segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

As dores e amores de Domingos Oliveira

 
Já muito se falou que Domingos Oliveira é uma espécie de Woody Allen brasileiro, e por mais que estas comparações tendam a eclipsar algumas particularidades que fazem de ambos grandes artistas, há de se convir que não é de todo despropositada a tentativa de colocá-los em paralelo, já que os dois são diretores/escritores, cronistas de vidas cotidianas que criam personagens extremamente verbais e de fala privilegiada. Mas vamos esquecer isto de “Woody Allen tupiniquim”, e vamos nos concentrar mesmo em Domingos, um artista que teve de lutar contra o tempo de vacas magras para não deixar o amor pelo cinema sucumbir, e que desenvolveu seu talento ao longo dos anos por outras vias da criação.

Lembro muito bem do primeiro contato com o cinema dele, e foi há quase um ano, no período de minhas sabáticas férias, que prefiro passar de fronte a uma tela que me ofereça cinema, do que nas praias cheias de “famílias felizes”, todas elas parecidas umas com as outras, Não é misantropia, e sim uma questão de prioridades. Entre torrar ao sol ou quebrar a cabeça vendo um filme, prefiro a ginástica mental, que não deixa o cérebro e os sentidos atrofiarem. Finda minha confissão de férias ideais, volto ao dia em que assisti Todas as Mulheres do Mundo, aquela maravilha dotada de um texto iluminado e mise-en-scène tão despoluída, tão livre de amarras, que emoldurava a história de uma paixão avassaladoramente marcante. O filme não me saiu da cabeça por alguns dias, foi amor à primeira vista (se me perdoam a alusão), em parte motivada pelas cenas divididas entre um Paulo José (para mim, o maior ator do cinema brasileiro) na flor de sua juventude e Leila Diniz, símbolo feminino da época. Entendi ali por que Rita Lee canta que toda mulher é meio Leila Diniz.

Encontrei então um belíssimo box, com quatro obras de Domingos Oliveira, lançado pela Casa de Cinema de Porto Alegre. Não tinha ainda visto os outros três filmes do compêndio, mas não importava, precisava ter Todas as Mulheres do Mundo e, afinal de contas, já que o filme tanto me agradava, não havia mal algum (pelo contrário) em observar mais obras do mesmo criador. Assisti então a Edu Coração de Ouro, outra obra sessentista de Domingos, assim como Todas as Mulheres do Mundo, e que constatei compartilhar da mesma atmosfera da obra-prima do cineasta: os personagens livres, o belíssimo texto repleto de falas afiadas e a câmera emancipada dos ângulos perfeitos, mas sempre inspirada pela poética dos seus seres de espírito liberto. Outro filmaço, um tanto prejudicado pela falta de uma remasterização que poderia muito bem ter restaurado a qualidade do preto e branco da fotografia e ter tornado o som mais cristalino. Relevo, o importante é que o filme está lá, preservado.

Os outros dois filmes de Oliveira que compõe a caixa, Amores e Separações, são da fase mais recente da carreira do diretor, após hiato de mais de 20 anos sem filmar, por conta da falta de financiamento e durante o qual se ocupou, basicamente, de seu trabalho no teatro e na televisão. Ambos os filmes possuem uma estética mais “quadrada”, claramente embebida de alguns signos mais televisivos e teatrais, afirmando então seus trabalhos recentes. O primeiro deles fala sobre amores, desencontros, encontros, e a possibilidade do final feliz. O segundo versa sobre os corações claudicantes, os amores que nascem, crescem, se reproduzem, mas teimam em não morrer, ou não admitir sua falência. Por mais que sejam formalmente mais convencionais do que as obras de Domingos Oliveira em idos tempos, são filmes que conservam o que de melhor o cinema dele oferece: o olhar sincero, personagens muito humanos, e o fabuloso fluxo textual que não esmoreceu com o tempo, e que só enriqueceu pela vivência de seu edificador.

Se a estética visual “dominguiana” recente fica um pouco prejudicada na comparação como sua equivalente do passado (bem acima da média, inspiradíssima) muito por conta dos anos afastado das câmeras, não há como ficar alheio às tramas, aos pequenos dramas cotidianos dos personagens e a forma cativante com que seus destinos são guiados por este deus que é o cineasta, senhor do destino de suas criaturas. Vendo estes quatro filmes, retomo o tópico da comparação que se faz geralmente entre Oliveira e Allen, para constatar agora uma diferença pontual entre ambos, que não os diminui, só os faz complementares: salvo exceções, é claro, enquanto Woody Allen, até mesmo em seus filmes mais cômicos, se mostra um pessimista, um homem mais ligado às sombras da alma humana, Domingos Oliveira, mesmo na mais nebulosa situação, abre espaço para um raio de sol, por meio da redenção de seus personagens e pecados, ou pela simples birra de mostrar que um final feliz nem sempre é piegas ou edulcorado, é simplesmente feliz. Se todo cineasta se crê um deus, certamente Domingos Oliveira é uma divindade que compreende e ama os que foram criados à semelhança de sua imagem.

Um comentário:

  1. Olá, Celo!
    Belo texto.
    Sim, lembro com nostalgia daquela tarde em meio às nossas férias compartilhadas em que assistimos ao apaixonante "Todas as Mulheres do Mundo". Assim como você, tal obra impulsiona minha intenção de conferir mais trabalhos de Domingos Oliveira.

    Abraçosss

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