terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Era Uma Vez na Anatólia


Tudo parte da busca de um corpo. O crime está praticamente resolvido, pois os assassinos são confessos, só faltando mesmo a prova material. Três carros trafegam durante a madrugada pela paisagem de Anatólia, na Turquia, iluminando os campos com seus faróis à procura da vítima inerte. O principal dos culpados, o que parece ter efetivado a barbárie, tomba de sono enquanto a câmera do diretor Nuri Bilge Ceylan avança lenta em meio à conversa dos policiais sobre trivialidades. Tudo é trivial, até mesmo a morte. Era Uma Vez na Anatólia (2011) se desenrola na primeira de suas duas partes como uma espécie de conto de fadas, no qual a “moral da história” não reside no aparente foco principal, ou seja, na necessidade de encontrar um corpo morto, mas no que se constrói durante a interação entre os agentes dessa busca.

Um dos primeiros pontos a se destacar no filme de Ceylan é a alta capacidade expressiva de sua imagem, esta geralmente construída no limite entre luz e escuridão. Esse contraste dá um tom ligeiramente onírico à tensão que cresce de parada em parada. Os criminosos não lembram exatamente onde desovaram o corpo, portanto o mistério e a não-resolução ameaçam triunfar. Por sua vez, o policial encarregado do caso mostra insatisfação por não conseguir cumprir a missão que lhe foi confiada pelo promotor também presente. Como já dito, nada parece acontecer de fato dentro dessa sucessão de procuras em vão, a não ser o que surge na coadjuvância falsa das conversas paralelas. De toda maneira, ainda que conheçamos gradativamente melhor as figuras, até então apenas peças da ação principal e coletiva, não me parece que seja a elas que devamos atentar, mas às suas heranças.

Assim, exumar as terras não é simplesmente ir ao encontro de um dado material que resolveria o crime, mas sim desenterrar metaforicamente os elementos formadores de um povo, de uma nação ainda bastante alicerçada na tradição. O vir do dia não diminui essa sensação, apenas concede à palavra o que antes vinha com mais força da imagem. O médico e o promotor, em tese os mais letrados desde o início, debaterão veladamente questões que envolvem ceticismo e crença, a abertura ou não ao desconhecido, e a necessidade de conhecer ou não verdade. Isso se dá em colóquios de aparente banalidade, mas que não disfarçam seu caráter de conversa existencial. Para muitos, Era Uma Vez na Anatólia pode soar pesado, tanto pela duração (150 minutos) quanto pela negação veemente do espetáculo.

Se no começo da carreira, Ceylan mostrava clara influência do cinema de Robert Bresson (vide A Pequena Cidade, seu primeiro longa-metragem, de 1997), com o passar dos anos ele depurou um estilo próprio, bastante calcado na plasticidade e na interação do homem com uma natureza não raro hostil (exemplo: as nuvens carregadas que muitas vezes simbolizam interiores conturbados). Em Era uma Vez na Anatólia, ele vincula muito bem imagem e som para reverberar formalmente as demandas dos personagens na influência ainda bastante presente da ancestralidade turca. O ritmo caudaloso às vezes soa mesmo excessivo, como se a alguns dos chamados “tempos mortos” fossem dados mais minutos do que o devido. Não é um tipo de cinema de fácil empatia, ou necessariamente divertido, mas altamente compensador para quem estiver disposto a contrariar, vez ou outra, a própria fadiga.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

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