quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Chinatown


J.J Gittes (Jack Nicholson) é ex-policial, agora um detetive particular que ganha a vida investigando casos matrimoniais. Uma mulher aparentemente distinta bate à sua porta, suspeitando-se traída pelo marido, um figurão da administração de Los Angeles. Trabalho bem pago, trabalho aceito. Não se sabe como, mas os resultados vão parar nas primeiras páginas dos jornais, detonando assim uma crise política que parece servir a interesses escusos. Gittes, cuja visão das coisas foi moldada pelos tempos de patrulha às ruelas de Chinatown, a famigerada região na qual a lei e a ordem muitas vezes se confundem, decide ir a fundo, primeiro para saber quem lhe usou como bode-expiatório e depois para entender a cidade que sofre pela falta de água que é ilegalmente desperdiçada na calada da noite. Assim inicia Chinatown (1974), neo-noir dirigido por Roman Polanski.

A enigmática Evelyn Cross Mulwray (Faye Dunaway), verdadeira esposa do chefe do departamento de águas que Gittes investigou, logo aparece como elemento desestabilizador. Gittes é ligeiramente distinto dos detetives noir clássicos, não se deixa levar totalmente pela presença dessa mulher fatal que turva ainda mais seu caminho. Ao passo que descobre algumas ligações estranhas entre determinadas figuras, conexões estas que deveriam permanecer desconhecidas para o bem de uma minoria influente, o personagem de Nicholson se vê seriamente ameaçado de morte. Numa de suas rondas noturnas, ele se depara com o agressor que lhe corta o nariz, talho feio, protegido depois pelo curativo que se torna quase uma característica física a nos lembrar da constância do perigo. O agressor em questão, denominado na ficha técnica apenas como “o homem da faca” é interpretado pelo próprio Polanski.  

O ritmo de Chinatown é ditado pelas sucessivas descobertas de Gittes, pela sujeira que pouco a pouco emerge das relações, das maquinações expostas, das vilanias ora em xeque ora confirmadas pelos comportamentos condenáveis (para dizer o mínimo) de determinados personagens. Los Angeles, a cidade que na época retratada já era o berço do cinema americano, é vista como uma localidade que, a despeito de seu tamanho e importância, segue administrada tal e qual um pequeno feudo lucrativo para meia dúzia de canalhas. Contudo, a lente de Polanski parece interessada na corrupção administrativa apenas como efeito da corrupção moral generalizada. Sendo assim, não haveriam políticos desonestos se a desonestidade fosse ignorada pelo humano que precede o cargo. Gittes, por sua vez, não é nenhum santo, mas o movimento de tentar atravessar o lamaçal que se adensa, faz dele um alvo a ser abatido.

Num elenco que conta com a participação especial do cineasta John Huston, na pele do pai da personagem de Dunaway (ela, precisa entre a frieza e a passionalidade), é mesmo Nicholson quem toma conta. Sobre o filme como um todo, de nada adiantaria a riqueza da produção, a precisa reconstrução de época, entre outros elementos de cunho mais técnico, não fosse a sordidez amplificada cinematograficamente por Polanski a partir do grande roteiro que criou junto com Robert Towne. Chinatown possui rara agudeza e perspicácia, muito por se valer exemplarmente de um período histórico específico, de personalidades conflituosas e sintomáticas do estado das coisas, para colocar em relevo questões de interesse atemporal. A frase “Esqueça, Jake, isto aqui é Chinatown" não se aplica tão e somente ao local notório como “terra de ninguém”, mas à sua representação da podridão que nos assola, independentemente de onde estejamos, seja na superfície ou no submundo.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

0 comentários:

Postar um comentário