segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Oscar 2011 - Prêmios e reinados efêmeros

Mais um Oscar se foi e a sensação de esquecimento para com os prêmios e cerimônia parece precoce. Em um ano onde dois filmes bastante distintos disputavam a atenção dos votantes em várias categorias, Anne Hathaway e James Franco foram os anfitriões de uma premiação rápida, previsível e composta por mais erros do que acertos, como de costume.

O Discurso do Rei foi agraciado com os prêmios de maior prestígio, incluindo o de Melhor Filme de 2010 e de Melhor Diretor para Tom Hooper, diretor que quando colocado ao lado de David Fincher parece um aluno recém-formado em produção audiovisual. A Rede Social, que concorria em diversas categorias e era o favorito de muitos críticos, saiu com três importantes prêmios - o de Roteiro Original, Montagem e Trilha Sonora. A Origem aparece com quatro prêmios técnicos e a confirmação de que a academia não dá muita importância ao cinema de Christopher Nolan. Os irmãos Coen com seu Bravura Indômita sairam de mãos vazias.

Dentre os (poucos) bons momentos de uma festa que felizmente não teve 127 horas como as anteriores pareciam ter, a participação animada de Kirk Douglas, os cenários criativos e a concisão no roteiro da cerimônia se destacam. Por outro lado, James Franco e Anne Hathaway fizeram pouco mais do que trocar de roupa a cada bloco, pequenos em participações que foram mais divertidas na campanha de marketing do Oscar do que na noite da premiação propriamente dita. Para terminar, uma tonelada de crianças entoaram Somewhere Over The Rainbow enquanto os vencedores da noite se amontoavam no palco.

Nós do The Tramps nos reunimos pelo quinto ano consecutivo e, munidos com listas e apostas em mãos, fomos conferir os vencedores da noite e o resultado do divertido bolão que se tornou tradição para estes blogueiros - mais em questão de entretenimento do que em relação à nossa cinefilia. Confira os vídeos abaixo e saiba mais sobre o antes e depois do Oscar, além de descobrir quem foi agraciado com o prêmio por ter mais acertos nas apostas (que até foram matéria de jornal no final de semana). Pedimos desculpas pela péssima qualidade de som e imagem dos vídeos e não prometemos melhorar a situação para o próximo ano.

Expectativas e opiniões pré-Oscar:



Resultados e opiniões pós-Oscar:



Vencedores do 83º Oscar:

Melhor direção de arte:
"Alice no País das Maravilhas"

Melhor fotografia:
"A origem"

Melhor atriz coadjuvante:
Melissa Leo – “O vencedor”

Melhor curta-metragem de animação:
"The lost thing", de Shaun Tan, Andrew Ruheman

Melhor longa-metragem de animação:
"Toy story 3"

Melhor roteiro adaptado:
“A rede social”

Melhor roteiro original:
“O discurso do rei”

Melhor filme de língua estrangeira:
"Em um mundo melhor" (Dinamarca)

Melhor ator coadjuvante:
Christian Bale – “O vencedor”

Melhor trilha sonora original:
"A rede social" - Trent Reznor e Atticus Ross

Melhor mixagem de som:
"A origem"

Melhor edição de som:
"A origem"

Melhor maquiagem:
"O lobisomem"

Melhor figurino:
"Alice no País das Maravilhas"

Melhor documentário em curta-metragem:
"Strangers no more"

Melhor curta-metragem:
"God of love"

Melhor documentário (longa-metragem):
"Trabalho interno"

Melhores efeitos visuais:
"A origem"

Melhor edição:
"A rede social"

Melhor canção original:
"We belong together", de "Toy story 3"

Melhor diretor:
Tom Hooper – “O discurso do rei”

Melhor atriz:
Natalie Portman – “Cisne negro”

Melhor ator:
Colin Firth – “O discurso do rei”

Melhor filme:
“O discurso do rei”

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Entrevista: Tom Hooper fala sobre "O Discurso do Rei"

Entrevista concedida à jornalista norte-americana Katey Rich, do site Cinema Blend, e traduzida por Conrado Heoli para o The Tramps. A entrevista foi realizada em 23 de outubro de 2010, por tanto é interessante atentar ao fato de que todo o burburinho ao redor do filme e diretor, assim como sobre os vindouros prêmios, ainda não existiam.

Tom Hooper provou recentemente para o público que ele tem uma queda por contar narrativas históricas com ternura, humor e humanismo, dirigindo a minissérie para a HBO John Adams, indicada à 13 prêmios Emmy e aclamada mundialmente, mesmo por pessoas que disseram ter visto o suficiente sobre nossos pais fundadores. Agora ele está de volta dentro de sua nativa Inglaterra fazendo o mesmo como o diretor de O Discurso do Rei, um filme sobre o Rei George VI e seus problemas com o impedimento de locução que o acometia, pouco antes de seu pais entrar na II Guerra Mundial. Parece limitado, sentimental e demasiadamente sério, mas O Discurso do Rei é o oposto de tudo isso: uma dinâmica e frequentemente emocionante história sobre amizade e dever e sobre um homem que deveria ser ordinário exceto pelas extraordinárias circunstâncias que o tornaram Rei. George foi forçado a tomar o trono quando seu irmão David (interpretado por Guy Pearce no filme) abdicou para poder se casar com Wallis Simpson, norte-americana divorciada duas vezes. A filha mais velha de George, Elizabeth, viria a sucedê-lo como Rainha após a sua morte em 1952.


Cinema Blend: Como você acessa narrativas históricas como esta de uma forma com que elas não se pareçam com história?
Tom Hopper: Eu não as vejo como história. Para mim, esta narrativa é muito atual. O roteirista David Seidler nasceu em 1937, ele ainda se lembra dos discursos durante a guerra. David foi gago durante a infância e ele costumava ouvir ao Rei George VI no rádio para se assegurar de que poderia superar seu problema. Eu nunca pensei que eles não eram seres humanos. Eu não entendo que há uma forma de olhar para eles distintamente de seres humanos. Quando eu fiz John Adams estava ciente de que crianças americanas imaginavam esses pais fundadores em pedestais e achavam difícil pensar neles como carne e sangue. Como eu não sou americano eu tive a liberdade de não ser inibido por isso.

CB: Você esteve mais inibido contando a história do Rei, então?
TH: Não, porque nós ainda não conhecemos muito sobre ele. E em alguns aspectos ele ainda é um pouco negligenciado pela consciência pública. Eu certamente penso com algumas dúvidas de que ele foi gago ou não, mas certamente ninguém sabe da história do terapeuta de discursos. Eu pareço estar atraído em personagens icônicos e o que eles refletem para nossas culturas. Não é por que eu fiz o filme, mas eu certamente penso que é interessante que o inglês está em conflito sobre a monarquia. Por um lado eles são reverenciados e amados, eles são como uma novela nacional. Na outra, eles transmitem uma ideia de santificação e de diferença de classes e privilégio em uma moderna e progressiva democracia. Eu acho que o que é tão fascinante sobre o enredo [em O Discurso do Rei] é que ele ridiculariza qualquer noção simplista de privilégio. A história do George VI propriamente compreendida não é sobre privilégio; sua ascensão foi tão assustadora que ele teve a gagueira como resultado. Quando ele se tornou rei, claramente aquilo foi um pesadelo por causa da gagueira, pela chegada do rádio como uma tecnologia. Então se ele não é privilegiado, a monarquia deve mudar para obter resultados. E você compreende a Rainha atual se você compreende seu pai, aquele senso de dever e aquele senso que é o oposto de uma aproximação hedonista ao poder. É muito sobre sua ideia de dever, que eu penso que nós particularmente não temos mais em nossa cultura.

CB: Como você escolheu Colin Firth para interpreter George VI?
TH: Quando eu encontrei Colin pela primeira vez, minhas restrições eram para que ele fosse 10 anos mais velho. E Colin é um jovem forte, enquanto o verdadeiro rei era menor e tinha uma aparência mais fraca. Quanto mais eu pensava sobre o assunto e passava mais tempo com Colin, pensava que a similaridade espiritual era mais importante que o quesito físico. Colin é dedicado e extremamente gentil, ele tem uma humildade tremenda. E o verdadeiro rei, pela minha pesquisa, pareceu ser assim. Não é surpresa que Colin não é escalado para um herói de ação cheio de testosterona. Ele não ganha o papel do cara mal. Não está em seu DNA. O lado físico, de uma forma, está além disso. Graças à Tom Ford ele esteve o mais esguio como nunca parecera, e então eu trabalhei a sua linguagem corporal. Nós sentávamos em uma cadeira e ele se encolheria, encurvado para dentro de si mesmo. Quando ele ficava de pé ele se mantinha de uma forma estranha. Eu tentei tirar dele confiança física e postura. O dia mais extraordinário para mim foi o primeiro dia, o primeiro dia em que eles se conhecem, naquela longa cena de 10 minutos que também fica tão bem no teatro. Nós tivemos um ensaio de três semanas, o que é incrivelmente intenso. Ver Colin e Geoffrey habitando seus personagens para o primeiro dia de filmagem. Há sempre aquela dúvida no ar, “ele é um dos maiores ou ele apenas é muito bom?”. Naquele dia eu soube que ele era um dos maiores.

CB: E sobre Helena Bonham Carter?
TH: Eu me apaixonei por Helena em Uma Janela para o Amor quando eu era adolescente. Ela é uma grande atriz clássica, e eu achava triste que ela não tivesse feito um papel clássico por tanto tempo. Eu pensava que as pessoas estariam famintas para verem ela fazer isso novamente. Eu cresci com uma foto dela em um cartaz na minha parede em Uma Janela para o Amor, ainda que eu deva admitir que a foto da câmera platinum Panavision, que estava no mesmo pôster, era muito maior que ela. E a pesquisa dela era incrível. Cada vez em que eu estive na casa dela e de Tim [Burton] havia outro historiador real jantando com ela. O que é extraordinário é que em dois minutos você a aceita como a Rainha Mãe.

CB: E o que adicionou Geoffrey Rush ao elenco?
TH: É maravilhoso trabalhar com ele, pois ele tem este extraordinário entusiasmo. Ele tem a energia de uma criança de cinco anos. Você trabalha com alguém que é completamente incansável na sua busca por excelência. Nós tivemos um ensaio de três semanas parcialmente por que o Geoffrey me ligou e disse, “Eu não estou fazendo nada, por que nós não começamos?”. Enquanto isso o agente dele o instruía a vir apenas uma semana antes. Ele queria começar. Era interessante trabalhar com esses dois homens, porque Colin é muito engraçado mas ele é quieto e reservado, e Geoffrey tem este grande dinamismo. Tinha muita energia fluindo. Geoffrey esteve lá por quarto semanas e depois ele partiu para fazer uma peça, e Colin estava como se estivesse de luto. Foi muito doce. Helena ficou com ciúmes, “Oh, você está triste porque Geoffrey foi embora.”. Ela fazia piadas dizendo que era uma história de amor e que não era com ela.

CB: Como você trabalhou com a jovem Elizabeth, e criou aqueles pequenos lembretes de sua relação com seu pai, e sua iniciação como Rainha?
TH: Se em qualquer coisa eu demorei um pouco mais a editar, eu testei o filme e particularmente os americanos não fizeram a conexão, não se deram conta de que era a rainha. Eu penso que é uma vergonha se você não se dá conta de que é a rainha, e eu penso que é uma vergonha se você não se dá conta de que aquele é o pai dela, porque há algo de interessante em ser lembrado que aquele é o pai dela. Eu apenas me certifiquei de que a câmera deu mais status à ela e deu às pessoas tal lembrete.

CB: Nós devemos ter sentimentos negativos em relação à Wallis Simpson no final do filme?
TH: Eu quis conectar a narrativa com o ponto de vista dos irmãos mais novos. Se você é Elizabeth e Bertie, o que David fez foi extremamente egoísta. E nós sabemos dos livros de história que ele nunca se sentou para falar sobre sua decisão de abdicar em favor do progresso. Eu quis conectar com a narrativa o ponto de vista deles. Ambos os homens tiveram este relacionamento com mulheres que os dominaram. Com a Rainha Mãe eu penso que a dominação era benigna, enquanto com Wallis tinha um sabor um pouco mais sombrio. Guy Pearce e eu pensamos que havia um forte indicativo na noção do ciúme sexual. O grande mistério é o motivo pelo qual ele teve de se casar com ela. Eu sei que soa estranho, mas Edward VII, seu avô, teve um grande envolvimento com amantes. Então você meio que imagina, ninguém indicou que Wallis era mantida como amante durante toda a vida dele. A pista é que durante o processo de abdicação Wallis disse, “Vamos terminar, é loucura você fazer isto”, e isso o enraiveceu e fez com que ele ficasse mais determinado a se casar com ela. Esta é a minha própria leitura do caso, mas eu penso naquela famosa foto deles já envelhecidos, e eles parecem tão tristes.

CB: A cinematografia, a forma com que a câmera é colocada e as cores, há algo de interessante que acontece e eu quase não pude me dar conta. A forma com que os personagens são marcados independentemente do enquadramento soa menos limitada e conservadora.
TH: Bom, parcialmente é porque eu escolhi filmar os closes nas cenas da sala de atendimento e com o Bertie com lentes relativamente fechadas. Em Hollywood normalmente você filma closes em lentes grandes. Colocar a câmera em close é meio que brutal para o ator. É algo bastante forense, não há para onde ir. Você sente que é uma fotografia muito bruta. Você não deve usar lentes grandes, não é romântico, não tem o foco leve. Eu fiz por ter pensado que o rosto de Colin poderia ser emoldurado em relação ao negativo e Geoffrey poderia ser emoldurado em relação à fundos mais domésticos. Na primeira cena da sala de atendimento, Colin está de pé contra uma parece detonada, ele está do lado inferior-esquerdo e a parede é dominante. Sua face dialoga com um espaço negativo no enquadramento e isso acontece porque eu quis falar sobre abstenção e silêncio. Se você sofre de gagueira é como se você habitasse essas dolorosas abstenções e silêncios. Isso pode ser uma metáfora visual para como é ser gago. Mas quando você se vira para Geoffrey, ele tem a lareira, as cadeiras, as telas e as fotos, e tudo é aconchegante. Filmar de forma fechada também constantemente captura o ambiente para o enquadramento. Há provavelmente uma modernidade nisso que me agrada. Eu sempre estou tentando encontrar maneiras de fazer com que o filme pareça moderno para as pessoas. Em John Adams há muitas coisas, como a fotografia com câmera na mão e a dureza da fotografia. Eu quis que o resultado não soasse como muito reverencial.

CB: Mas em “O Discurso do Rei” o enquadramento é também muito formal, repleto de enquadramentos bem compostos. Isto é reflexão do elemento da realeza?
TH: Você está certa, há uma restrição neles. Existem várias intenções em minha direção. Eu mesmo enquadro as coisas e existem escolhas muito fortes à serem feitas. Eu gostei de colocar Colin em enquadramentos que pareciam decisivos pois é ele quem está nesta caixa.

CB: Quais são seus pensamentos sobre a recomendação R** da MPAA*?
TH: Eu penso que é realmente bizarra. Você meio que pensa que “um ‘foda-se’ significa PG-13***, dois ‘foda-se’ significa um R”. É um argumento em que você pode quantificar a linguagem mas não pode quantificar a violência, e eu considero isso altamente suspeito. A linguagem é altamente contextual e aqui nós temos a palavra começada com “f” sendo usada em terapia de locução. É utilizada puramente como um mecanismo para libertar alguém de uma gagueira. David Seidler, o escritor, encontrou esta técnica quando criança, nos anos 40. Você pensa, tudo bem, estava tudo bem em 1940 para uma criança, possivelmente estará ok em 2010.



* MPAA: Motion Picture Association of America, órgão censor responsável pela classificação indicativa de todos os filmes lançados comercialmente nos Estados Unidos.
** R: classificação que permite a entrada de menores de 17 anos apenas se estiverem acompanhados por seus pais ou tutores.
*** PG-13: classificação que indica que os pais devem ficar atentos, pois o filme possui material inadequadro para crianças menores de 13 anos.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

A Origem e o meio termo


Muita gente adorou A Origem, o filme “pequeno” que Christopher Nolan quis realizar antes de encarar uma terceira parte de Batman. Não é um filme pequeno, óbvio, e para constatar isto basta olhar sua lista privilegiada de atores e prestar atenção nos cenários, no refinamento técnico, etc. A Origem é tudo, menos um filme pequeno. De repente, e por isso mesmo, foi há pouco tempo o protagonista de uma polarização de opiniões, entre os supracitados amantes do filme e os que acreditam que ele seja um engodo, um pseudo-biscoito-fino da recente cinematografia americana. A Origem é sucesso de público, de uma massa que vê algo de inteligente nele. Aí uma parte da crítica caiu matando. Parece que quando um crítico mais empedernido vê o espectador médio de cinema, não o cinéfilo, o consumidor casual de cinema mesmo, exultar um filme como sendo genial, absolutamente inovador, ele se deixa levar inversamente por esta empolgação, não raro desproporcional, para lançar um olhar até preconceituoso sobre o objeto de análise. Não é regra, nada é, na verdade, mas que acontece muito, acontece. Vejamos então o caso de A Origem, festejado por alguns como prova de vida inteligente no blockbuster, o filme que veio para tirar o entretenimento do buraco, e por aí vai. É tudo isto? Em parte, só em parte, mas isto não quer dizer que os que não o percebem desta forma, para desautorizar quem o vê assim, precise tornar superlativos seus “problemas” em detrimento de suas inúmeras qualidades.

A Origem não fala sobre as diversas camadas dos sonhos, sobre suas implicações psicológicas ou de alguma ressonância social que o tema possa abarcar. Se colocarmos ele em paralelo com seus concorrentes ao Oscar de Melhor Filme deste ano, veremos que alguns destes rivais são mais abrangentes, tem mais reverberação por conta de tramas carregadas de psicologismos, entornos mais elaborados e tudo mais. O que muitos não notam é que A Origem opera no espectador com muito mais força quando este se dá conta de que o substrato do filme está em seu primeiro plano narrativo, na primeira camada, que ele é um exemplar de ação, carregado da complexidade inerente quando inseridos elementos como: sonhos, projeções, culpabilidade, etc. Entendem? A Origem não é SOBRE estes assuntos espinhosos, não é um libelo acerca da culpa humana, ou sobre os diversos níveis de consciência, no máximo podendo ser enquadrado como contestador do conceito de realidade, mas bem de leve. Ele só utiliza estes ingredientes para dar um ar menos convencional à tipologia básica em que ele se encaixa de fato, que é a de "filme de assalto em equipe".

Para mim está aí o charme de A Origem. É um filme complexo? Não, de certa forma alguns tendem a taxá-lo assim pela bruma que se instala quando queremos controlar matematicamente as camadas dos sonhos que se apresentam no filme, mas em suma ele não é narrativamente complicado. Aliás, Nolan quase erra a mão no embaralhamento entre os níveis da missão subconsciente da equipe chefiada por Dom Cobb, mas o filme é tão dinâmico, seus personagens são tão assumidamente carcaças sem muita profundidade, que não é difícil se ver completamente envolvido com a narrativa, o desenrolar, os belos cenários, os efeitos competentes e a história cativante que alavanca o filme. A Origem é isto, um excelente entretenimento, um filme pipoca cabeçudo que funciona, e muito (pelo menos para mim) num nível que certamente elevaria o blockbuster, caso fosse tomado como parâmetro industrial. Christopher Nolan não fez um filme revolucionário, nada que mereça a alcunha de “obra-prima” ou “novo”, mas afinal de contas realizou algo que de tão interessante e bem executado, merece um lugarzinho de destaque nos bons filmes de ação produzidos nos últimos tempos na indústria americana. Levá-lo a sério demais poderia ser um pecado justificado pela adrenalina que sobra no final da sessão, mas menosprezá-lo poderia se configurar num excesso de preciosismo de uma crítica que geralmente não reconhece os meios termos, que só estabelece relevância quando edifica gênios ou taxa medíocres.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

As dores e amores de Domingos Oliveira

 
Já muito se falou que Domingos Oliveira é uma espécie de Woody Allen brasileiro, e por mais que estas comparações tendam a eclipsar algumas particularidades que fazem de ambos grandes artistas, há de se convir que não é de todo despropositada a tentativa de colocá-los em paralelo, já que os dois são diretores/escritores, cronistas de vidas cotidianas que criam personagens extremamente verbais e de fala privilegiada. Mas vamos esquecer isto de “Woody Allen tupiniquim”, e vamos nos concentrar mesmo em Domingos, um artista que teve de lutar contra o tempo de vacas magras para não deixar o amor pelo cinema sucumbir, e que desenvolveu seu talento ao longo dos anos por outras vias da criação.

Lembro muito bem do primeiro contato com o cinema dele, e foi há quase um ano, no período de minhas sabáticas férias, que prefiro passar de fronte a uma tela que me ofereça cinema, do que nas praias cheias de “famílias felizes”, todas elas parecidas umas com as outras, Não é misantropia, e sim uma questão de prioridades. Entre torrar ao sol ou quebrar a cabeça vendo um filme, prefiro a ginástica mental, que não deixa o cérebro e os sentidos atrofiarem. Finda minha confissão de férias ideais, volto ao dia em que assisti Todas as Mulheres do Mundo, aquela maravilha dotada de um texto iluminado e mise-en-scène tão despoluída, tão livre de amarras, que emoldurava a história de uma paixão avassaladoramente marcante. O filme não me saiu da cabeça por alguns dias, foi amor à primeira vista (se me perdoam a alusão), em parte motivada pelas cenas divididas entre um Paulo José (para mim, o maior ator do cinema brasileiro) na flor de sua juventude e Leila Diniz, símbolo feminino da época. Entendi ali por que Rita Lee canta que toda mulher é meio Leila Diniz.

Encontrei então um belíssimo box, com quatro obras de Domingos Oliveira, lançado pela Casa de Cinema de Porto Alegre. Não tinha ainda visto os outros três filmes do compêndio, mas não importava, precisava ter Todas as Mulheres do Mundo e, afinal de contas, já que o filme tanto me agradava, não havia mal algum (pelo contrário) em observar mais obras do mesmo criador. Assisti então a Edu Coração de Ouro, outra obra sessentista de Domingos, assim como Todas as Mulheres do Mundo, e que constatei compartilhar da mesma atmosfera da obra-prima do cineasta: os personagens livres, o belíssimo texto repleto de falas afiadas e a câmera emancipada dos ângulos perfeitos, mas sempre inspirada pela poética dos seus seres de espírito liberto. Outro filmaço, um tanto prejudicado pela falta de uma remasterização que poderia muito bem ter restaurado a qualidade do preto e branco da fotografia e ter tornado o som mais cristalino. Relevo, o importante é que o filme está lá, preservado.

Os outros dois filmes de Oliveira que compõe a caixa, Amores e Separações, são da fase mais recente da carreira do diretor, após hiato de mais de 20 anos sem filmar, por conta da falta de financiamento e durante o qual se ocupou, basicamente, de seu trabalho no teatro e na televisão. Ambos os filmes possuem uma estética mais “quadrada”, claramente embebida de alguns signos mais televisivos e teatrais, afirmando então seus trabalhos recentes. O primeiro deles fala sobre amores, desencontros, encontros, e a possibilidade do final feliz. O segundo versa sobre os corações claudicantes, os amores que nascem, crescem, se reproduzem, mas teimam em não morrer, ou não admitir sua falência. Por mais que sejam formalmente mais convencionais do que as obras de Domingos Oliveira em idos tempos, são filmes que conservam o que de melhor o cinema dele oferece: o olhar sincero, personagens muito humanos, e o fabuloso fluxo textual que não esmoreceu com o tempo, e que só enriqueceu pela vivência de seu edificador.

Se a estética visual “dominguiana” recente fica um pouco prejudicada na comparação como sua equivalente do passado (bem acima da média, inspiradíssima) muito por conta dos anos afastado das câmeras, não há como ficar alheio às tramas, aos pequenos dramas cotidianos dos personagens e a forma cativante com que seus destinos são guiados por este deus que é o cineasta, senhor do destino de suas criaturas. Vendo estes quatro filmes, retomo o tópico da comparação que se faz geralmente entre Oliveira e Allen, para constatar agora uma diferença pontual entre ambos, que não os diminui, só os faz complementares: salvo exceções, é claro, enquanto Woody Allen, até mesmo em seus filmes mais cômicos, se mostra um pessimista, um homem mais ligado às sombras da alma humana, Domingos Oliveira, mesmo na mais nebulosa situação, abre espaço para um raio de sol, por meio da redenção de seus personagens e pecados, ou pela simples birra de mostrar que um final feliz nem sempre é piegas ou edulcorado, é simplesmente feliz. Se todo cineasta se crê um deus, certamente Domingos Oliveira é uma divindade que compreende e ama os que foram criados à semelhança de sua imagem.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Woody Allen e a desventura dos seres


Eu definitivamente gosto de Woody Allen. São poucos os filmes deste diretor americano, célebre como o cronista mais neurótico que Nova York já teve, que me desagradam, poucos mesmo. Há muito, que parte do público, e uma boa parcela da crítica, vêm decretando o fim de Allen, seu esgotamento criativo e sua auto-referência constante. Não concordo. Se contemplarmos retrospectivamente sua obra, certamente veremos uma maior quantidade de filmes notáveis no passado, mas não sou um dos que acha que o diretor parou de ser relevante em A Rosa Púrpura do Cairo. Certamente que a profílica maneira de Allen trabalhar, afinal ele entrega religiosamente um filme por ano, quando não dois, é um dos fatores que fazem com que alguns de seus filmes sejam instáveis, e outros até fracos mesmo, mas daí a bradar que o gênio ”morreu”, ou que não faz mais nada assim tão bom, é bem exagerado. 

Bom, isto pode ser por que gosto demais do estilo de Woody Allen, de sua aparente simplicidade estética, de seus roteiros ferinos ou largamente cômicos (ou os dois) e da maneira como sempre consegue extrair do atores algo que os liga com outros personagens “allenianos”, em ótimas interpretações, por mais que ele próprio seja o primeiro a dizer que o máximo que faz com os atores é escolher somente os bons e não atrapalhá-los. Modéstia, certamente com um pouco de negativismo. O novo Woody Allen, Você vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos é a prova de que existe certa má vontade com os mais recentes filmes dele, ou, e provavelmente é isto, que sou bastante suscetível aos trabalhos do diretor, já que dele gostei muito, na contracorrente da maioria das opiniões, que fazem questão de pormenorizar as qualidades de mais esta bela comédia agridoce da carreira do cineasta.

Você vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos é uma ciranda de personagens muito próximos. Alfie (Anthony Hopkins) e Helena (Gemma Jones) se separam após 40 anos, um tanto por que ele, de uma hora para outra resolveu se comportar como um garoto de 20, fazer exercícios e curtir uma vida baseada na negação da velhice como “pré-morte certa”. A filha deles, Sally (Naomi Watts) é uma artista formada e casada com Roy (Josh Brolin) escritor outrora promissor e hoje frustrado, que nunca foi além dos elogios angariados por seu primeiro romance. Enquanto Sally começa a se interessar por seu chef Greg (Antonio Banderas), Roy se apaixona pela bela vizinha de janela que sempre veste vermelho, Dia (Freida Pinto). Em meio a isto, Alfie casa-se com uma ex-prostituta e Helena busca apoio em uma vidente charlatã, cujas previsões lhe servem de placebo, aliviando as dores da separação.

É sempre bom, e pouco frequente, ver Anthony Hopkins na pele de um personagem pateticamente cômico, sem a aura “Hannibal”, e Naomi Watts tão à vontade, podendo desempenhar um papel sem maneirismos e, mesmo assim, dotado de muita intensidade. Isso sem falar das sutilezas de Josh Brolin,  da forte presença de Antonio Banderas, da beleza esfuziante de Freida Pinto, e da maravilha que é ver Gemma Jones em cena. Woody Allen escolheu mais uma vez um grande time de atores mas, que sua modéstia me perdoe, ele tem grandes méritos no desempenho deles. Você vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos é um delicioso registro de encontros e desencontros afetivos, estes muito mais ligados às frustrações e anseios pessoais, do que propriamente com os relacionamentos que os sentimentos solicitam com frequência. Falem o que quiserem, que ele é blasé, que é um neurótico incorrigível, e que seus filmes são versões de uma mesma história e/ou ideário, mas eu, além de não concordar com isto, continuo achando Woody Allen um dos grandes diretores da história do cinema americano, passível de erros, como todo humano, mas ainda assim um gênio da raça.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Falar e ouvir sobre cinema


Não sei se tenho sempre razão, não creio que minhas opiniões sejam absolutas e acredito que bem por isso minha busca por experiências reveladoras filtradas pelo cinema seja algo tão importante para mim. Diferente de algum tempo atrás, quando eu “cortaria o fígado” de alguém que atacasse virulentamente um filme que eu eventualmente amasse, utilizando para isto meus tão caros argumentos, hoje posso dizer que consigo ser mais tranqüilo quando há embate entre minhas ideias e as dos outros. Não se trata de curvar-se, resignar-se perante discussões inúteis, até por que creio na total relevância das discussões civilizadas, mas de intercalar o ouvir e o falar, extraindo de ambos o conhecimento pretendido.

Quando falei que não sabia se tinha razões, é certo que isto, que ao meu ver exclui uma maléfica segurança absolutista, não faz de mim um passivo, alguém que simplesmente deixa suas impressões sucumbirem perante alguém com mais nome, mais eloqüência ou de argumentos aparentemente mais sólidos que os meus, não é isto. Continuo valorizando minhas opiniões, meus pontos de vista, continuo lutando por eles, porém não creio mais que precise impô-los aos outros, ou mesmo negar o que vai de encontro com minhas elucubrações. Pensei ser isto sabedoria, mas percebi que não, que é pura e simplesmente o entendimento de que sou um ser humano em processo de aprendizagem, que tateia em busca de uma maior abrangência na percepção das coisas do cinema, das narrativas, das inúmeras formas do fazer artístico a 24 quadros por segundo.

O filme que odiei hoje pode ser sinônimo de iluminação amanhã, bem como o contrário também é verdadeiro, quando cânones do nosso conhecimento caem por terra ao passo que adquirimos experiência, que apuramos o olhar, que evoluímos. Penso que quando nos tornamos soldados excessivamente armados, dispostos a impingir aos outros o que pensamos sobre alguma obra como, neste caso, os filmes, demonstramos toda insegurança de nosso julgamento, toda a fragilidade da construção de significados que tememos cair por terra ao mínimo sinal de um abalo que toma por forma a opinião alheia. O que poucas vezes percebemos, ou queremos perceber, é que uma opinião contrária a nossa geralmente faz crescer, e nos ajuda a ascender rumo a novos níveis de entendimento e clareza.

Há os críticos de cinema mordazes, há os excessivamente bonzinhos, há os que não têm talento algum para a análise, há os guias de consumo, ou seja, são diversos os tipos de críticos de cinema, e eu procuro um diálogo com todos, seja me abastecendo com suas análises enriquecedoras, ou acompanhando e tirando algo da fragilidade de uma construção ideária, que eu julgo frágil, mas que pode não ser, vai saber? Assim como julgo minhas opiniões não absolutas, mutáveis e passíveis de uma revisão, creio que muitos críticos fazem deste enriquecimento diário, uma constante para que evitem armadilhas como o preconceito e os julgamentos apressados. O pior crítico, ou pseudo-crítico, é aquele que não suportando opiniões contrárias às suas, faz de tudo para, num ato de guerrilha desesperada, desautorizar os argumentos alheios, em favor dos seus, numa espécie de xadrez de egos, no qual o xeque-mate sempre é pronunciado por uma voz geralmente afoita por aceitação.

Tento, cada vez mais, debater e discutir sobre filmes e linguagens, fazendo questão de me posicionar, mas não deixando de abrir espaço para outros olhares e outras vozes que possam me ajudar neste processo de constante evolução. Nem sempre é possível, por vezes o monstro irracional desabrocha e parece que tudo o que quero é fazer meu interlocutor concordar comigo, aceitar meus argumentos e, com isto, ambos sermos felizes, com esta minha falsa ideia de dialética. Se quero (e quero) no futuro ser um crítico de cinema, tenho certamente que valorizar minhas opiniões, sem perder esta pontinha de desconfiança sobre a mesma, afinal de contas somos facilmente traídos por nossas próprias armadilhas, mas preciso seguramente exercitar duas coisas: o respeito à opinião alheia; e o aprendizado refinado da extração de conhecimento destas formas diferentes de encarar as coisas, que aos outros me cabe apresentar.