domingo, 13 de dezembro de 2015

A Pele de Vênus


A estrutura formal de A Pele de Vênus (2013), mais recente realização de Roman Polanski, dialoga evidentemente com a linguagem teatral, ainda que a expressão pejorativa “teatro filmado” não lhe seja justa - assim como, a meu ver, não se ajustava, mesmo que por motivos distintos, a Deus da Carnificina (2011), filme anterior do cineasta. O fato de quase toda ação se passar num palco italiano e seus arredores, não basta para que o cinema se submeta ao teatro. Aliás, o imperativo dos signos estritamente cinematográficos, tais como a montagem, por exemplo, em consonância com a encenação algo teatral, promove uma simbiose com ares de reverência mútua entre teatro, arte milenar, e cinema, arte secular. 

Thomas (Mathieu Amalric) é o adaptador do livro A Vênus das Peles, de Leopold von Sacher-Masoch, que tentará sua primeira incursão enquanto diretor. Desgastado por um dia de testes inúteis com atrizes incapazes de entender os personagens (sinal dos tempos, se repete ao longo do filme) ele está para partir quando interrompido pela atrasada Vanda (Emmanuelle Seigner), aspirante ao papel principal que chega reclamando de má sorte, desfilando vulgaridades e certo desdém pelo texto, ao passo que tenta convencer seu interlocutor a ficar e estender uma noite que parecia até então fadada ao encerramento num encontro protocolar com a noiva. Para Thomas a conversa inicial não é promissora, contudo ele acaba cedendo, mais à insistência destrambelhada de Vanda do que a qualquer esperança de encontrar nela sua musa.

A interpretação surpreendente da estranha e o crescente envolvimento de Thomas com o papel masculino faz emergir o que parece o eixo temático de A Pele de Vênus: relações de poder. Da autoridade do diretor logo relativizada à discussão sobre a histórica sujeição feminina, tudo gira em torno da ideia de que os relacionamentos, também os amorosos, são entremeados por complexas disputas por poder. Thomas é enredado pela misteriosa Vanda, de quem nada sabemos além das poucas informações fornecidas após conversas telefônicas de duvidosa existência. E esse jogo da mulher que utiliza o corpo e a voluptuosidade, mas, sobretudo, a inteligência para mostrar a fraqueza do bicho homem, acaba por embaralhar ficção e realidade.

Não estaria Polanski com A Pele de Vênus expondo um conceito de viés filosófico, segundo o qual, no final das contas, tudo é encenação? Conforme postulado na origem do teatro grego, se podemos ser interpretados por alguém, não seríamos nós mesmos essencialmente personagens? Thomas e Vanda são tipos que se atraem e se repulsam, quase na mesma medida. Polanski também promove uma aproximação seguida de distanciamento entre o tempo passado do romance (escrito em 1870) e a contemporaneidade do filme, apontando certas características e impulsos humanos imunes ao transcorrer dos relógios enquanto sinaliza determinantes demandas próprias da era atual. Ali, no palco teatral apropriado pelo cinema, Roman Polanski discute a complexidade das relações e do desejo, fazendo assim outro grande filme.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

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