sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Deus da Carnificina: de longe todos são normais


Roman Polanski é cineasta afeito a espaços exíguos. Um superficial exame em sua filmografia já aponta para esta predileção por ambientes restritivos, que não raro desempenham função dramática específica. O apartamento é fundamental em O Bebê de Rosemary, assim como a moradia da instável protagonista de Repulsa ao Sexo e a residência que serve de cenário basilar para O Escritor Fantasma. Seguindo a linha, em Deus da Carnificina quase toda ação transcorre num pequeno apartamento, cuja força delimitadora das ações e reações em eminente choque é significativa. É uma jaula repleta de portas e janelas não transpostas.

Como base dos créditos iniciais, há um plano revelador de certa celeuma ordinária entre garotos. Tal evento desencadeia a necessidade de uma conversa conciliatória entre os responsáveis pelos adolescentes. Michael e Penélope Longstreet (John C. Reilly e Jodie Foster), pais do menino agredido, recebem em sua casa os progenitores do agressor, Alan e Nancy Cowan (Christoph Waltz e Kate Winslet). À medida que as gentilezas iniciais vão dando lugar a pequenas alfinetadas, a aparente calmaria se transforma em repetidos ataques, que inevitavelmente abrem fissuras numa relação até então bastante diplomática.

Em registro tragicômico, o verborrágico Deus da Carnificina  esfrega na cara do espectador constantemente “o que somos enquanto espécie”, e só não cede a quaisquer inclinações moralistas porque preenche a instabilidade com um humor sutil, amplificando alguns desdobramentos pela via do patético. O embate “casal vs casal”, motivado inicialmente pela briga dos filhos, logo se vê menor ante expedientes mais, digamos, reveladores, como a ética (ou a falta dela) de quem representa infratores, o pseudo-engajamento de alguns preocupados com a situação africana, a inércia de homens que escondem temperamento explosivo sob a aparente calma, e mulheres que precisam de algumas doses para dizer o que pensam.

Em  Deus da Carnificina  são evidentes as habilidades do roteiro e da montagem, promotores de um fino equilíbrio no fluxo narrativo. Certamente um cineasta menos competente sucumbiria à tentação de dar mais relevo a esta ou aquela figura, e esta assertividade diretiva se observa igualmente na escolha nada aleatória de dois americanos para interpretar um casal atolado em sua própria mediocridade, e outros dois europeus para dar vida à dupla de bem sucedidos profissionalmente e carentes de humanismo. Além de genuíno filme de ator - rótulo possível graças ao desempenho brilhante dos quatro protagonistas -  Deus da Carnificina  também deve muito à direção coesa e incisiva de Polanski.

Ainda envolto em problemas judiciais por conta de um crime cometido no passado, pelo qual não pode mais pisar em solo americano, Roman Polanski parece cada vez mais arguto em suas observações, ciente de que ao artista cabe refletir acerca da sociedade que o circunda conforme seu ideário motriz. Ele conhece como ninguém os que lhe apontam o dedo condenatório, guardadores de seus próprios pecados cotidianos a sete chaves. O apego aos objetos (celular, bolsa, livros de arte, charutos e bebidas) que os personagens de  Deus da Carnificina  têm, por exemplo, evidencia aspectos definidores desta nossa sociedade ensimesmada, viciada em projetar nos artefatos seu sustentáculo. Entre vomitar nas tulipas da sala, largar um hamster à própria sorte, defender interesses escusos ou esconder-se numa falácia, não há o que exaltar ou condenar, não há partidos a tomar, pois a razão (ou a falta dela) habita todos.


Publicado originalmente no Papo de Cinema

2 comentários:

  1. Muito bacana seu texto Marcelo. Como já havia dito no: Papo de Cinema! Parabéns!
    bjs

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  2. Olá, Celo!
    Excelente texto, o que me fornece muita vontade de assistir alguns filmes de Polanski.


    Abraçosssss

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