terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Doses Homeopáticas #59


FILME DEMÊNCIA é a descida ao inferno empreendida pelo homem que se depara com a falência do negócio herdado do pai. Livre adaptação de Fausto, de Goethe, o filme de Carlos Reichenbach acompanha o protagonista em andanças desnorteadas, em contato com todo tipo de representante do submundo, transitando por entornos onde a degradação é latente. O povo professa em prosa e verso as injustiças vigentes enquanto este Fausto moderno atravessa São Paulo mirando um oásis que lhe vem em sonho e cuja imagem o persegue durante toda trama, configurando-se numa espécie de ponto a ser alcançado. Carlão realça a condição terceiro-mundista das pessoas e de suas aspirações, ressaltando a importância do sexo por meio dos corpos nus das mulheres que se insinuam ao protagonista. O fluxo é onírico, instância em que matar pode significar libertação, enquanto morrer não é uma opção a quem já vive no fio da navalha. As deambulações de Fausto por prostíbulos de quinta categoria, bares infestados de fracassados, ruelas decrépitas, bem como a companhia de tipos estranhos, evidenciam a vontade de Reichenbach de mesclar o popular e o erudito, pintando com tintas de subdesenvolvimento a escrita original do alemão.


TERRA EM TRANSE é uma alegoria complexa da política terceiro-mundista, com seus personagens trocando de lugar, torcendo a própria ideologia em busca de votos e poder. O poeta apoia o candidato tecnocrata até que ele se eleja senador, depois transfere sua pena à causa do vereador populista que, então, vira um postulante ao cargo de governador. A intenção é abrandar a situação do povo, a miséria que toma conta das camadas menos abastadas da fictícia Eldorado. As forças econômicas são desmascaradas como manipuladoras da conjuntura social, elas que usam políticos como títeres para alcançar seus objetivos. Um magnata da mídia também escancara sua influência, o poder que comumente se intitula de o quarto, mas que pode assumir um protagonismo disfarçado de isenção, no que tange aos destinos da nação. Glauber Rocha fez um filme instigante, no qual a linearidade temporal é abertamente desrespeitada em prol de uma estrutura narrativa signatária do caos que se pretende deflagrar. Essa realização de Glauber é um convulsionado retrato da política brasileira, sobretudo do conturbado período do início dos anos 1960. Obra-prima.



Não há nada de mais em UM SENHOR ESTAGIÁRIO. Um cara resolve voltar a trabalhar depois dos 70 anos, virando estagiário numa empresa moderna, repleta de jovens. Claro que sua presença vai alterar a rotina, servir de contraponto experiente à imaturidade de muitos ali. O que faz o filme ser muito bom, divertido, é a maneira como Robert De Niro interpreta esse cara boa praça, acolhedor, que observa a todos com carinho, sem julgamentos excessivos. Há também méritos no trabalho de direção de Nancy Meyers, especialista neste tipo de filme que, se por um lado, navega em águas calmas, sacolejadas vez ou outra por ventos que sabemos serem passageiros, por outro, não se acovarda de apresentar as falhas e as dificuldades de seus personagens. Embarcamos, assim, nessa nau comandada por Meyers sabendo o tipo de narrativa que nos espera, algo não necessariamente ruim se estivermos em busca de uma história bem contada, protagonizada por gente carismática. Aqui, o estagiário de De Niro serve como uma espécie de anjo da guarda que ajuda a chefe a ser uma pessoa melhor, além de auxiliar os colegas nas mais diversas tarefas (inclusive amorosas) e encontrar, ele próprio, o amor. Cinema que deixa um sorriso no rosto do espectador ao fim da sessão.

domingo, 27 de dezembro de 2015

Heli


Heli (2013) é o filme pelo qual Amat Escalante ganhou o prêmio de Melhor Direção no Festival de Cannes do ano passado. Já na primeira sequência, a câmera desliza por entre corpos que repousam machucados numa traseira de camionete. Então, nosso olhar é conduzido à estrada e posteriormente ao enforcamento de alguém em plena luz do dia. A mensagem está dada: quem se colocar contra o poder local vigente inevitavelmente se dará mal. Após essa passagem que culmina em morte, encontramos Heli (Armando Espitia) tentando fazer sexo com sua esposa, quando é interrompido por uma funcionária do censo. Desse ponto em diante, a família de Heli, constituída pelo pai, a irmã e o filho recém-nascido, será o núcleo de onde partirão as observações do filme, sejam elas a respeito da natureza das pessoas ou mesmo sobre a violência que predomina em certas localidades mexicanas.

Sem estudo e oportunidades suficientes para subir na vida, a Heli só resta seguir os passos do pai, trabalhando numa montadora automobilística, mesmo porque o lugarejo não oferece muitas opções. Trabalhador braçal, policial ou traficante, são essas as trajetórias mais evidentes. Estela (Andrea Vergara), a irmã do protagonista, namora com um recruta mais velho. Noutra cena em que o sexo não se consuma, ela impede que a mão do pretendente passe acima da linha da coxa, o que o deixa frustrado. A menina tem medo, engravidar assim tão nova está fora de cogitação. Apaixonado, esse rapaz que sofre humilhações cotidianas nos treinamentos militares sai em busca de alternativas para, então, casar com sua amada. Decide roubar drogas sabe-se lá de quem para viabilizar a união. Mas, dinheiro fácil nunca é fácil.

A potência da imagem em Heli é preponderante. De início, a violência crua e inclemente nos situa no território de aridez (inclusive emocional) que abriga os personagens. Logo, porém, o registro visual pende ao idílico, pois a fotografia é cuidadosamente construída numa dimensão poética. O artifício não chega a “embelezar” os acontecimentos, pois à câmera parece importante registrar a miséria a seu modo, sem nunca torna-la espetacular. Estranhamente, num terceiro momento a imagem volta a captar a violência de frente, só que desta vez em seu aspecto ordinário, quase pornográfico. O discurso é esvaziado justo por apoiar-se demasiado em determinados atos de tortura, como se eles, assim vistos, fossem imprescindíveis para dotar de relevância o discurso anterior bem como o do porvir.

Daí em diante, a trama de Heli fica refém de inconstâncias. Personagens tentam refazer-se ainda sob o efeito da tragédia, mas essa fase de luto surge sem o peso suficiente. Tentando retomar a contemplação inicial, a narrativa se prende numa teia de fatos um tanto quanto irrelevantes, ao menos pela maneira como são apresentados. É como se o processo de anestesia do protagonista contaminasse o desenvolvimento que, assim, acontece sem maiores acréscimos. O sexo, ou melhor, a impossibilidade de sua ocorrência, está ali para, quem sabe, sinalizar a não união dos corpos como prenúncio de morte. Heli tem momentos que justificam plenamente a ovação crítica em Cannes, mas, no geral, é vítima do descompasso entre sugerir e esfregar determinadas “realidades” na cara do espectador.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Doses Homeopáticas #58


Em LA SAPIENZA os personagens falam diretamente à câmera, como se o interlocutor fôssemos nós, espectadores. Em crise, matrimonial e profissional, um arquiteto francês parte com a esposa para o interior da Itália, pois planeja efetivar o estudo sobre uma de suas referências. Há uma frieza quase total no relacionamento do casal, eles mal se olham, interagindo burocraticamente. Tudo muda depois de encontrarem dois irmãos, uma menina fragilizada por determinada doença (talvez de fundo somático) e um garoto cheio de energia que sonha em ser também arquiteto. O cineasta Eugène Green faz um filme lento, no qual as imagens permanecem na tela tempo suficiente para delas apreendermos o que na pressa deixamos escapar. Progressivamente os mais jovens mostram aos mais velhos a chama que ainda pode inflamar suas vidas. Fala-se muito a respeito de luz, nos contextos literal e simbólico. Formalmente rigoroso, caudaloso, é o tipo de filme que pode afugentar alguns, enfadar outros tantos, mas que oferece a recompensa devida a quem embarcar na construção cinematográfica de Green, que dá conta de combater a aridez, o embotamento decorrente das tristezas cotidianas, com a beleza intrínseca à criação, aos encontros e às trocas.


Protagonista de LÉOLO, Léo se crê filho de um italiano onanista que contaminou os tomates esmagados por sua mãe após um acidente. Isso lhe veio por meio de um sonho. Preferindo ser chamado de Léolo, esse garoto vive às voltas com a própria imaginação para afastar a loucura hereditária que acomete quase toda a família. Narrando em prosa e verso seu cotidiano de experiências, entre as inerentes a qualquer criança e as bastantes singulares, ele cria um mundo próprio, no qual se refugia da realidade. Fácil se afeiçoar a esse menino que funciona como um dos pilares da casa, o outro é a mãe, sempre tão afetuosa com ele, mesmo em momentos bizarros como a vigília para garantir a evacuação, algo obsessivo para o pai. Aliás, mesmo num ambiente degradado como aquele, o que não falta é afeto, sentimento tornado âncora que mantém todos unidos, até onde possível, contra a patologia que ameaça a sanidade. O tom de fábula ameniza ligeiramente a miséria daquela gente, mas não dá conta de segurar a torrente de tristeza que marca o encerramento desse filme em que a esperança quase vence as probabilidades, quase.



TUDO VAI FICAR BEM é um desastre quase completo. Não fosse a engenhosa cena do acidente, em que o protagonista transita do alívio ao desespero em questão de segundos, o filme seria descartável de todo. Há um privilégio às emoções fáceis, à autocomiseração e à lamúria, opção que não encontra nos atores, e muito menos na direção, algum registro que dê conta de minimizar os danos. A recorrência das várias transições do tipo “tanto anos depois”, expediente que visa marcar a passagem do tempo, expõe a fragilidade do roteiro. No que diz respeito às atuações, não há um destaque sequer, ao menos não positivo. James Franco, que virou caricatura de si mesmo, escancara suas limitações, sempre recorrendo ao franzir do cenho e às caretas para tentar transmitir a angústia de seu personagem. Já a de Charlotte Gainsbourg só chora, desenha e, de vez em quando, solta alguma pílula que denota fé. Fosse obra de um diretor estreante, a precariedade estaria, até certo ponto, ao menos justificada. Mas, não, estamos falando de Win Wenders, um grande cineasta que já nos deu obras-primas, como Paris, Texas, mas que, infelizmente, não vem fazendo jus à própria trajetória. 

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Meninos de Kichute


Ainda que esteja pronto desde 2010, Meninos de Kichute só chega agora, em 2014, às salas de cinema, depois de exibido em alguns festivais. Particularidades da nossa cadeia produtiva que quando não “enforca” o filme nacional na gestação, o faz na distribuição. Na trama ambientada na década de setenta, o menino Beto (Lucas Alexandre) sonha em ser goleiro. Ele mora em Londrina, interior paranaense, com o pai extremamente religioso e contrário ao espírito competitivo do esporte, com a mãe que se submete aos desmandos do marido cuja autoridade parece legitimada tanto pelo machismo histórico quanto pela natureza patriarcal da religião, com a irmã mais velha e o irmão mais novo. A vida que lhe interessa está no campo, lá onde ele saiu da linha e foi para o gol, na posição entendida por muitos como a mais ingrata do futebol.

As rotinas escolares evidenciam um civismo imposto goela abaixo, em grande parte nas aulas de Moral e Cívica. Não esqueçamos, na época retratada o país ainda vivia no cabresto da ditadura militar. A rigidez de professores e funcionários é contraposta pela molecagem dos meninos que estão loucos para jogar futebol e transgredir as regras, inclusive vendo postais e revistas de mulher pelada, o que era considerado pouca vergonha. Há uma boa dose de memória afetiva na tela. Muito legal identificar nesse comportamento “ultrapassado” os costumes de uma realidade completamente analógica. Que menino de então nunca quis ter um Kichute, o famoso tênis da Alpargatas que imitava a chuteira? A tônica era ir para a rua, machucar o joelho nas partidas disputadas em campinhos de terra, fazer traquinagem, tudo menos ficar em casa. A vida estava lá fora.

Uma pena o diretor Luca Amberg desperdiçar esse potencial nostálgico, diluindo-o num simplismo que, aliás, permeia todo filme. O principal entrave ao sonho de Beto é o próprio pai. Interpretado por Werner Schünemann, esse homem evoca os dogmas de sua crença para castrar a aspiração do filho em nome de Deus. O que poderia ser um diálogo interessante, adquire contornos caricaturais, já que a figura paterna é unidimensional e está ali apenas como barreira, sem nuances mais claras. Até mesmo o destino desse pai dentro do filme é uma simplificação quase grosseira, pois choca sem sutilezas o discurso religioso com os atos posteriores que denotam hipocrisia, resvalando assim num evidente senso-comum. A narrativa infelizmente se apoia demais nessa estrutura frágil e monocórdica. 

Meninos de Kichute possui encenação meio desleixada e diálogos que batem pouco naturais na tela. O elenco, por sua vez, parece ora no piloto automático ora à deriva. Contudo, dificilmente o filme aborrecerá o espectador, desde que ele entenda limitações e abrace possibilidades. É um cinema intermediário, nem tão popularesco e muito menos voltado aos guetos da intelectualidade. Mas nem só de boas intenções vive o cinema, já que dele se espera um pouco de risco, que fuja vez ou outra da área confortável lá de onde as ressonâncias vêm enfraquecidas. Meninos de Kichute tem bons momentos, sobretudo as divertidas partidas de futebol, mas no geral fica a impressão de que a mistura de esporte, infância, anos de chumbo e família poderia render bem mais do que um filme simpático do qual, imagino, pouco lembraremos mais adiante. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Doses Homeopáticas #57

O CHICOTE E O CORPO, do diretor Mário Bava, começa com um “fantasma” cavalgando na beira da praia em direção à velha casa onde não é bem-vindo. Christopher Lee interpreta esse homem odiado por empregados e pela própria família, que chega ao castelo iluminado apenas pela luz das velas e da lua para trazer desgraça. O clima de terror é constante, com o chiaroscuro e a cenografia sendo em grande parte responsáveis por isso. Bava ambienta a contenda familiar num cenário macabro, marcado por sombras, no qual a luz pena para conseguir trazer algum tipo de alento ao que parece realmente fadado a virar tragédia. A cena em que Kurt chicoteia o antigo amor, expondo assim seu sadismo em conexão com o masoquismo dela, é apenas a perversão mais evidente das que surgem nas relações entre os personagens. Literalmente transformado mais tarde em fantasma, o filho regresso assombra a mulher que não consegue esquecê-lo, deixando um rastro de morte sempre que sai da catacumba para seduzi-la. O olhar compenetrado de Lee personifica o perigo, a danação que abate o clã, parte de uma sina escrita na história com sangue e lágrimas neste clássico italiano.


Baseado num conto de Edgar Allan Poe, A ORGIA DA MORTE é dirigido por Roger Corman, fã confesso do escritor norte-americano. A morte se veste de vermelho, ceifando vidas por meio da peste num vilarejo. Alheio a isso, o príncipe interpretado por Vincent Price incentiva nos limites de seus muros toda sorte de atrocidades promovidas pela aristocracia, protegido por um pacto com o diabo. Os três aldeões levados à corte servem de brinquedo aos nobres, sobretudo a esse monarca que pensa estar acima do bem e do mal. Enquanto os moradores da vila sucumbem diante da doença que avança, não encontrando clemência nos portões do castelo, os convidados do baile de máscaras se regozijam até mesmo quando um dos seus é incendiado. Em meio a uma trama de terror, Corman preserva a crítica social, não apenas por denunciar a opulência dos ricos opressores, mas também por mostra-los como vítimas do próprio ridículo. Abastados digladiam-se no salão quando o anfitrião lhes joga pedras preciosas, demonstrando ganância desmedida.  Os cenários suntuosos e as cores saturadas marcam o visual do filme. Terror sofisticado, um grande exemplar do rei dos filmes “B”.


Boris Karloff vive um profanador de sepulturas em O TÚMULO VAZIO, homem sem escrúpulos que chantageia a aterroriza o médico para o qual presta serviços. O doutor precisa de corpos para as aulas de anatomia. O taciturno cocheiro necessita de dinheiro. Um jovem aprendiz não quer fazer parte desse jogo sujo, mas cede diante da chance de curar a paralisia de uma menininha impossibilitada de correr e brincar como as outras crianças. O diretor Robert Wise investe na persona forte de Karloff, na interpretação de um ator que parece talhado para incitar medo. A ética é posta à prova durante a trama, afinal de contas, os médicos roubam cadáveres para aprofundar conhecimentos a respeito do corpo humano, algo que, em tese, servirá mais adiante para salvar vidas. Mesmo que haja certa nobreza por trás desse ato de tornar vazias as sepulturas, é algo contrário à lei vigente. Complexidades morais à parte, o filme possui figuras muito bem delimitadas, de quem podemos esperar este ou aquele comportamento. A força da narrativa se encontra no choque entre os anseios e as determinações das pessoas, bem como no visual macabro e na presença marcante de Boris Karloff, cujo personagem transpira ameaça. 

domingo, 13 de dezembro de 2015

A Pele de Vênus


A estrutura formal de A Pele de Vênus (2013), mais recente realização de Roman Polanski, dialoga evidentemente com a linguagem teatral, ainda que a expressão pejorativa “teatro filmado” não lhe seja justa - assim como, a meu ver, não se ajustava, mesmo que por motivos distintos, a Deus da Carnificina (2011), filme anterior do cineasta. O fato de quase toda ação se passar num palco italiano e seus arredores, não basta para que o cinema se submeta ao teatro. Aliás, o imperativo dos signos estritamente cinematográficos, tais como a montagem, por exemplo, em consonância com a encenação algo teatral, promove uma simbiose com ares de reverência mútua entre teatro, arte milenar, e cinema, arte secular. 

Thomas (Mathieu Amalric) é o adaptador do livro A Vênus das Peles, de Leopold von Sacher-Masoch, que tentará sua primeira incursão enquanto diretor. Desgastado por um dia de testes inúteis com atrizes incapazes de entender os personagens (sinal dos tempos, se repete ao longo do filme) ele está para partir quando interrompido pela atrasada Vanda (Emmanuelle Seigner), aspirante ao papel principal que chega reclamando de má sorte, desfilando vulgaridades e certo desdém pelo texto, ao passo que tenta convencer seu interlocutor a ficar e estender uma noite que parecia até então fadada ao encerramento num encontro protocolar com a noiva. Para Thomas a conversa inicial não é promissora, contudo ele acaba cedendo, mais à insistência destrambelhada de Vanda do que a qualquer esperança de encontrar nela sua musa.

A interpretação surpreendente da estranha e o crescente envolvimento de Thomas com o papel masculino faz emergir o que parece o eixo temático de A Pele de Vênus: relações de poder. Da autoridade do diretor logo relativizada à discussão sobre a histórica sujeição feminina, tudo gira em torno da ideia de que os relacionamentos, também os amorosos, são entremeados por complexas disputas por poder. Thomas é enredado pela misteriosa Vanda, de quem nada sabemos além das poucas informações fornecidas após conversas telefônicas de duvidosa existência. E esse jogo da mulher que utiliza o corpo e a voluptuosidade, mas, sobretudo, a inteligência para mostrar a fraqueza do bicho homem, acaba por embaralhar ficção e realidade.

Não estaria Polanski com A Pele de Vênus expondo um conceito de viés filosófico, segundo o qual, no final das contas, tudo é encenação? Conforme postulado na origem do teatro grego, se podemos ser interpretados por alguém, não seríamos nós mesmos essencialmente personagens? Thomas e Vanda são tipos que se atraem e se repulsam, quase na mesma medida. Polanski também promove uma aproximação seguida de distanciamento entre o tempo passado do romance (escrito em 1870) e a contemporaneidade do filme, apontando certas características e impulsos humanos imunes ao transcorrer dos relógios enquanto sinaliza determinantes demandas próprias da era atual. Ali, no palco teatral apropriado pelo cinema, Roman Polanski discute a complexidade das relações e do desejo, fazendo assim outro grande filme.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Doses Homeopáticas #56 - Especial Star Wars


UMA NOVA ESPERANÇA, primeiro filme da saga Star Wars, ainda que seja seu quarto capítulo, cronologicamente falando, estabelece todo um mundo novo (ou vários), valendo-se de personagens carismáticos e situações referentes a um passado que veríamos efetivamente na tela apenas nos anos 2000. Muito embora enquanto aventura seja desenvolvida a contento e possua uma mitologia bem construída, a realização de George Lucas peca pela fragilidade do roteiro que restringe as possibilidades de um maior envolvimento do espectador com o filme. Assim que conhece Luke Skywalker, Obi-Wan denuncia ser um Jedi exilado, e também conta boa parte do passado do garoto, inclusive que seu pai também era um guerreiro usuário da Força. Essa exposição acelerada de acontecimentos é uma constante durante todo o longa, algo que incomoda, claro, caso o espectador esteja em busca de algo a mais – sobretudo no que diz respeito à relação dos personagens, entre si e com a situação política que a galáxia vive – além de mocinhos contra vilões em batalhas que cortam a tela com lasers e outros artefatos bélicos futuristas. Mesmo Darth Vader não aparece em todo seu esplendor vilanesco nesta obra superestimada, que iniciou um verdadeiro culto persistente até hoje.


O IMPÉRIO CONTRA ATACA é o filme responsável por consolidar Darth Vader como um dos vilões mais marcantes do cinema. Ele começa caçando os gêmeos Skywalker no planeta gelado em que eles montaram uma base de resistência. Não é apenas supremacia política que está em jogo, mas a milenar luta entre os Sith e os Jedi, já que o Imperador Palpatine teme as habilidades de Luke, preferindo achar meios para aproximá-lo do lado negro da Força. Um dos grandes méritos do longa-metragem é balancear muito bem as várias dimensões dessa disputa, com isso não relegando os coadjuvantes à mera função de escora dos personagens principais, aliás, pelo contrário. Han Solo, por exemplo, ganha vários instantes de protagonismo. Muitos eventos essenciais à série acontecem neste filme. Luke encontra Yoda e passa a ter treinamento Jedi. Solo é congelado em carbonite. Luke enfrenta Vader numa luta de vida e morte, na qual o Sith revela ser o pai do futuro Jedi. O diretor Irvin Kershner dá ares mais trágicos à série, consolidando a mitologia Star Wars, superando de longe seu antecessor.


O RETORNO DE JEDI encerra com a mesma competência do episódio anterior a trilogia clássica de Star Wars. O roteiro dá conta de tornar ainda mais dramática, e definitiva, a luta entre Luke e Darth Vader. Enquanto isso, são cada vez mais valorizados os personagens que quase não podem ser chamados de secundários, dada sua importância. Os rebeldes precisam destruir a segunda Estrela da Morte, mas, claro, não será uma missão fácil, primeiro, porque o Imperador em pessoa está cuidando da mesma, e segundo, pois Vader intui que seu filho está diretamente envolvido na ação e, portanto, também se cerca de cuidados. Luke aparece já praticamente como um Jedi, exibindo certa sapiência que o faz, inclusive, não se deixar seduzir pelo lado negro da Força. Pai e filho brigam para ficar próximos, seja em qual lado for. No fim das contas, o bem prevalece, com direito a um breve momento em que Anakin, renegando a máscara e expondo sua humanidade decrépita, ressurge para sepultar de vez (será?) o grande vilão. O clima de final feliz toma conta da saga, com direito a festa no planeta dos Ewok, criaturas de grande valia para a vitória que possibilitou a restauração da República (até quando?).

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Era Uma Vez na Anatólia


Tudo parte da busca de um corpo. O crime está praticamente resolvido, pois os assassinos são confessos, só faltando mesmo a prova material. Três carros trafegam durante a madrugada pela paisagem de Anatólia, na Turquia, iluminando os campos com seus faróis à procura da vítima inerte. O principal dos culpados, o que parece ter efetivado a barbárie, tomba de sono enquanto a câmera do diretor Nuri Bilge Ceylan avança lenta em meio à conversa dos policiais sobre trivialidades. Tudo é trivial, até mesmo a morte. Era Uma Vez na Anatólia (2011) se desenrola na primeira de suas duas partes como uma espécie de conto de fadas, no qual a “moral da história” não reside no aparente foco principal, ou seja, na necessidade de encontrar um corpo morto, mas no que se constrói durante a interação entre os agentes dessa busca.

Um dos primeiros pontos a se destacar no filme de Ceylan é a alta capacidade expressiva de sua imagem, esta geralmente construída no limite entre luz e escuridão. Esse contraste dá um tom ligeiramente onírico à tensão que cresce de parada em parada. Os criminosos não lembram exatamente onde desovaram o corpo, portanto o mistério e a não-resolução ameaçam triunfar. Por sua vez, o policial encarregado do caso mostra insatisfação por não conseguir cumprir a missão que lhe foi confiada pelo promotor também presente. Como já dito, nada parece acontecer de fato dentro dessa sucessão de procuras em vão, a não ser o que surge na coadjuvância falsa das conversas paralelas. De toda maneira, ainda que conheçamos gradativamente melhor as figuras, até então apenas peças da ação principal e coletiva, não me parece que seja a elas que devamos atentar, mas às suas heranças.

Assim, exumar as terras não é simplesmente ir ao encontro de um dado material que resolveria o crime, mas sim desenterrar metaforicamente os elementos formadores de um povo, de uma nação ainda bastante alicerçada na tradição. O vir do dia não diminui essa sensação, apenas concede à palavra o que antes vinha com mais força da imagem. O médico e o promotor, em tese os mais letrados desde o início, debaterão veladamente questões que envolvem ceticismo e crença, a abertura ou não ao desconhecido, e a necessidade de conhecer ou não verdade. Isso se dá em colóquios de aparente banalidade, mas que não disfarçam seu caráter de conversa existencial. Para muitos, Era Uma Vez na Anatólia pode soar pesado, tanto pela duração (150 minutos) quanto pela negação veemente do espetáculo.

Se no começo da carreira, Ceylan mostrava clara influência do cinema de Robert Bresson (vide A Pequena Cidade, seu primeiro longa-metragem, de 1997), com o passar dos anos ele depurou um estilo próprio, bastante calcado na plasticidade e na interação do homem com uma natureza não raro hostil (exemplo: as nuvens carregadas que muitas vezes simbolizam interiores conturbados). Em Era uma Vez na Anatólia, ele vincula muito bem imagem e som para reverberar formalmente as demandas dos personagens na influência ainda bastante presente da ancestralidade turca. O ritmo caudaloso às vezes soa mesmo excessivo, como se a alguns dos chamados “tempos mortos” fossem dados mais minutos do que o devido. Não é um tipo de cinema de fácil empatia, ou necessariamente divertido, mas altamente compensador para quem estiver disposto a contrariar, vez ou outra, a própria fadiga.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Doses Homeopáticas #55



Como li por aí, QUE HORAS ELA VOLTA? corre o risco de ser eclipsado pela atuação de Regina Casé. Mas, para além desse trabalho excepcional de interpretação, fica a visão madura e muito bem construída das tensões sociais ainda muito vivas no Brasil. Lugares pré-determinados, ambientes exclusivos, artigos de consumo restrito, são muitos os detalhes que evidenciam os abismos responsáveis por separar classes. Da perplexidade da patroa com a “petulância” da filha da empregada que deseja cursar arquitetura numa concorrida faculdade pública à própria reação da personagem de Casé à maneira desavergonhada com que Jéssica reivindica espaços, tudo está a serviço de uma visão bastante ampla, não restrita aos estereótipos e arquétipos, flertando com tais expedientes apenas como forma de sustentar papeis que deles realmente se alimentam. A cena da piscina é emocionalmente forte, possui simbologia política diretamente ligada às conquistas das classes C e D nos últimos anos. A vitória que quebra a hereditariedade da miséria propicia a ocupação de lugares até então restritos por uma lei não escrita, proporcionando esperança de liberdade e crescimento, onde antes havia apenas servilismo. Um ótimo filme.


CORRENTE DO MAL vem sendo celebrado como exemplo de vida inteligente no cinema contemporâneo de horror, não sem razão. O clima de tensão é constante nessa trama centrada na garota que recebe uma maldição após transar. Por mais que corra, se afaste, seja onde estiver, ela é perseguida por uma entidade macabra que assume formas diversas. Para livrar-se, precisa fazer sexo e passar adiante a praga. A câmera se incumbe de boa parte do clima de opressão, com personagens desavisados enquanto ao longe vemos a aproximação do perigo, por exemplo. O diretor David Robert Mitchell constrói habilmente uma atmosfera carregada de apreensão, impregnada da sensação de morte iminente. Não há muito tempo para a protagonista problematizar seu dilema – passar ou não adiante a força maligna – já que cada instante de reflexão mais demorada pode significar a aproximação do perseguidor e de suas intenções assassinas. Não há explicações de origem, pois o que importa são as consequências. Pode não ser uma obra-prima, mas não faz feio diante de bons exemplares do gênero, sobretudo alguns dos anos 1980. 


LOVE, mais recente filme de Gaspar Noé, chama a atenção, à primeira vista, pelo despudor, pela maneira explícita com que mostra o sexo, a carnalidade do amor. Masturbações, felações, penetrações e o gozo, tudo irrompe na tela menos pelo potencial do choque e mais para materializar o amor e a posterior dor da perda. O corte deflagra a ausência, ausência do corpo de Electra, da mulher que se foi deixando Murphy numa vida burocrática. Sem reverência alguma à cronologia, Noé constrói aos poucos, aos solavancos, a história de um sentimento que parou de tanto pulsar. Há um desequilíbrio entre a primeira e a segunda parte, pois com o passar do tempo percebemos reiterações indesejadas. Contudo, ainda que não seja isento de percalços, o filme de Noé dá conta de exteriorizar uma dor que parece particular demais para ser cinematográfica, no sentido espetacular que o termo às vezes carrega. Frustração, tempo perdido, tudo está ali, entre uma transa e outra, na busca pelo equilíbrio entre as forças que emanam das relações. Cinema sensorial, que excita e nos permite criar empatia com os personagens que vagam buscando momentos de felicidade.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Doses Homeopáticas #54 - Especial Star Wars


Em A AMEAÇA FANTASMA temos uma série de ingredientes que deixam, em princípio, qualquer fã de Star Wars salivando. Primeiro, é o início de tudo. Vemos o jovem Obi-Wan Kenobi, e, principalmente, o pequeno Anakin Skywalker sendo descoberto nos desertos de Tatooine. As maquinações do Lorde Sith também estão ali, bem como seu aprendiz estiloso com um sabre de luz duplo.  Mas por que o filme não funciona? Simples, o fiapo de história é contado sem qualquer senso de emoção. George Lucas mostra toda sua limitação enquanto diretor, desperdiçando cena após cena o potencial dramático. A corrida de pods, que poderia ser o pico de adrenalina do filme, é um vai e vem aborrecido. A única sequência que se salva é a luta dos Jedis com o Sith. Jar Jar Binks foi concebido como alívio cômico, mas consegue no máximo enervar o espectador com sua voz esganiçada e uma patetice que nem engraçada consegue ser. O amontoado de equívocos só não é mais prejudicial porque Lucas trabalha com base numa mitologia mais que estabelecida no imaginário dos cinéfilos, recorrendo a personagens e situações muito melhor explorados em longas anteriores que, cronologicamente, são posteriores a ele. 


As coisas melhoram bastante em O ATAQUE DOS CLONES. Quer dizer, ainda há momentos descartáveis, como Anakin e Amidala rolando pela grama num clima de paixão, mas, em contrapartida, as intrigas políticas ganham corpo, assim como a participação dos Jedis nos rumos que a galáxia irá tomar. O futuro Darth Vader dá seus primeiros passos em direção ao lado negro da força, permitindo-se amar e odiar na mesma medida, exibindo a arrogância do predestinado que já se acha à altura do Mestre Yoda. Falando em Yoda, em meio a uma batalha realmente empolgante, repleta de sabres de luz cortando a ar e os dróides, finalmente o vemos em ação, numa disputa com o Conde Dookan interpretado por Christopher Lee. É um dos pontos altos da nova trilogia. Já a conspiração envolvendo a criação de um exército de clones explica os Stormtroopers que mais adiante servirão lealmente a Vader. Em suma, a despeito de alguns problemas, já não temos mais Jar Jar Binks irritando o público – agora ele está bem mais discreto e contido -, e a política surge com relevância, assim como os dramas que propiciarão os eventos de trágicas proporções que vimos na trilogia clássica.


É em A VINGANÇA DOS SITH que temos um dos episódios mais importantes de toda saga Star Wars: o surgimento de Darth Vader. O que até então parecia apenas uma disputa político-comercial assume definitivamente contornos de golpe de estado. Palpatine, ou melhor, Darth Sidious, atrai o jovem Anakin para o lado negro da força, prometendo a ele poderes de controlar vida e morte. George Lucas concentra na derrocada de Anakin, circundada pelo e estritamente ligada com o extermínio dos Jedis, o núcleo dramático do filme. A ação é bem filmada, não há muitos momentos de respiro, o que denota um mundo convulsionado pela iminente erupção de um poder grande demais para ser controlado. Lucas trabalha o paralelo em duas instâncias capitais. Enquanto Anakin e Kenobi duelam em meio ao fogo do planeta inóspito, Palpatine e Yoda travam uma batalha de mestres. Mais tarde, enquanto Amidala dá a luz aos gêmeos Luke e Lea Skywalker, seu marido "morre" para dar lugar a um dos vilões mais icônicos do cinema. Da nova trilogia, este é o filme mais maduro, talvez por ser também o mais trágico e representativo dentro do universo criado por Lucas nos hoje já longínquos anos 1970.

sábado, 14 de novembro de 2015

Valentin


Valentin (Rodrigo Noya) é um menino argentino de nove anos que sonha em ser astronauta, isso na Buenos Aires dos anos 1960. Ele mora com a avó (Carmen Maura), já que o pai está sempre tomado pelo trabalho e a mãe não é vista desde a separação traumática dos dois. Em seu quarto, Valentin brinca de ser um desbravador do espaço, talvez almejando algo que o leve para longe da Terra chata e sem graça, na qual nem mesmo suas contagens frequentes até 1000 servem para prenunciar o tão aguardado retorno da mãe. A avó, rígida e terna, faz o que pode para educar o menino, sua única companhia após a morte do marido. De quando em quando o pai visita ambos ou o tio traz notícias de longe, passagens breves que enquanto duram são só alegria, mas que quando acabam deixam um rastro de abandono pela casa antiga.

O protagonista de Valentin (2003), filme dirigido por Alejandro Agresti, é uma faísca de esperança em meio a tantos adultos problemáticos, se contrapõe ao peso excessivo das rotinas de gente grande justamente porque à sua infância ainda é permitido ter esperança ou mesmo sonhar alto sem parecer alienado da realidade. De juventude contemporânea à morte de Che Guevara, ocasião histórica lembrada com pesar lá pelas tantas durante o sermão do padre, Valentin procura amenizar seus próprios problemas, sendo os principais deles a falta de uma referência masculina e a necessidade de carinho materno. Ele se coloca basicamente num meio termo entre as coisas boas esquecidas e as ruins excessivamente lembradas pelos adultos que o cercam. Enquanto criança, não entende os porquês de tanta discórdia, de tanta complicação, já que a pouca idade ainda lhe poupa dos calos que só vêm com o tempo.

Não parece aleatória a escolha de Alejandro Agresti pela ambiência nos difíceis anos 1960, período da contenção das revoluções, dos movimentos ditatoriais sul-americanos que abafaram a democracia, enfim, de anos de chumbo que só poderiam ser encarados com um pouco menos do que desespero por aliados, alheios ou crianças. Mas Valentin passa à margem daqueles filmes que essencialmente trazem o período nefasto filtrado por olhos infantis, uma vez que a questão política não é necessariamente condutora, se propondo mais a uma espécie de moldura quase translúcida e discreta. O que importa à trama é a vida corajosa que Valentin leva, sua simpatia e ânimo para vencer os infortúnios que batem prematuramente à porta. Além da inteligência precoce, Valentin demonstra com seus atos que um pouco de afeto talvez seja o antídoto necessário para combater os males diários, sejam eles quais forem.

Esse garoto que em princípio reproduz inocentemente o preconceito da família contra os judeus, com a mesma naturalidade com a qual abandona a discriminação ao entende-la cruel – ou seja, passando da reprodução de uma herança familiar às próprias ideias –, se esforça em seu cotidiano para juntar aqueles que vagam sozinhos, seja ajudando o pai com a nova namorada – que ele quer por nova mãe – ou mesmo cultivando amizade sincera com o amigo pianista que após conhecê-lo diminuiu o álcool, até então seu único companheiro. O sonho do garoto de subir além do céu, a fim de tocar as estrelas, encobre um real desejo que nada tem de extraordinário. Valentin só quer ser como os outros e ter uma família para chamar de sua. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Doses Homeopáticas #53


Em MISS JULIE é lacerante a tirania do desejo, mais especificamente da impossibilidade do gozo sem culpa, em virtude dos grilhões das convenções sociais. Tudo principia num jogo de submissão, em que o cavalariço resiste até onde é possível ao assédio da filha do Barão, sua patroa, no mais das vezes semelhante a uma menina mimada. O empregado é feito um animal encurralado pela dona sádica. A terceira personagem deste filme de Liv Ullman é a cozinheira que testemunha tudo, não sem seu próprio investimento emocional. A consumação muda as coisas, bagunça as máscaras que aqueles pessoas usam, precipitando um torvelinho de agressões motivadas por poderes alheios ao controle dos que digladiam. Embora se passe quase num único cenário, o filme não se presta ao pejorativamente chamado “teatro filmado”. Há muito cinema na câmera que ora desliza contemplando, ora muda bruscamente de face a face, só para citar o aspecto da imagem. Colin Farrell, Jessica Chastain e Samantha Morton, que trio em cena. Dona de um olhar muito particular às vicissitudes do humano, Liv Ullman busca apoio em Strindberg para fazer um ótimo filme.


DRÁCULA DE BRAM STOKER é um conto de amor trágico centrado no senhor dos vampiros. A cena em que o príncipe regresso da guerra renega Deus após deparar-se com sua amada morta é primorosa. A armadura em forma de músculos tem duplo significado, pois, ao passo em que aterroriza pelo visual é uma metáfora à exposição do personagem de Gary Oldman às brutalidades do mundo. Simbolicamente sem pele, depois literalmente sem alma, ele vaga séculos até encontrar novamente sua amada. A sensualidade anda de mãos dadas com o perigo, a sedução é a arma do demônio para angariar soldados ao seu exército. A imagem barroca, a trilha sonora, a progressão dos personagens por cenários claramente construídos em estúdio, tudo remete à abordagem clássica dos contos de terror pelo cinema. O drama maior é o do próprio Conde Drácula, um homem que devota vida e morte ao amor que perdeu para as traquinagens do desconhecido. A criatura repugnante se transmuta em nobre para reaver sua paixão, para reconciliar-se consigo mesmo. Os outros personagens são meras peças, agentes que ajudam a história a progredir até o desfecho doloroso. Antes de ser um demônio, Drácula é vítima da desgraça nessa obra-prima de Francis Ford Coppola.


Calvero é um palhaço arruinado pela passagem do tempo. Embriagado, ele salva uma jovem bailarina que tenta se suicidar. Por conta desse encontro inusitado, motivada pelas palavras do homem mais velho por quem se apaixona, ela se recupera e começa uma carreira ascendente. Já ele remói as próprias feridas, bebe cada vez mais para esquecer o fracasso. LUZES DA RIBALTA fala sobre o crepúsculo do artista, aquele instante em que ele passa a não mais interessar como antes. Dar passagem aos mais novos pode ser um esforço hercúleo, bem maior que um simples gesto altruísta. Chaplin homenageia os que viveram no palco, nas telas, mas que sucumbem inevitavelmente ante a velocidade com que o público cobra coisas novas. O relacionamento de seu personagem com a menina devotada e agradecida é o ingrediente romântico dessa tragédia inevitável. Ele sabe que não há como fazê-la plenamente feliz, por isso, como muitas vezes o vagabundo de chapéu-coco fez, renuncia ao amor em prol do futuro alheio. A lamentar apenas o pouco tempo em que Carlitos e Buster Keaton contracenam e alguns esquetes que se estendem ligeiramente. No mais, um grande filme. 

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Chinatown


J.J Gittes (Jack Nicholson) é ex-policial, agora um detetive particular que ganha a vida investigando casos matrimoniais. Uma mulher aparentemente distinta bate à sua porta, suspeitando-se traída pelo marido, um figurão da administração de Los Angeles. Trabalho bem pago, trabalho aceito. Não se sabe como, mas os resultados vão parar nas primeiras páginas dos jornais, detonando assim uma crise política que parece servir a interesses escusos. Gittes, cuja visão das coisas foi moldada pelos tempos de patrulha às ruelas de Chinatown, a famigerada região na qual a lei e a ordem muitas vezes se confundem, decide ir a fundo, primeiro para saber quem lhe usou como bode-expiatório e depois para entender a cidade que sofre pela falta de água que é ilegalmente desperdiçada na calada da noite. Assim inicia Chinatown (1974), neo-noir dirigido por Roman Polanski.

A enigmática Evelyn Cross Mulwray (Faye Dunaway), verdadeira esposa do chefe do departamento de águas que Gittes investigou, logo aparece como elemento desestabilizador. Gittes é ligeiramente distinto dos detetives noir clássicos, não se deixa levar totalmente pela presença dessa mulher fatal que turva ainda mais seu caminho. Ao passo que descobre algumas ligações estranhas entre determinadas figuras, conexões estas que deveriam permanecer desconhecidas para o bem de uma minoria influente, o personagem de Nicholson se vê seriamente ameaçado de morte. Numa de suas rondas noturnas, ele se depara com o agressor que lhe corta o nariz, talho feio, protegido depois pelo curativo que se torna quase uma característica física a nos lembrar da constância do perigo. O agressor em questão, denominado na ficha técnica apenas como “o homem da faca” é interpretado pelo próprio Polanski.  

O ritmo de Chinatown é ditado pelas sucessivas descobertas de Gittes, pela sujeira que pouco a pouco emerge das relações, das maquinações expostas, das vilanias ora em xeque ora confirmadas pelos comportamentos condenáveis (para dizer o mínimo) de determinados personagens. Los Angeles, a cidade que na época retratada já era o berço do cinema americano, é vista como uma localidade que, a despeito de seu tamanho e importância, segue administrada tal e qual um pequeno feudo lucrativo para meia dúzia de canalhas. Contudo, a lente de Polanski parece interessada na corrupção administrativa apenas como efeito da corrupção moral generalizada. Sendo assim, não haveriam políticos desonestos se a desonestidade fosse ignorada pelo humano que precede o cargo. Gittes, por sua vez, não é nenhum santo, mas o movimento de tentar atravessar o lamaçal que se adensa, faz dele um alvo a ser abatido.

Num elenco que conta com a participação especial do cineasta John Huston, na pele do pai da personagem de Dunaway (ela, precisa entre a frieza e a passionalidade), é mesmo Nicholson quem toma conta. Sobre o filme como um todo, de nada adiantaria a riqueza da produção, a precisa reconstrução de época, entre outros elementos de cunho mais técnico, não fosse a sordidez amplificada cinematograficamente por Polanski a partir do grande roteiro que criou junto com Robert Towne. Chinatown possui rara agudeza e perspicácia, muito por se valer exemplarmente de um período histórico específico, de personalidades conflituosas e sintomáticas do estado das coisas, para colocar em relevo questões de interesse atemporal. A frase “Esqueça, Jake, isto aqui é Chinatown" não se aplica tão e somente ao local notório como “terra de ninguém”, mas à sua representação da podridão que nos assola, independentemente de onde estejamos, seja na superfície ou no submundo.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

domingo, 1 de novembro de 2015

Doses Homeopáticas #52

O lirismo é o atributo principal da linguagem de O ÚLTIMO POEMA DO RINOCERONTE. A triste história do casal separado por anos, em virtude de uma vingança, tendo como pano de fundo a revolução islâmica, é contada com um pé na realidade e o outro no simbolismo. O homem sai quase catatônico da cadeia depois de trinta anos encarcerado. Assim como ele, os demais personagens são reduzidos ao mínimo de expressão, o que incomoda de certo ponto em diante. Tudo é enfraquecido por esse tom monocórdico, quebrado vez ou outra pela inserção de algum elemento que faz emergir a dor de maneira poética. As coisas vão se acontecendo sem muito a acrescentar ao prólogo. A fraqueza diante da impossibilidade de apagar a angústia da memória, assim como a constatação da perenidade das feridas que não deixarão de sangrar, são instâncias basilares à trama. Contudo, uma sensação de vazio permeia boa parte do que acontece no filme, não necessariamente a do tipo existencial, embora as pessoas nele se comportem como autômatos, mas relativa à falta de expedientes menos edulcorados. A pretensa poesia, contrário ao intento, acaba embotando as coisas, reduzindo os danos da realidade em prol da evocação de uma beleza paradoxal.   


O QUARTETO FANTÁSTICO deixa a desejar em alguns momentos, sem dúvida. Contudo, está longe de ser ruim como andam dizendo por aí. Vou além, é muito interessante. O garoto determinado desde cedo a ser cientista, o amigo fiel que assume o sonho alheio como seu, a menina pragmática escondida atrás dos padrões, o rebelde que contesta o pai para obter atenção, são todos personagens bem construídos, uns mais outros menos, é verdade, mas, ainda assim, com um nível de maturidade estranho aos filmes de heróis. Até eles se confrontarem com o Doutor Destino, temos um drama com ares de ficção científica, uma narrativa consistente que, embora faça concessões, carrega a singular visão do diretor. Isso claramente é descartado quando a ação toma conta, quando evocado um heroísmo mais óbvio. A partir daí as coisas se tornam um tanto quanto banais e os conflitos se resolvem facilmente. Esses dois momentos distintos podem ser explicados pelas divergências de produção que vieram a público, ou talvez nem tanto. Fato é que, mesmo derrapando no fim, a realização de Josh Trank merece bem mais reconhecimento do que vem tendo, pois não é mau cinema, muito pelo contrário.



A primeira cena do novo MISSÃO IMPOSSÍVEL dá uma ideia do que teremos pela frente. O espetacular e o improvável costuram o filme de Christopher McQuarrie, sobretudo no que diz respeito às cenas de ação. Tiroteios, perseguições, explosões, enfim, tudo aquilo que acontece quando Ethan Hunt passa por um lugar está aqui. De James Bond ele herdou a necessidade das constantes viagens e a companhia de mulheres tão fatais quanto belas. Não só os combates chamam a atenção neste quinto capítulo, mas também o roteiro, as intrigas geopolíticas muito bem urdidas numa trama que coloca a IMF em apuros duplos, pois caçada por uma organização secreta e oficialmente extinta pelo governo norte-americano. É dado o devido valor ao trabalho em conjunto, à importância de cada colega para que tudo corra bem no fim das contas. Tom Cruise, famoso por dispensar dublês e fazer ele próprio as cenas perigosas, parece ter encontrado um time (de atores e produtores, já que os diretores se sucedem) que pode levar Ethan Hunt adiante, mantendo viva sua franquia, espera-se, com filmes tão bons quanto este. 

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Expresso do Amanhã



Expresso do Amanhã (2013), primeiro filme em inglês do diretor sul-coreano Bong Joon-ho, baseado na HQ francesa Le Transperceneige, parte da ficcional e malograda tentativa de conter o aquecimento global através de uma substância que acaba por congelar nossa atmosfera, excluindo dessa maneira a possibilidade de sobrevivência fora do trem que cruza ininterruptamente o planeta agora submerso em neve e morte. Essa arca moderna contém o que sobrou do mundo, o miniaturizando no que ele tem de melhor e de pior. Castas desempenham papeis bastante específicos ao equilíbrio “necessário” do todo. Ricos vivem na parte da frente, com suas mesas repletas de iguarias, enquanto os miseráveis definham nos compartimentos de trás, alimentando-se de barras de proteínas feitas sabe-se lá de quê.

A insurgência é questão de tempo e ela explode sob a liderança de Curtis (Chris Evans), alguém que já testemunhou toda espécie de barbárie. Ele e seus amigos estão cansados de sobreviver, de comer a mesma porcaria de sempre, de sujeitar-se às ordens dos guardas que promovem contagens diárias, enfim, estão fartos de sub-existir. Então, arquitetam um plano que visa tomar vagão por vagão com destino à extremidade dianteira, onde se encontra aquele que tudo controla, o empresário que anteviu a desgraça e fez de seu veículo ferroviário um microcosmo cruel e revelador da sociedade de antes. O trem, sempre em movimento, talvez para que a inevitabilidade da morte por inércia seja amenizada, guarda os anseios da maioria de alteração do status quo.

A luta de classes, assim, é transferida das ruas para o espaço diminuto do veículo que trafega nos trilhos congelados. De ambiente em ambiente conquistado, os maltrapilhos que brigam por um pouco de dignidade tomam contato com realidades bastante distantes das suas. Bong Joon-ho ressalta a cada segmento de seu filme a violência dos abismos sociais, a categorização das pessoas, seja por posses ou local de nascimento. Não o faz sem tornar também gráfica essa violência, com sangue colorindo as janelas esbranquiçadas da locomotiva, ao passo que miseráveis, empregados e ricos tombam numa luta movida pela aspiração a direitos básicos, estes negados em virtude da manutenção do conforto de uns poucos. Expresso do Amanhã é um filme político, não no sentido das contendas partidárias, mas por comentar alegórica e criticamente realidades próximas a nós, tão próximas que, às vezes, fica difícil dimensiona-las.

Poderia falar do elenco, sobretudo do desempenho surpreendente de Chris Evans enquanto protagonista e da caricatura bastante certeira que Tilda Swinton faz dos políticos/burocratas puxa-sacos; poderia destacar a construção cênica engenhosa e verossímil; poderia, ainda, exaltar o excelente trabalho de câmera de Bong Joon-ho, responsável por criar imagens fortes e claustrofóbicas que acentuam o clima de opressão. Mas, a rigor, o que me parece realmente certeiro em Expresso do Amanhã (e, claro, isto é moldado pelos elementos citados) é a maturidade de sua visão de mundo, entre o pessimismo e a esperança, entre a constatação da realidade desfavorável e o otimismo teimoso de que dias melhores virão.

O final aponta à nova era, em contraponto à nossa atual sociedade etnocêntrica, prioritariamente branca e cristã. A despeito das já divulgadas disputas criativas/comerciais entre o diretor e os produtores que impuseram cortes significativos e inserções arbitrárias para o lançamento internacional, Expresso do Amanhã é o que toda ficção científica deveria ser: uma parábola contundente sobre nosso próprio tempo. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema

domingo, 25 de outubro de 2015

O Homem Duplicado


Em O Homem Duplicado (2013), adaptação do livro homônimo de José Saramago, os personagens são quase secundários diante do mistério essencial que os abraça, do imponderável que surge, em princípio, no cotidiano maçante do professor de história Adam Bell (Jake Gyllenhaal), e que depois atinge os demais. Assistindo a um filme numa noite arrastada, Adam encontra entre os coadjuvantes alguém igual a si, não parecido, mas exatamente igual. Tal descoberta o tira da inércia, e confrontar seu “duplo” passa a ser prioridade obsessiva. E como não ficar obcecado em virtude de uma casualidade assim? Seria esse ator de pequenos papeis em longas desconhecidos um irmão gêmeo? E não o sendo, qual seria, então, a real natureza da espantosa semelhança?

O diretor Denis Villeneuve se esforça para dotar O Homem Duplicado de uma atmosfera contínua de tensão, temperando a mesma com pitadas de fantástico. Como dito antes, esse clima é o verdadeiro núcleo do longa, justo porque a sensação de estarmos num terreno movediço e completamente instaurado no desconhecido se sobressai, e muito. A câmera escrutina Adam ora como se quisesse extrair dele alguma coisa (a verdade?) ora como se o espreitasse enquanto predador de uma vítima ignorante. Essa construção habilidosa do ponto de vista cinematográfico não encontra ecos, porém, na trama que se desenrola de maneira um tanto frouxa, deixando a sensação incômoda de vazio (assim como no livro, é bom dizer).

A transposição é bastante fiel ao espírito do original literário, tanto no que ele tem de melhor quanto nas suas fragilidades. O confronto entre Adam e seu duplo, Anthony, só ganha importância ao envolver as parceiras de ambos, elas que podem ser lidas como etapas da mesma mulher ou, em outra direção interpretativa, apenas como títeres de uma força maior. Essa força também parece responsável por dividir o protagonista e colocar posteriormente suas metades em choque. Todas as figuras estão mais para frações e, assim sendo, são reféns da própria incompletude. As passagens rápidas, porém imprescindíveis, em que o passado ou o presente de alguém é imputado a outra pessoa, denota uma espécie de rearranjo universal, como se a ordem ressurgisse gradativamente do caos até então instaurado.

Jake Gyllenhaal, por sua vez, interpreta os dois papeis que lhe cabem com bastante distinção, o que evita um embaralhamento excessivo e potencialmente dispersivo do tipo “quem é quem?”, ainda que quando necessário suscitar certa dúvida ou insinuar uma proximidade essencial e insuspeita em prol da história, ele o faça com habilidade. As ressonâncias pálidas pós-encontro dos “duplos”, as crises existenciais rasas, a própria anemia dos personagens frente o desconhecido, tudo é abrandado pela excelência da atmosfera que garante nossa atenção e curiosidade. O final, mais ambíguo do que revelador, mostra o quão O Homem Duplicado é refém do inesperado, pois carente de um desenvolvimento mais acurado dessas pessoas atingidas em cheio pelo absurdo tão bem arquitetado na tela por Denis Villeneuve. 


Publicado originalmente no Papo de Cinema 

Doses Homeopáticas #51


Em LA VIE DE BOHÈME há um forte contraste entre o discurso erudito dos três artistas (um músico, um pintor e um escritor) e a condição de pobreza em que eles vivem. Aki Kaurismäki filma na França, em preto e branco, com Jean Pierre Leaud, Samuel Fuller e Loius Malle fazendo pontas. De alguma maneira, é uma homenagem ao próprio cinema, à arte que resiste (mas nem sempre) ao estado das coisas, aos ditames do mercado, aqui simbolizados pela dificuldade desses três homens inteligentes para encontrar seus lugares no mundo. Um chumaço de poesias antigas é sacrificado para aquecer a mulher amada que treme de frio ao lado do fogão apagado pela falta de condições. Kaurismäki, que geralmente faz seus personagens experimentarem a tragédia e/ou a tristeza antes da redenção final, antes que a centelha de esperança apareça para iluminar o horizonte, aqui direciona a trama para um final não tão feliz, melancólico, que desvia de possíveis alegrias. Como de costume, seus personagens são pessoas generosas, meio alheias ao cinismo e à desconfiança, gente que procura, embora nem sempre consiga, fazer o bem. Há bastante humor, o contumaz viés satírico, e um tom carregado de tristeza que vai se insinuando até não deixar muito espaço para outras sensações. No fim, o companheirismo é a única a saída para aplacar as dores de viver, seja o dos amigos ou mesmo do fiel escudeiro canino.


O SÉTIMO SELO é sempre lembrado pela imagem do cavaleiro jogando xadrez com a morte, certamente uma das mais emblemáticas do cinema. Contudo, o filme não se resume a isso. Ao voltar das cruzadas, o protagonista encontra uma terra assolada pela peste, em plena decadência. Apela para Deus, questionando seu silêncio. Ele encontra uma trupe circense, artistas que levam entretenimento e ludicidade àquelas pessoas que estão frente a morte. A cena da apresentação sendo interrompida pela caravana dos flagelados é de uma força tremenda. Os cânticos alegres são substituídos pelas lamúrias e gemidos do povo que mutila o corpo para pretensamente purificar a alma. Os desígnios de Deus são igualmente postos em xeque pelo cavaleiro, um homem atormentado, regresso de uma missão santa com requintes de crueldade. É um filme de forte apelo visual, ambientado num passado remoto em que a religiosidade e a fé eram ainda mais importantes para a formação do povo e o andamento da sociedade. Em meio aos artistas, que driblam os caprichos da morte valendo-se da arte, o personagem de Max Von Sydow encontra um pouco de paz, antes que a inevitável ceife sua existência, dançando com ele e seus amigos no horizonte o bailado da eternidade.



VAMPIROS, de John Carpenter, é protagonizado por um badass, como dizem os norte-americanos. James Woods interpreta esse cara que não se intimida diante do Vaticano e nem mesmo frente ao mestre supremo dos vampiros que está na sua cola. Pode-se tentar extrair de tudo que acontece até algum subtexto, mas o filme vale exatamente pelo que mostra, pela maneira envolvente com a qual nos inteira da rotina dos caçadores que fuçam em covis de chupadores de sangue para exterminar essa raça de predadores da face da Terra. Há muitos buracos no roteiro, algumas simplificações no que diz respeito à trama propriamente dita, mas elas são completamente supridas pela maneira irresponsável (no bom sentido) com que os fatos vão se sobrepondo, se atropelando. A supremacia da forma fica evidente. Pouco importa se o vampiro mestre podia ou não aproveitar-se da ligação com a prostituta recém-mordida, assim como ela se aproveita, ou se, no fim das contas, esse vilão cai rápido e fácil demais. Relevante ali é ver esse mundo sendo delineado na tela, numa trama protagonizada por um cara que remonta aos cowboys durões do western de antigamente. Não é uma crítica à igreja, embora o apontamento esteja ali. É uma diversão inteligente, daquelas que fazem uma falta danada hoje em dia no nosso circuito combalido.

domingo, 18 de outubro de 2015

Donnie Darko


Donnie Darko (Jake Gyllenhaal) é um adolescente problemático e, como tal, toma pílulas, remédios para aliviar sua estranheza diante do mundo. O sonambulismo o faz escapar de um acidente bastante improvável, aliás, escapar da morte certa quando uma turbina de avião, vinda sabe-se lá de onde, destrói seu quarto no meio da noite. Donnie começa a ter visões, no que pensamos, em princípio, ser agravamento de seu estado patológico. Frank, o amigo imaginário, homem evidentemente fantasiado de coelho bizarro, logo anuncia o fim do mundo para dali 28 dias 06 horas 42 minutos e 12 segundos. Donnie é o único que sabe a respeito da data prevista para o fim, mas isso não parece alarmá-lo mais do que as questões cotidianas, do que as pequenas e grandes farsas que constroem o dia a dia.

Donnie Darko (2001) adquiriu status com o passar do anos. Suas conjunturas envolvendo viagens no tempo foram, desde a estreia, o viés principal da maioria das análises, muitas delas realmente empenhadas em achar saídas para determinados labirintos, em solucionar alguns enigmas que soam nebulosos mesmo quando acaba a sessão. Isso tudo criou um verdadeiro culto em torno da primeira realização de Richard Kelly, o que, por conseguinte, fez do cineasta alvo da atenção dos agora seus fãs. Entretanto, não me parece que o filme deva ser celebrado necessariamente por suas áreas cinzentas, mas sim, e sobretudo, pelas relações que estabelece claramente com o intuito de fazer emergir um painel crítico das enfermidades que minam a saúde da sociedade norte-americana.

O filme também possui diversas observações de cunho político, como visto, por exemplo, na conversa à mesa de jantar dos Darko, logo no início, na qual a irmã de Donnie abre seu voto ao candidato menos conservador à presidência, ocasião em que é repreendida pelo pai, um eleitor convicto do então postulante ao cargo máximo da nação, George Bush (pai). Mesmo assim, Kelly não pinta os pais do protagonista como reacionários empedernidos, ou algo parecido, da mesma maneira que evita saturar demais os outros personagens alinhados a uma política (partidária e de vida) menos progressista, fugindo, assim, de reduzi-los a arquétipos. Ao invés disso, elementos mais sutis conectam essas mesmas figuras a outras convicções retrógradas, como, por exemplo, o porte de armas e a campanha contra uma linha educativa mais abrangente, esta considerada perigosa.

A escola é o principal pilar dessa sociedade que o filme critica. O ambiente onde se deveria fomentar educação e formação da cidadania é, em Donnie Darko, um ninho viciado de professores cuja pedagogia antiquada reduz o potencial individual dos alunos, além de berço para charlatães e suas teses de autoajuda que “lobotomizam” o senso crítico dos ouvintes com soluções fáceis para os dilemas da vida. Não à toa, incitado por Frank, Donnie passa a vandalizar a escola constantemente, atingindo aqueles que professam a hipocrisia institucionalizada, ou seja, destruindo como forma de criação. O protagonista passa, dessa maneira e por meio da relação com o coelho gigante, ele que pode ser tanto uma projeção do subconsciente quanto um literal viajante do tempo, a castigar as forças responsáveis por tornar a coletividade uma massa amorfa de gente sem pensamento próprio, vítimas circunstanciais da apatia.

Donnie é uma espécie de profeta, vislumbra o futuro ao passo que estuda os meandros do destino, cortejando a ciência como explicação de fenômenos antirreligiosos. Por outro lado, volta e meia se fala no filme a respeito da “obra de Deus”, certa predeterminação dos caminhos que Donnie chega a ver materializada por espectros saídos do peito das pessoas, manifestação que gera um questionamento interessante: se vemos os trajetos a nós determinados (por uma divindade?), teríamos de segui-los inexoravelmente, ou seria justo essa a chave para subvertê-los? Ainda na seara religiosa, Donnie pode ser entendido como alusão a Jesus Cristo, pois ao tomar conhecimento de seu destino ele aceita o sacrifício para “purificar” o pecado dos demais, como vemos no fim.

Misturando, então, conceitos científicos e parábolas religiosas, Donnie Darko é um grande filme, também por sua atmosfera intangível de mistério. A utilização de uma trilha sonora repleta de músicas conhecidas de outrora ajuda a ambientar a trama no passado, contudo sem com isso datar suas ressonâncias. O subúrbio americano do longa se aproxima conceitualmente dos utilizados por David Lynch, no sentido de também guardar em sua aparente rotina pacata uma obscuridade pronta para emergir violentamente, algo quase despercebido numa metrópole já caótica por natureza. Ali, onde o coelho gigante é uma espécie de antevisão da morte, em princípio combatida farmacológica e terapeuticamente, Donnie é o único realmente lúcido, a despeito de suas esquisitices. Por enxergar além, ele é “escolhido” (por quem?) para evitar a dor dos outros, mesmo à custa da sua.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

domingo, 27 de setembro de 2015

Um Amor em Paris


Brigitte (Isabelle Huppert) é uma mulher do interior. Com o marido, ela cria gado de corte e também para vencer concursos pecuários, sentindo cada vez mais o peso do tempo transcorrido que acentua o lado nefasto de sua rotina. Vê-se estagnada, mesmo longe das dificuldades físicas impostas pela vindoura terceira idade, ou seja, ainda plena de forças para perseguir desejos que, por certo, conflitam com a personalidade mais pacata do marido, este feliz em meio à lida campestre. Numa festa de adolescentes, ocorrida na propriedade vizinha, ela se vê enredada menos propriamente pelo jovem com quem flerta e mais pela possibilidade de acessar novamente sua juventude de espírito.

Um Amor em Paris (2013) é uma comédia. Como é bom ver Isabelle Huppert, atriz de inegável talento, entretanto bastante presa ultimamente ao que chamo de “efeito A Professora de Piano” (por mimetizar em outros papeis o tipo esvaziado de emoções criado por Michael Haneke), interpretar alguém de concepção mais leve, dotada de anseios, dúvidas, zonas sombrias, claro, contudo de atitude mais calorosa frente aos contratempos. Enquanto vaga por Paris com o álibi de buscar a cura para um problema de pele, sua personagem entra de cabeça num processo de autoconhecimento, orgânico, sem espetacularização ou dramatização para além da conta.

O diretor e roteirista Marc Fitoussi evita qualquer artifício que desvie o foco da pequena jornada existencial da protagonista. Brigitte não é movida pela certeza, ao contrário, tateia novidades por estar imersa em dúvida. Essa natureza é responsável por tornar suas escolhas simpáticas ao nosso olhar, mesmo aquelas passíveis da reprovação de alguns. Brigitte interage com o mundo estranho ao seu habitual como se dele extraísse forças não para uma fuga, mas para redescobrir motivações bastante particulares. E, também é importante pontuar, mesmo que a trama transcorra entre o campo e a cidade grande, as diferenças geográficas e, por consequência, culturais, são beneficamente insuficientes para definir o descompasso na relação do casal.

A parte derradeira, bem como o encerramento em si, se dá menos centrado em Brigitte, pois generoso também ao protagonismo de Xavier, o marido vivido por Jean-Pierre Darroussin. Se até então servia como principal coadjuvante, ele passa a ganhar importância equivalente à da esposa, deflagrando seu próprio processo de reconciliações ocorrido em paralelo às desventuras dela pela Cidade Luz. Um Amor em Paris é daqueles filmes que provocam sorrisos, sem para isso comprometer a seriedade de observações maduras e pertinentes a respeito da difícil conciliação entre realização pessoal e as necessidades dos relacionamentos.  


Publicado originalmente no Papo de Cinema 

sábado, 26 de setembro de 2015

Doses Homeopáticas #50


HOMEM-FORMIGA é outro tijolo na construção da Marvel. Seguindo o padrão de qualidade dos filmes mais recentes do estúdio, cumpre o papel de oferecer entretenimento. Aqui, porém, há o resgate de uma característica das primeiras produções da Marvel: o humor. Paul Rudd se sai muito bem como protagonista, dando um quê de deboche à maioria das ações desse ladrão recrutado para ser herói, sem com isso enfraquecer os momentos dramáticos. O subtexto da paternidade, com os pais fazendo de tudo para que os filhos tenham um futuro melhor, a despeito das próprias dificuldades com a representação da figura paterna, é raso, mas, mesmo assim, confere à trama uma base humana interessante. É um filme que se vê com prazer, pois não fere nossa inteligência e ainda oferece momentos de ação e emoção engenhosamente construídos. Em meio a isso, a linha que costura o individual ao plano maior, neste caso a provável entrada futura do Homem-Formiga no time dos Vingadores. Saído diretamente de uma eficiente linha de produção, contudo, não é uma realização descartável.


O que mais impressiona em OS VISITANTES é a capacidade de Elia Kazan para sustentar o clima de tensão durante boa parte da história. Os dois soldados que visitam o ex-colega que os denunciou por um crime de guerra são presenças fortes, taciturnas. Um é espalhafatoso, o outro possui um timbre de voz baixo, porém ainda mais ameaçador. Os movimentos de ambos são bruscos. Toda essa fisicalidade dá conta de instaurar o medo crescente. Contudo, na medida em que as coisas evoluem, um forte viés psicológico se impõe. O protagonista se sente incomodado, mas não consegue ser firme com os intrusos, chegando a deixar sua mulher sozinha com o estuprador confesso. Ela, por sua vez, amedrontada no início, passa a flertar com o homem que toca o terror na propriedade. A violência e a morte podem vir a qualquer hora, por isso ficamos em suspense. O subtexto que dá conta das cicatrizes de guerra, da moral elástica do soldado em combate, é menor diante da forma, do jogo proposto por Kazan, no fim das contas, mais intrigante que o desfecho relativamente previsível.


Os personagens de Aki Kaurismäki são gente de ação, cujos atos atropelam a ponderação. Além disso, são pessoas do povo, geralmente vivendo à margem. Em SOMBRAS NO PARAÍSO, um catador de lixo se interessa por uma caixa de supermercado. A frieza do semblante deles reflete o clima, a neve, o tempo nublado de Helsinki. A paixão está ali, porém camuflada sob a aparente anestesia das expressões, dos movimentos quase automáticos. Não há enrolação no cinema de Kaurismäki, alegrias e tristezas se sucedem sem que a qualquer uma delas seja dada mais importância. Uma fina ironia percorre as cenas, assim como um humor incomum, às vezes autodepreciativo, mas, ainda assim, terno. A luta de classes está lá, evidenciada na dificuldade desses marginais para inserir-se em determinados lugares virtualmente proibidos à sua condição social. A tragédia é a do homem comum, das batalhas cotidianas, seja por sobrevivência ou para obter um pouco de dignidade e amor em meio a tanta sordidez. Os personagens fumam o tempo todo, habitam lugares pouco iluminados, agem impulsivamente, tornando-se símbolos de um cinema singular e excepcional.