domingo, 30 de março de 2014

CINEMA A DOIS | ANDREA ARNOLD – Marcas da Vida (2006)


Marcas da Vida se passa numa Glasgow atual, retratada, acredito, com mais tons de cinza e escuro do que o normal. Nada agrada no âmbito visual, nem no que diz respeito à construção dos personagens, à exploração dos lugares, tampouco às situações, estas quase sempre duras, torturantes e violentas. Quantos atos mecânicos, sem vida, sem luz, desde o sexo até os diálogos.

Este deve ser o tipo de filme que desponta pelo viés independente, autoral, e ah, isto ele é: bastante autoral, único, ímpar! Uma personagem que vive para vigiar e que assume o lugar de vigiada. No entanto, não há pistas ao longo do filme, exceto nos últimos momentos, nos quais entendemos algumas relações de A com B. O resto foi-se ao longo, sem muito esclarecimento. Quando os porquês são revelados a trama ganha sentido, mas até lá rola tédio, atenção redobrada pra não perder um gap, aqueles links que costumamos fazer para tentar dar sentido ao até então vazio do vazio.

É um estilo, como disse acima. Não faz muito a minha cabeça. Tons de cinza entremeados pelo próprio cinza como cor de base e pano de fundo. Nada mais compõe esse cenário: só o cinza. Paradoxalmente Red Road, título original e nome do condomínio vigiado e vigilante, se localiza na cinza Glasgow. Sei lá, é como se alguma redenção da personagem surgisse no meio da Red Road, e até surge, mas não é pra tanto. Ela não colore o todo. Ela nem colore.
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Em Marcas da Vida, primeiro longa-metragem da diretora Andrea Arnold, o relevo principal é dado à imagem. Primeiro, porque a protagonista é uma daquelas observadoras de câmeras de segurança, alimentada pelas pequenas narrativas do cotidiano alheio enquanto evita delitos e outras distorções da paz. Por meio de seu olhar, da manipulação que ela faz das tomadas, a gente vê uma série de histórias que adicionam curiosidade à trama, sem obscurecê-la no seu principal. Segundo, porque a palavra é rarefeita, utilizada no limite da necessidade diante de uma construção imagética que dá conta de unir fragmentos, pouco a pouco, para que saibamos o que se passa.

A protagonista é enigmática, no início parece apenas obsessiva por uma espécie de vingança contra o homem que a desgraçou, mas sua obsessão vai ganhando ares de patologia mais grave ao passo que elementos insólitos do seu luto são apresentados. Mas não se trata de um inventário clínico, pois mesmo nos comportamentos mais incomuns a diretora deixa entrever os efeitos compreensíveis da dor. Quando tudo parece se encaminhar para o previsível, Andrea Arnold nos lembra de que não vemos um filme fundado na obviedade, mas na investigação de sentimentos conflitantes e não raro contraditórios. Entende-se: o erro é inerente ao ato de existir.


Por Ana Carolina Grether e Marcelo Müller  

quarta-feira, 26 de março de 2014

Doses Homeopáticas #17


Foi com muito prazer que revi ACROSS THE UNIVERSE, musical dirigido por Julie Taymor e embalado pelas canções dos Beatles. Gosto da maneira como a trama evolui, da juventude do casal protagonista, ela uma estudante americana e ele um rapaz que vive num subúrbio inglês, aos dias de protestos contra a Guerra do Vietnã, da turma “paz e amor”. Se não há nada de novo no percurso amoroso de ambos, isso não se aplica ao entorno, pois ele é marcado pelas tensões entre um Estado firme em seu propósito bélico-imperialista e a geração que buscava justamente se libertar. O virtuosismo da construção visual é imprescindível e totalmente integrado à narrativa que nunca dissocia ver e ouvir.


DON’T DRINK THE WATER é uma produção feita para a TV, escrita e dirigida por Woody Allen. A trama bizarra da família presa numa embaixada americana na Europa, em plena Guerra Fria, rende ótimas piadas, como as intervenções do padre/mágico refugiado há anos no mesmo lugar, ele, quem sabe, o melhor personagem do filme. De resto, a incomum câmera na mão - isso se levarmos em conta o estilo recorrente de Woody Allen - confere despojamento em meio aos cenários de estúdio. Allen interpreta novamente a si mesmo, o que é sempre muito bom de ver. Os coadjuvantes estão ótimos e o todo não deixa nada a desejar se comparado ao de outros filmes cômicos menores do cineasta.


A versão sueca de OS HOMENS QUE NÃO AMAVAM AS MULHERES, primeira parte da Trilogia Millennium de Stieg Larsson, é um ótimo exemplar investigativo, daqueles em que o suspense dita as regras em meio a uma trama interessante.  Os atores estão excelentes, sobretudo a até então desconhecida Noomi Rapace, na pele de Lisbeth Salander. A direção é simples e eficiente, mas senti falta de um peso maior da imagem, da construção da atmosfera mais ostensivamente opressora que se pode ver na versão americana dirigida por David Fincher. Ainda comparando ambas as versões, a sueca é mais eficaz no que diz respeito ao relacionamento dos protagonistas, pois evita a história de amor um tanto forçada do equivalente americano.


A segunda parte da Trilogia Millennium, A MENINA QUE BRINCAVA COM FOGO, possui a mesma direção correta de sua antecessora (por mais que o diretor seja outro), mas é bem inferior a ela por não contar com uma trama interessante o suficiente, nem como matéria-prima de suspense e nem como plataforma para o desenvolvimento dos personagens. Tudo se foca em Lisbeth, inclusive a investigação do cartel de prostituição que conduz direto ao seu passado. Mikael Blomkvist é reduzido a coadjuvante de luxo e mesmo a protagonista surge um tanto apática, sem o mesmo vigor que a caracterizou no filme inaugural. Parece que seguiram a série no piloto automático, totalmente ancorados no sucesso literário, sem a preocupação de fazer cinema.



Já A RAINHA DO CASTELO DO AR, terceira e última parte da Trilogia Millennium, a recoloca nos eixos. Deixando de lado a dispersão (leia-se também enrolação) do segundo filme, tem-se outra investigação de ramificações maiores do que as aparências permitem ver num primeiro momento, e cujo epicentro é novamente Lisbeth Salander. Além da trama interessante, a direção é dinâmica, privilegiando, agora sim, o desenvolvimento mais profundo dos personagens que foram apresentados na primeira parte e quase negligenciados na segunda em prol de algo bastante mal elaborado. A Trilogia Millennium se encerra com saldo bastante positivo, um todo inteligente que faz bonito frente à tradição dos thrillers

domingo, 23 de março de 2014

Encaixotando Helena


Está aí um filme que muitos amam odiar. Encaixotando Helena é a estreia da diretora Jennifer Chambers Lynch, filha do grande David Lynch, e sua trama funda-se na obsessão do cirurgião Nick Cavanaugh (Julian Sands) frente à beleza tão esfuziante quanto perigosa da prostituta Helena (Sherilyn Fenn). Uma noite de sexo basta para virar a cabeça desse homem atormentado pela mãe recém-falecida, que parece adolescente demasiado afetado se próximo de seu objeto de desejo. Tomado, então, por paixão doentia, o médico armará joguetes destinados a trazer Helena para perto, mesmo sendo avisado constantemente da inutilidade de tais recursos. Após acidente, as coisas assumirão caráter ainda mais insólito, para não dizer bizarro.

Encaixotando Helena, de fato, é um filme repudiado por muitos. Basta rápida pesquisa, indo de cinéfilos a críticos, passando também por espectadores ocasionais, para constatar as dificuldades pelas quais o longa passa em busca de “compreensão”. Longe da dinâmica quase abstrata característica de seu pai (algo entre o onírico e o surreal), Jennifer opta por um viés kitsch, no qual, por exemplo, as interpretações deliberadamente exageradas combinam muito bem com o desenrolar que ressalta o estranho dentro do prosaico. Tudo é uma questão de pontos de vista, e aqui me parece ainda mais imprescindível abraçar sem preconceitos as propostas estética e dramatúrgica, ambas assumidamente fakes.

O Dr. Cavanaugh ama sem medida, de maneira patológica. Helena sucumbe, ou melhor, os membros de Helena sucumbem para fazê-la refém da obsessão de um adulto imaturo e inseguro, cuja psique remonta à criança bastante influenciada pela frivolidade sexual da mãe. As sequelas do trauma são óbvias quando observamos o tipo de mulher que o protagonista procura para adorar: justo alguém à imagem e semelhança de sua progenitora. O próprio simplismo dessa projeção aponta à influência do melodrama, aqui aditivado de algo dos chamados “Filmes B”. Tal imbricamento linguístico sublinha, com força particular, a tragédia mental de Cavanaugh e o calvário físico de Helena.

O saldo de Encaixotando Helena é, sem dúvida, positivo. A história do médico apaixonado que mutila sua amada para dela ser cuidador (mesmo o enredo sendo relativo), é reforçada por um peculiar senso de encenação que, repito, Jennifer não emula do pai. De David, ela parece apenas herdar o gosto por trabalhar gêneros, deformando seus cânones com prazer subversivo. A guinada final - movimento canhestro para alguns - soa quase sem importância ou reverberação, pois, verdade ou não, todo périplo de Cavanaugh e Helena já está impresso na percepção do espectador. Difícil tirar da cabeça a figura de Sherilyn Fenn, sem braços e pernas, num altar elevado frente ao submisso homem que precisa dela para, de fato, sentir-se homem.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

quinta-feira, 20 de março de 2014

Ninfomaníaca ( )



O descompasso provocado por Lars von Trier entre o homem e a forma com que este se  organiza para viver suas fantasias ou emoções é abissal!  E nesta direção que vamos conhecer JOE (personagem de Lars) investigando suas questões afetivas, familiares e sociais com a ajuda da erudição de Seligman, um “velho” que a encontra ferida, sozinha, em um beco escuro da cidade. Ele se dispõe a cuidar de suas chagas (físicas e morais) a partir de uma afirmação feita por Joe:

- Sou um ser humano ruim!

Instalada em um quarto aconchegante do apartamento de Seligman, Joe se conecta com a sua história. A mais doce lembrança da infância, a exuberância juvenil, assim como a maturidade são caminhos percorridos por ambos em altas temperaturas. Joe nos dá imagens hedonistas de suas experiências sexuais.  Sua trajetória para a maturidade passa pelo prazer retirado das circunstâncias pelas quais se encontra (bizarras).  Desde muito pequena experimenta o medo da solidão, pois se identifica em outra esfera relacional e distante dos jogos tradicionais arraigados na estrutura comum das relações afetivas e sociais. Seligman parece perceber as singularidades de Joe e a segue (imageticamente) de mãos dadas pelos caminhos da experiência alheia. A cada passo encontrado uma abordagem filosófica, simbólica ou psicológica será incorporada ao assunto e assim as feridas de Joe vão cicatrizando até o dia clarear.

Seligman mais parece um analista, um facilitador com aptidões e conhecimentos vastos que auxiliam o percurso de ambos pelas questões humanas. Logo veremos que sua castidade também é um caminho singular e solitário utilizado para a leitura de mundo. Muitos outros símbolos são apresentados, como: a árvore de freixo que expõe sua alma no inverno (galhos aparentes), o prazer (hedonista) que se perde com a intimidade ou linguagem (conhecimento), o feminino e masculino encontrado nos objetos e ações, a maternidade + amor incondicional, o catolicismo ortodoxo que orienta seus fiéis pelo caminho da felicidade (prazer) e não da culpa, o catolicismo romano que escolhe justamente o contrário, a moral hipócrita da sociedade e dos grupos, e, como espinha central desta trajetória formatada pelo homem, Lars oferece a JOE uma couraça que se reflete neste pensamento:

“Amor é luxúria adicionada à inveja, ou ainda; Para cada cem crimes cometidos em nome do amor só um é cometido em nome do sexo...”.

E nesta direção vamos nos deparar com o arcabouço moral que destruirá a reputação pessoal de Joe. Ao mesmo tempo a presença de Seligman abre um parêntese para a capacidade humana se rever no acolhimento de novos conceitos e valores. Passamos pelo sadismo, abandonos, leviandade, entre outros, e chegamos ao perdão e a possibilidade de um horizonte muito claro para todos nós. Mas, a mediocridade humana estaria novamente à espera dos afetos para puxar o tapete da confiança. Seligman o homem casto e feliz teve a sua ereção e foi buscar seu prazer nas feridas de Joe, mas esta decidiu pela defesa da sua integridade física.

domingo, 16 de março de 2014

SUPERMAN II


Cresci assistindo Superman II, empolgado com o conflito nele existente entre o Super-Homem e os fugitivos da Zona Fantasma. O general Zod (Terence Stamp) sempre me pareceu o melhor dos antagonistas, ao menos o único capaz de enfrentar em pé de igualdade o quase indestrutível herói escondido por trás das lentes de Clark Kent (Christopher Reeve). Pois bem, sobrou-me um misto de alegria e decepção após revisitar esse filme outrora marcante. Inevitável que, transcorridos mais de 30 anos, ele agora soe datado e repleto de ideias meio bobas. Ora, se alguns longas mais artísticos e plurais sofrem os efeitos da passagem do tempo, o que dizer sobre um blockbuster de ação, reflexo direto, sobretudo, dos anseios da plateia infanto-juvenil de determinado período?

O início condensa o filme anterior, num resumo feito para lembrarmos os acontecimentos precedentes. Depois, Clark tenta atrair a atenção de Lois Laine (Margot Kidder), enquanto ela se mostra ávida na mesma medida por prêmios e pelo Super-Homem. Ao salvá-la de ataque terrorista na Torre Eiffel, ele detona a bomba de hidrogênio que acidentalmente liberta os três mais perigosos kryptonianos, aprisionados na Zona Fantasma: Zod, Ursa e Non. Ignorante quanto ao fato, Clark segue tentando conquistar a jornalista mais intrépida do Planeta Diário, isso até ela descobrir seu grande segredo e testemunhar uma renúncia importante. Ao passo que o Super decide abdicar dos poderes, com direito a jantar romântico no Polo Norte e tudo, a galera do mal “toca o terror” no mundo desprotegido.

Aí vem minha parte favorita. Já na condição humana, Clark toma surra ao tentar defender Lois de um valentão qualquer, assombrando-se com o fato de sangrar, por exemplo. Isso, somado às notícias do golpe liderado por Zod, o faz voltar atrás e querer novamente ser além de repórter ordinário. Orgulho ferido diante da mulher amada ou nobre senso de justiça? Você escolhe. Essa é das muitas sequências que perdem em drama e ganham em humor à medida que confrontadas com os parâmetros atuais, tanto dos filmes de herói quanto das obras de ação em geral. Claro, Superman II tem seu charme e, de alguma maneira, é interessante notar como os responsáveis driblavam os poucos recursos técnicos da época para criar cenas de voo, destruição, entre outras hoje muito mais corriqueiras por conta dos avanços digitais. 

Sem condescendência ou saudosismo exacerbado, dá para dizer: Superman II é filme que envelheceu mal, aliás, como não poderia deixar de ser, pois realizado com os efeitos e a mentalidade entertainer da época. Deixa-se ver numa boa, caso evitemos pegar no pé dessa roupagem defasada e nos atenhamos à graça do idílio amoroso do Super-Homem ou das outras atitudes ordinárias do alterego que nos parodia. Mesmo kryptoniano, humano, demasiadamente humano esse Kal-El do filme de Richard Lester, contudo de jeitão bastante ingênuo, verdade seja dita. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema 

quinta-feira, 13 de março de 2014

Doses Homeopáticas #16


PHILOMENA é um filme meio quadrado (ou redondo) demais, contudo é inegável tanto a excelência do trabalho dos atores, especialmente Judi Dench, quanto o talento de Frears para chocar contradições dentro uma construção narrativa clássica. Os momentos mais complexos ficam por conta do envolvimento da igreja católica, sobretudo sua atuação nefasta no passado, quando encarcerar meninas grávidas podia ser benéfico aos cofres. A contradição vem de Philomena, mulher devassada, mas que ainda possui fé. Sua alienação serve à crítica de Frears, assim como, de alguma maneira e paradoxalmente, mostra também o lado bom de ter no que acreditar. Pena que algumas obviedades e facilidades diluam o viés crítico do filme. Ao optar estritamente pelo “viés humano”, Frears minimizou o que poderia ser também grande do ponto de vista ideológico. 


Fora a passagem quase inútil em que o protagonista viaja a Chicago - inútil por não trazer qualquer coisa à trama - INSIDE LLEWYN DAVIS: BALADA DE UM HOMEM COMUM me pareceu o melhor filme dos irmãos Coen dos últimos tempos. A cinebiografia bem anticonvencional do músico folk Llewyn Davis se foca muito mais no delineamento de sua personalidade do que propriamente neste ou naquele recorte cronológico. O que temos na tela é um personagem cujo deslocamento pode ser erroneamente confundido com apatia. A melancolia desse homem sem planos futuros, cuja música é um esforço sem lucratividade financeira, se traduz justo nessas baladas tristonhas, reflexos do artista entre a cotidianidade em seu espectro mais ordinário e a necessidade de “ser alguém”.      

Não fosse pela brilhante retórica de Noam Chomsky, um dos mais importantes intelectuais americanos, o documentário NOAM CHOMSKY – REBELDE SEM PAUSA seria apenas rudimentar. As ideias controversas de Chomsky sobre a política externa e interna americana, os recursos escusos da mídia controlada pela publicidade, a disseminação do medo como fator imprescindível para o ocultamento de certos expedientes, são apresentadas da maneira mais precária possível, unindo recortes de palestras e outros eventos com depoimentos breves, e não raro inúteis, de pessoas do círculo profissional e até mesmo da esposa de Chomsky. Mesmo curto (73 minutos) o filme é cansativo, nunca por culpa da figura central, mas da maneira engessada como suas teses são articuladas na tela.


Não há como comparar o ROBOCOP de Padilha com o de Verhoeven. Dito isso, detenhamo-nos apenas na estreia do cineasta brasileiro em Hollywood. O início é até promissor, com aquele apresentador canalha e a ação robótico-militar num país do Oriente Médio. Mas a promessa não se cumpre, pois o que vem a seguir é um simples filme de ação que patina toda vez que almeja algo mais profundo, seja em qualquer viés. Fala-se sobre segurança pública, corrupção policial, política, o conceito de “ser”, entretanto tudo de relance, como que para não atrapalhar a ação. Não sei o que aborrece mais, se o blá blá blá interminável que esmiúça a montagem do Robocop, a maneira asséptica com a qual se desenvolve o drama do personagem, ou as interpretações, todas buscando a canastrice como conceito, mas a encontrando tal efeito colateral.



Simpático este A GAIOLA DOURADA, filme franco-lusitano que aborda dramas familiares numa colônia portuguesa em Paris. A maneira como o diretor Ruben Alves conduz sua trama é bastante simples, sem invenções, servindo muito bem ao propósito de discutir a verdadeira vocação dos personagens, os efeitos de suas escolhas, isso em meio ao dilema do casal protagonista de voltar às origens por conta de uma herança ou seguir a vida (de servidão) na França que os acolheu. Se não é uma comédia rasgada, tampouco pende ao dramalhão, equilibrando-se confortavelmente entre ambos. Um filme leve, daqueles bons de ver entre uma prioridade e outra.  

terça-feira, 11 de março de 2014

Tese Sobre um Homicídio


Mais um belo filme argentino de gênero, esse Tese Sobre um Homicídio, estrelado pelo onipresente Ricardo Darín. Aliás, é por meio da exploração dos diferentes gêneros – e não no descarte deles, como bem fazemos com frequência no Brasil em prol de longas pretensamente “genuínos e nacionais” – que a cinematografia hermana se consolidou a mais plural e relevante da América do Sul. Neste thriller, temos embate intelectual próximo àqueles muitas vezes motrizes dos suspenses de Alfred Hitchcock. Também semelhante ao itinerário criativo do diretor de Festim Diabólico, Hernán Goldfrid procura resolver primeiro a narrativa em termos visuais para depois recorrer às palavras.

Em Tese Sobre um Homicídio, o especialista em direito criminal Roberto Bermudez (Ricardo Darín) leciona no imponente prédio da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires. Sujeito apaixonado pela arte de encontrar respostas – e culpados – nos detalhes, ele se vê confrontado por um jovem estudante regresso da Espanha. Gonzalo (Alberto Ammann), esse aluno, não esconde por trás da aparente diplomacia a astúcia de alguém talhado para ser tudo, menos ordinário. Após crime brutal nas imediações, Roberto passa a suspeitar que Gonzalo seja o assassino e logo intui fazer parte de jogo no qual a inteligência definirá vencedores.

A linguagem privilegia a construção ao mesmo tempo compassada e nervosa do clima. Roberto investiga por conta própria como se fisgado pelo oponente sagaz que faz frente à sua capacidade dedutiva. Já Gonzalo permanece enigma apenas parcialmente desvendado pela imagem projetada muito a partir das percepções de seu “inimigo”. Será ele culpado ou vítima das desconfianças infundadas do mestre enciumado ante sua arrogância? Tese Sobre um Homicídio, então, extrai força da dúvida, do suspense criado sobre certezas instáveis que mudam constantemente o direcionamento de nosso olhar. Se na primeira parte confiamos na culpa de Gonzalo, na segunda relativizamos os julgamentos precipitados e a possibilidade do acaso como tempero antes refutado por Roberto.

O mais interessante, porém, é Tese Sobre um Homicídio utilizar o crime quase como desculpa para o duelo psicológico/racional ora aparentemente real ora semelhante à obsessão cega. Dois homens brilhantes travando batalha velada por supremacia intelectual ou a construção solitária da culpabilidade alheia? Por mais que a verdade esteja ali, na nossa frente, teimamos em desconfiar. Engenhosa maneira de prender a atenção do público, atingindo assim a finalidade maior do suspense. Inevitável comparar Tese Sobre um Homicídio com O Segredo dos Seus Olhos, ainda que tal movimento desfavoreça o primeiro, mais pela amplitude da obra de Juan José Campanella que por suas poucas fraquezas.  O filme de Hernán Goldfrid é inteligente do conceito à execução, excelência pouco vista até mesmo nos berços do gênero ao qual se filia com autoridade. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

sábado, 8 de março de 2014

CINEMA A DOIS | DENYS ARCAND – A Era da Inocência (2007)

Um dos maiores acertos do diretor Denys Arcand foi injetar dose generosa de humor em A Era da Inocência. Ela faz toda diferença em meio a um cenário semelhante ao de O Declínio do Império Americano e de As Invasões Bárbaras. A realidade enfadonha, beirando o insuportável, faz com que o protagonista Jean-Marc fuja para uma atmosfera onírica, engraçadíssima. Se todo sonho é também uma representação do nosso desejo inconsciente, recalcado, podemos imaginar que Denys Arcand sugeriu exatamente essa ideia como cerne de seu filme.

Amarrado a certa asfixia do mundo real, Denys Arcand conduz A Era da Inocência do início ao fim, sem abandonar essa ideia, nos provando de algum modo que não estamos livres da inércia da vida, das mazelas desta e da grande ilusão que construímos para torná-la suportável. O fim da trilogia me parece absolutamente coerente com a proposta de Arcand.
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Que outra coisa a fazer quando a vida se burocratiza ao máximo, senão recorrer à fantasia como refúgio? O protagonista de A Era da Inocência, pai de filhas alienadas, marido de uma esposa workaholic, escravo de um emprego público chato, “transforma” a si mesmo constantemente em alguém extremamente bem sucedido – rodeado de lindas mulheres que o desejam – para aliviar sua existência vazia. Denys Arcand provavelmente nunca foi tão abertamente crítico como nesse filme. Também, quem sabe, nunca se focou tanto num personagem, fazendo brotar de sua experiência íntima um mal-estar comum.

Se as cidades estão tomadas por uma espécie de vírus que as transformam em reinos do inóspito, do automático, por que não retornar ficticiamente à Era onde tudo era mais primário e simples? A Era da Inocência lança luz sobre uma sociedade à beira do colapso, cujo maior efeito colateral é a total desumanização do humano. Nesse cenário, lúcidos são aqueles que buscam maneiras de escapar, de fazer do seu mundo um lugar melhor, nem que para isso seja necessário viver no limiar entre a sanidade e o delírio. Ou, quem sabe, seja necessário renunciar aos vícios do progresso para continuarmos evoluindo enquanto espécie?


Por Ana Carolina Grether e Marcelo Müller

quarta-feira, 5 de março de 2014

TOP5 - Filmes Subestimados

Todos nós temos uma relação de filmes que consideramos injustiçados, seja por público ou crítica. O TOP5 da vez é a seleção de Linara Siqueira, que topou listar cinco longas merecedores de mais reconhecimento. Confira. 
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1 -SHOWGIRLS (Paul Verhoeven, 1995)
Reflete um mundo movido por ganância e interesses, onde quem está disposto a se corromper será quem permanecerá no poder. A personagem principal precisa passar por todo este processo para, no fim, encontrar o que mais procura: ela mesma. O filme deu má fama para a atriz Elizabeth Berkley e pro diretor do filme, Paul Verhoeven. Será que ainda há tempo de reparar o erro?





2 - CONAN, O BÁRBARO (John Milius, 1982)
“Temos apenas de seguir a trilha do herói. E lá onde temíamos encontrar algo abominável, encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar pra longe, iremos ter ao centro da nossa própria existência. E lá onde pensávamos estar sós, estaremos na companhia do mundo todo.” Joseph Campbell





3 - OS INDIGENTES DO BOM DEUS (Jean-Claude Brisseau, 2000)
“Os Indigentes do Bom Deus é uma comédia romântica que é um filme noir, é um panfleto social, é uma comédia pastelão que é um melodrama fantástico que é, finalmente, um conto de fadas, moderno e rebelde, distorcido e imprevisível, mas imensamente generoso. E é essa generosidade que dá ao filme seu impulso, o que o torna tão desejável" (Jean-Michel Frodon). Eis um dos filmes mais lindos que já existiram.






4 - CAMINHO SEM VOLTA (James Gray, 2000)
O protagonista encontra-se numa espiral e não consegue sair dela. O centro é a família e os acontecimentos giram em seu entorno. E mesmo que ele tente se afastar, acaba retornando aos mesmos pontos. Uma obra-prima esquecida.








5 - O GAROTO (Maurice Pialat, 1995)
Se a arte de Maurice Pialat é capturar momentos de espontaneidade, neste filme ele consegue ainda mais: filmando seu próprio filho de 5 anos e seu ator fetiche, Gerard Dépardieu, o diretor realizou a sua obra-prima ao registrar instantes mágicos, que vão além da natureza da própria interpretação.