Antes de a ciência explicar a
alternância entre dia e noite, acreditava-se que tal fenômeno ocorria porque
Sol e Lua eram amantes amaldiçoados, fadados ao eterno desencontro. Então,
obliterada pelo conhecimento, a lenda perdeu força de verdade, mas não beleza
poética. O cineasta Julio Medem vale-se dessa história como atributo, conferindo,
assim, algo de fábula a Lucia e o Sexo,
filme no qual as camadas evidentes de representação são enriquecidas por
influência do onirismo, este projetado a partir dos anseios, expectativas e sofrimentos
dos personagens. A narrativa se divide em duas: Lucia, breve e dotada de
cotidianidade um tanto arenosa; e o Sexo, extensa e complexa, repleta de referências,
metáforas e alusões.
Lucia (Paz Vega) está num
relacionamento conturbado com Lorenzo (Tristán Ulloa), escritor em crise
pessoal. Discussão, arrependimento e acidente, em sequência, jogam a sensual
espanhola em fuga repentina rumo à ilha da qual tanto seu amado falava, lá onde
pairam lendas sobre imortalidade e buracos de propriedades extraordinárias. Daí,
passamos de Lucia ao Sexo, este componente instável que não tardará a se
inserir nas mais diversas situações, cada qual mediada por ele num ritmo próprio.
Medem inverte o lugar-comum: a noite deixa ver bem, enquanto o dia provoca
cegueira por meio da luminosidade excessiva que “dissolve” silhuetas, mesclando-as
à paisagem. Essa força visual é possível graças a fotografia de Kiko de la
Rica, longe de ser mero atributo técnico, pois forte o suficiente para criar e/ou
amplificar significações.
No filme, o corpo de Paz Vega é
por onde escoa o desejo. Sua beleza é confrontada em grau de importância pela
força de uma natureza simbólica existente na ilha, onde há o desate de nós até
então insolúveis. Alternam-se presente e passado, e através dos flashbacks começaremos a entender tanto
a melancolia de Lorenzo e o desespero de Lucia, quanto as demais relações, seja
o triângulo “mãe, marido e filha”, ou aquela responsável por gerar Luna, menina
logo vítima do improvável. Medem constrói a linguagem sobre determinado
mistério, dá existência espectral a objetos e lugares inanimados, ao passo que
faz do corpo espécie de santuário particular, mesmo quando exposto. Enigmas
transitam entre as pessoas como se delas fossem ora guia generoso, ora senhor
absoluto, e constituem elemento responsável por, regendo os outros,
proporcionar ao longa uma aura tão fantástica como íntima.
Lucia e o Sexo tem os dois pés num real estilizado, bastante sui generis. Lucia purifica sua alma
sôfrega em contato desnudo com o local dos mitos; Lorenzo aspira à paternidade
e afunda ao ver tal possibilidade acabar; Elena (Najwa Nimri) se isola para aliviar
dores múltiplas; e Belén (Elena Anaya) se situa entre o desejo e a moral. Todos
parecem tatear em busca de algo essencial que lhes foi negado. Apenas na
famigerada ilha, aliás, onde tudo começa na relação sexual capital ao filme,
eles reaverão um pouco da paz ameaçada ou perdida. Diferente do Sol e da Lua,
segundo a lenda, condenados à solidão, o amor e a libido finalmente se
concatenarão, deixando de digladiar, assim que as tragédias e os desvãos forem
aceitos como parte inevitável de viver.
Publicado originalmente no Papo de Cinema
Procurei pelo trailer e gostei do que vi. Obrigado, Celito.
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