.

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  5. Sempre bom revisitar o mundo dos símbolos e das conexões. Lynch meus pensamentos e David minhas emoções. Tenho que ver Spider o desafio está lançado. Valeu meninos!

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